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segunda-feira, 12 de novembro de 2018


Alfredo Barroso 12/11/2018
Alfredo Barroso
Cronista

opiniao@newsplex.pt

A Grande Guerra reaccionária de 1914-1918

A França estava mesmo a precisar de uma guerra, ou melhor, os tais “industriais”, os detentores da propriedade, do dinheiro e dos privilégios, estavam a precisar de uma guerra para lograr conter o avanço dos “vermelhos”
Será difícil encontrar uma expressão mais sintética que ilustre tão bem o que foi a Grande Guerra (1914-1918) do que esta frase do escritor francês Anatole France numa carta aberta publicada nos jornais: “Julgam que morrem pela pátria, mas estão a morrer pelos industriais.” Não foi por acaso que o grande dirigente socialista Jean Jaurès, que se manifestou contra a guerra, foi assassinado no dia 31 de Julho de 1914, às 21h40, quando jantava com alguns dos seus colaboradores num restaurante da Rua de Montmartre, em Paris. No dia seguinte, sábado 1 de Agosto, o imperador Guilherme, da Alemanha, decretou o estado de sítio, a França acelerou a mobilização geral e os dois países partiram para a Grande Guerra.
A França estava mesmo a precisar de uma guerra, ou melhor, os tais “industriais”, os detentores da propriedade, do dinheiro e dos privilégios, estavam a precisar de uma guerra para lograr conter o avanço dos “vermelhos”, esses “malfeitores” que já tinham conseguido eleger 103 deputados socialistas nas eleições legislativas de Maio de 1914. Um horror! Porque, entre outras “malfeitorias”, eles iam aprovar um imposto sobre o rendimento e falava-se já num governo de coligação no qual Jean Jaurès seria o ministro dos Negócios Estrangeiros, logo ele, que privilegiava a diplomacia para impedir a eclosão duma guerra que seria terrível.
A direita e os seus jornais, que já vinham desenvolvendo, sobretudo desde 1910, uma campanha brutal contra os “vermelhos”, começaram então a tocar as cordas do patriotismo incandescente e do belicismo. O general Rebillot confessará a um jornal que, na Primavera de 1914, a situação política era trágica para as classes dominantes – a burguesia e os industriais, os privilegiados, em suma. E afirmava: “Só a guerra nos podia salvar.” E dava graças à providência por ter escolhido, ou melhor, imposto que fosse o imperador alemão a abrir as hostilidades.
Abençoada guerra! Fora com reivindicações políticas e sociais, que não podem ter lugar quando a pátria está em perigo! União nacional! União sagrada! Veio ao de cima o “nacionalismo”, baptizado por Maurice Barrès (1862-1923) mesmo no final do séc. xix e aperfeiçoado depois por Charles Maurras (1868-1952), teórico do “nacionalismo integral” (em Portugal deu no Integralismo Lusitano). Em suma: a confirmação geral dos privilégios de quem tudo tem! Era mister proteger as fortunas adquiridas, garantir o crescimento dos lucros dos grandes negocistas, impedindo a progressão dos socialistas e as tentativas de “subversão” oriundas dos mais pobres e desprotegidos – da canalha (a “racaille”). Ora, nada melhor do que uma guerra no exterior para obrigar essa “canalha” a ir combater em defesa da pátria.
Já Maurice Barrès ensinava, em 1897, que “a primeira condição da paz social é que os mais pobres tenham o sentimento da sua própria impotência”. Que o mesmo é dizer: convém desviar os mais pobres dos seus problemas vitais mobilizando-os para a guerra. Porque a guerra é essencial à neutralização da política, à interrupção generalizada da agitação promovida pelas esquerdas. Os perigos internos são bem mais graves para as classes dominantes do que o risco de perder uma guerra. Como se viu em França, aliás, após a derrota do Empire na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e a “paixão furiosa exibida pelos notáveis e os possidentes a favor de uma paz imediata, fosse qual fosse a amputação territorial exigida por Bismarck” – como salientou o historiador Henri Guillemin, num ensaio publicado em 1974. O que mostra que o patriotismo incandescente da direita “tem dias”, depende muito da ocasião e não passa de “um avatar comandado pela estratégia política”.
Bem dizia Moltke, então chefe do estado-maior general alemão, em 1912, ao seu imperador Guilherme: “Pode Vossa Majestade estar tranquilo: porque, se a guerra eclodir, os soldados marcharão pela Pátria como um só homem, e o socialismo será esquecido.” É que na Alemanha também havia um problema na política interna: a progressão dos sociais-democratas a ameaçar os privilegiados. Ora, a guerra com um inimigo externo é boa coisa para garantir a paz social interna, a segurança das fortunas e a preservação desse tão antigo sistema que consiste em produzir ricos à custa do trabalho dos pobres. E foi isso mesmo que concluíram, tanto na Alemanha como em França, “os potentados do dinheiro”, esse estado oculto dentro do próprio Estado, bem mais poderoso do que este, mas vivendo à sua custa.
