Putin não pode ceder, as tensões com os EUA irão aumentar
M K Bhadrakumar*
02.Mar.16 :: Outros autores
O
autor, o embaixador indiano Bhadrakamur, analisa as difíceis relações
da Rússia com os EUA e a intervenção da inteligência norte-americana na
Rússia tomando como referência o discurso de Putin na reunião anual do
Serviço de Segurança Federal (FSB) da Rússia.«Fundamentalmente, a questão central para a Rússia é que os EUA interferem nas suas políticas internas tendo em vista criar desarmonia política e enfraquecer o Kremlin, forçando-o a adoptar políticas que estejam em consonância com as estratégias americanas regionais e global.»
A reunião anual do Serviço de Segurança Federal (FSB) da Rússia, que é a organização que sucedeu ao KGB da era soviética, é uma ocasião importante para avaliar a temperatura nas relações “Este-oeste” (o cliché “Guerra Fria” está de novo a tornar-se útil). Na sexta-feira, em Moscovo, o habitual discurso do presidente Vladimir Putin na reunião do FSB foi o momento culminante deste evento.
A parte sensacional do discurso de Putin é a revelação de que o FSB está na posse de informação clara de que no ocidente vêm sendo elaboradas tramas no sentido de provocar confusão política na Rússia num momento em que o país se encaminha para uma crucial eleição do Parlamento, em Outubro. Putin evitou utilizar a expressão “revolução colorida”, mas sugeriu-o. Citando-o:
“Naturalmente que vós (FSB) deveis também impedir quaisquer tentativas do exterior para intervir na nossa eleição e na vida política do nosso país. Como sabeis, tais métodos existem e foram postos em prática num certo número de países. Deixem-me reiterar que isto constitui uma ameaça directa à nossa soberania e responder-lhe-emos em conformidade.”
“Leio os documentos que vocês (FSB) preparam regularmente, leio os sumários e vejo as indicações concretas do que, lamentavelmente, os que nos querem mal no exterior estão a preparar para estas eleições. Todos deveriam portanto estar conscientes de que defenderemos com determinação os nossos interesses de acordo com as nossas leis”.
Mais adiante, Putin notou que agências de inteligência estrangeiras “aumentaram a sua actividade” e que isto foi “convincentemente confirmado” quando no ano passado a contra-inteligência do FSB interditou mais de 400 operacionais de agências de inteligência e instaurou processos criminais contra 23 deles. Mencionou organizações governamentais, instalações militares, empresas industriais da defesa, o sector de energia e “destacados centros de investigação” como particularmente vulneráveis. Disse Putin: “Precisamos de cortar todos os canais de acesso a informação confidencial”.
No conjunto, foi aqui projectado um cenário sombrio no que diz respeito às relações russo-americanas no decurso do período que resta da presidência de Barack Obama. Fundamentalmente, a questão central para a Rússia é que os EUA interferem nas suas políticas internas tendo em vista criar desarmonia política e enfraquecer o Kremlin, forçando-o a adoptar políticas que estejam em consonância com as estratégias americanas regionais e global.
O lado russo, evidentemente, deve também ser responsabilizado por este estranho paradigma. O facto é que na eleição presidencial de 1996 Boris Yeltsin procurou dinheiro, apoio político e patrocínio americano para travar a maré, que naquele momento quase parecia uma vitória certa, do líder do Partido Comunista Gennady Zyuganov.
Houve naquele momento interferência em grande escala por parte dos EUA e dos seus aliados europeus (e do FMI) e os “especialistas” americanos desempenharam certamente um papel crucial para assegurar a vitória de Yeltsin. Quando a campanha começou, a popularidade de Yeltsin andava pelos 6 por cento e acabou por vencer a eleição com 54 por cento dos votos após uma contundente primeira volta com Zyuganov (um relato contemporâneo, aqui , da revista Monthly Review proporciona pormenores fascinantes sob o subtítulo “Americans to the Rescue – a Russian Assignement”).
Na verdade, hoje há uma grande diferença. Se em meados dos anos noventa os EUA precisavam que Yeltsin continuasse no poder, a ênfase hoje está na “mudança de regime”. O ressurgimento da Rússia sob a liderança de Putin é anátema para Washington.
Os EUA não podem suportar que a Rússia (ou qualquer outro país, a bem dizer) assuma uma orientação tão nacionalista que se apresente como um formidável vento contrário às suas estratégias globais. Ao contrário da China, que pode dar um efeito à bola como Beckam , a Rússia não está com vontade de se inclinar para obter resultados. A sua orgulhosa história simplesmente não lhe permite fazer isso (a propósito: falta ver se Moscovo acompanhará os duros termos do acordo EUA-China impondo bloqueio naval à Coreia do Norte).
No contexto actual, as sanções ocidentais contra a Rússia são efectivamente dirigidas contra o Kremlin. Os cálculos estado-unidenses depositam as suas esperanças numa recessão económica na Rússia que conduza ao descontentamento social, que comprometeria as possibilidades do partido do governo nas eleições e desencadearia por sua vez protestos em massa.
Putin advertiu que Moscovo derrotará quaisquer intenções dos EUA de instigar confusão política na Rússia, sejam quais forem os meios necessários. Nisto Putin é para levar a sério. Contudo, a grande questão permanece: Como poderão ser abordados conflitos regionais como a Síria ou a Ucrânia quando as duas grandes potências estão concentradas numa luta existencial?
Idealmente, da perspectiva dos EUA, a confusão na Síria deveria ascender até um crescendo no Verão, colocando na mira da opinião pública russa a intervenção russa naquele país, em vésperas da eleição no Outono. Curiosamente, Putin encarregou o FSB de assegurar três coisas: uma, garantir “a segurança dos nossos pilotos… na Síria e das unidades antiterroristas que trabalham no interior da Rússia”; dois, “selar eficazmente” territórios russos da infiltração por terroristas; e, três, “impedir as actividades de grupos clandestinos” dentro da Rússia que pudessem estar a planear ataques terroristas.
Certamente, comparando com o entusiasmo que Putin inicialmente manifestou na segunda-feira acerca do entendimento EUA-Rússia sobre o acordo de cessar-fogo na Síria, ele foi ontem nitidamente reservado quando discursava para o FSB. Moscovo teria entretanto sentido que Washington está a colocar directamente sobre o Kremlin o ónus de que o cessar-fogo permaneça intacto, enquanto os EUA estão ou sem capacidade ou sem vontade de controlar os seus militantes aliados regionais, como a Turquia.
Na quinta-feira Obama sublinhou que “boa parte disso (a manutenção do cessar-fogo) vai depender de o regime sírio, a Rússia e os seus aliados cumprirem os seus compromissos. Os próximos dias serão críticos e o mundo estará a observar”.
Acrescentou então: “muitos sírios nunca cessarão de combater até que Assad esteja fora do poder. Não há alternativa a uma transição gerida sem Assad. É o único caminho para acabar a guerra civil e unir o povo sírio contra os terroristas”.
* M. K. Bhadrakumar é diplomata jubilado e colaborador assíduo do Ásia Times
O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/…
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.
Tradução revista por odiario.info.
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