O escritor francês Henry de Montherlant (1895-1972) havia de revelar, no seu livro “Solstice de Juin”, em 1941, uma confidência ao mesmo tempo significativa e terrível do seu amigo e escritor René Benjamin (1885-1948), mobilizado em 1939, adepto de Maurras e admirador do marechal Pétain: “Entre os meus camaradas, oficiais de reserva, eram vários os que não estavam minimamente interessados nesta guerra (contra os alemães) e diziam: sabemos onde estão os nossos verdadeiros inimigos; pertencem a essa classe da sociedade para a qual a única cura possível é matá-los. Verão como saberemos bater-nos a partir do dia em que pudermos disparar sobre Franceses.” Como tantos outros apologistas da “colaboração” com o ocupante nazi, René Benjamin admitia que a ideia de uma vitória da França sobre os nazis o “fazia estremecer”. O velho ódio da direita aos “communards” e às esquerdas em geral já vinha desde a revolta da Comuna de Paris, em 1871, após a derrota da França na guerra contra a Prússia, e durou quase até ao fim da ii Guerra Mundial.
Há 100 anos, o armistício que agora se comemorou foi crucial para permitir que os beligerantes respirassem um pouco, enterrassem milhões de mortos, tratassem de milhões de feridos e mutilados, e se rearmassem militar e politicamente, sobretudo após a emergência do fascismo em Itália, do nazismo na Alemanha e do franquismo em Espanha, além de outros regimes fascizantes, como no Portugal de Salazar e em vários países da Europa central. O armistício assinalou apenas uma interrupção temporária do conflito na Europa ocidental, pois a guerra prosseguiu na Europa de leste e no Médio Oriente até 1923, com revoluções e guerras civis que perturbaram seriamente os negociadores da paz, fazendo cair impérios, criando novos países e deslocando e redesenhando fronteiras. Seguir--se-ia a brutal Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e o prolongamento do ódio e do extermínio levado a cabo por Franco, muito para além da vitória do fascismo sobre a República democrática, graças ao apoio militar de Hitler e Mussolini, como relata o historiador inglês Paul Preston no seu livro “The Spanish Holocaust” (Random House Mondadori, 2011).
A verdadeira tragédia que pairou sobre a Europa e o mundo a partir do armistício e após a entrada em vigor, no dia 10 de Janeiro de 1920, do tratado de paz assinado em Versalhes pelas potências europeias vencedoras – considerado por muitos, entre os quais o grande economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), como um tratado imprudente e iníquo – foi o facto de os alemães não admitirem que tinham sido derrotados na Grande Guerra. O general Erich Ludendorff (1865--1937), que defendia, no final da guerra, que a Alemanha devia negociar uma “paz vitoriosa” e não aceitar a rendição, criou a fantasiosa lenda segundo a qual os alemães teriam sido “apunhalados pelas costas”. Como recorda o historiador escocês Norman Stone na sua história concisa da i Guerra Mundial: «Os Judeus, a esquerda e os académicos lamechas tinham-nos impedido de ganhar e criar uma Europa que fazia mais sentido no terreno do que qualquer ingénuo sonho norte-americano.”
Norman Stone também salienta que, nos últimos dias da Grande Guerra, o desastre que se seguiu foi pressentido pelo primeiro-ministro inglês, Lloyd George (1863-1945), quando se discutiram os termos do armistício, ao proferir estas proféticas palavras: “Se fizermos a paz agora, daqui a vinte anos os Alemães dirão o que disse Cartago em relação à Primeira Guerra Púnica: que tinha cometido erros e que, com melhor preparação e organização, se sagraria vencedora da próxima vez.” Mais ou menos o que escreveria Hitler na sua bíblia, “Mein Kampf”: que a Alemanha merecia ter vencido e tê-lo-ia conseguido se não fosse a traição, a despropositada lamechice humanitária e o apaziguamento dos traidores da esquerda. Para Hitler, não havia a menor dúvida: “Não há que pactuar com judeus. Não há alternativa. Só pode ser à bruta.” Tanto a reprimir as revoluções como a combater os inimigos da Alemanha. Estava assim aberto o caminho – remata Norman Stone – para uma segunda guerra mundial ainda mais terrível do que a primeira. Entre militares e civis foram mortos cerca de 20 milhões na Grande Guerra, a que se seguiram entre 50 e 70 milhões dizimados pela chamada gripe espanhola e mais 50 milhões na ii Guerra Mundial. Sem contar com muitas centenas de milhares mortos na Guerra Civil de Espanha, na Guerra da Coreia ou nas guerras da Indochina, sobretudo a do Vietname. Guerras reaccionárias, todas elas, levadas a cabo contra as mais variadas esquerdas.

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