ENTREVISTA
Catarina Martins Coordenadora do Bloco de Esquerda
“O BE nunca será ‘levado’ para o Governo pelo PS”
Texto Rosa Pedroso Lima e Vítor Matos Fotos Tiago Miranda
Era
dia de Todos os Santos e, apesar do feriado ter sido ‘devolvido’ ao
país pelos partidos da ‘geringonça’, foi dia de trabalho na sede do
Bloco de Esquerda. A duas semanas da XI Convenção, Catarina Martins deu
uma entrevista ao Expresso para mostrar que o Bloco está preparado para
entrar num próximo Governo. Mas nunca com um papel secundário. O PCP não
fica de fora desta equação, porque “é uma força essencial”, diz
Catarina Martins. A campanha eleitoral já começou e o PS dá sinal de
contra-ataque. Teve “comportamentos menos próprios” para com o BE na
mira de uma vitória eleitoral esmagadora. “Acho que o país se lembra do
que são as maiorias absolutas do PS”, responde Catarina Martins.
Há
quatro anos disse: “Sabemos todos que não faremos parte de um Governo
do PS”. A sua moção assume agora que quer “ser força de Governo”. Mudou?
Não, mantém-se o que foi dito. Há quatro anos, a
questão era saber se uma força de esquerda, ainda que com um peso
pequeno, podia condicionar um Governo do PS. Achámos que não. E mesmo
tendo tido um resultado superior, não entrámos no Governo porque a
correlação de forças não permitia mudar matérias para nós essenciais.
Depois desta fase em que foi possível condicionar um Governo do PS, a
próxima fase seria termos uma correlação de forças que nos permitisse
ter um Governo de esquerda. Não simplesmente um Governo minoritário do
PS.
Ser “força de governo” não é integrar um Governo do PS?
O
Governo só é do PS quando ele é uma força muito grande comparada com os
outros, que mesmo lá estando, não têm força suficiente para condicionar
o programa do PS. Isso o BE não quis ser e continua a não querer.
É, na mesma, integrar um Governo...
A política não é uma questão de vontade, mas de força.
Mas o PS mudou e o Bloco só pode fazer Governo com o PS...
Porquê? Não podemos fazer com o PCP? E com as forças que estejam no programa?
Não é um quadro verosímil uma maioria de PCP e Bloco...
Não
sabemos o que vai acontecer depois de 2019. A relação de forças pode
mudar e ser possível fazer um governo com um programa de esquerda. Se
isso acontecer, o Bloco pode e deve assumir a responsabilidade de
integrar um Governo.
Nessa equação não afasta a possibilidade de integrar um Governo com o PS...
O que não é a mesma coisa que um governo do PS.
Um Governo de coligação é sempre de duas forças
Não, não é.
Como não?
Quando
uma das forças é hegemónica define praticamente sozinha o programa de
Governo. As outras forças estarão lá numa posição secundária. Não tem
nenhum sentido.
Qual é a força mínima necessária para o BE integrar um Governo com o PS?
Tenho
dificuldade em responder a esse tipo de questão. Se me tivessem
perguntado em 2014 qual era a correlação de forças mínima necessária
para um acordo de um Governo minoritário do PS, nenhum de nós seria
capaz de responder. E, em 2015, o PS apresentou-se a eleições com o seu
programa mais à direita de sempre! Queria um regime conciliatório de
despedimento, congelar as pensões...
15% seria uma votação confortável para o BE?
Isto
não é um rateio de percentagens! A correlação de forças depende também
das forças dos outros partidos: do PCP, da direita. E esse governo só
existirá se o Bloco crescer.
Não sei se o PS acha que ganha a maioria absoluta atacando o Bloco de esquerda
Desse Governo fará parte o PCP?
Porque
não? O Bloco tem imensas divergências com o PCP, mas não tenho dúvidas
de que o PCP é uma força essencial no quadro de uma política de
esquerda.
António Costa afastou a possibilidade de levar o Bloco para o Governo...
Acho normal. Eu também excluo essa hipótese. O Bloco de Esquerda nunca será ‘levado’ para o Governo pelo PS.
É uma questão de palavras. E participar?
Eu
também afastava qualquer possibilidade de acordo com o PS mas, na
verdade, o PS abandonou o programa de Mário Centeno e isso permitiu um
acordo para uma legislatura. Compreendo perfeitamente que o PS queira
uma maioria absoluta. Mas acho que o país se lembra do que foram as
maiorias absolutas do PS e de como são pontes para que venham a seguir
governos de direita.
Há margem política para uma nova ‘geringonça’?
A
responsabilidade do BE é de se bater por um programa de esquerda para o
país. Se crescermos e se as propostas deste género tiverem mais apoio
social, achamos que pode haver um governo de esquerda de que o Bloco
faça parte. E não fará parte sozinho e não vemos problema nisso.
E isso já foi falado com o PS e com o PCP?
A
ideia de que a política se decide pelos partidos que querem ou não
entender-se é um mau serviço à democracia. A política decide-se
apresentando um programa que as pessoas escolhem.
Não é mais leal dizer ao eleitorado se pode, ou não, haver entendimento?
Estamos
muito empenhados em levar esta legislatura até ao fim e as nossas
conversas têm-se centrado sobre isso. E ainda bem. Houve a tentação da
parte do Governo de considerar que já não havia nada a negociar nesta
legislatura. Foi uma tentação de autossuficiência e o BE não a permitiu.
Para nós, esta legislatura ainda não acabou. A transparência perante o
eleitorado mede-se na forma séria com que se leva os compromisso até ao
fim. Ainda temos um OE que pode ficar muito melhor do que está. Há uma
série de matérias que exigem que se continuem a conversa. Saltar já para
cenários hipotéticos é uma boa forma de não cumprirmos os compromissos
que temos.
As questões europeias e a NATO não são essenciais numa próxima relação com o PS?
A
própria conjuntura internacional obrigará os partidos que têm tido uma
posição acrítica sobre as decisões norte-americanas de política externa a
mudar de atitude. Nenhum governo português poderá continuar a ter uma
posição acrítica em relação à NATO.
E também vai mudar de posição sobre o Tratado Orçamental (TO)?
Já
houve uma enorme mudança de atitude do PS! O que aliás nos surpreendeu.
No Parlamento Europeu, o PS teve a mesma atitude que o BE e o PCP e
registo que mudou de opinião.
No Governo, cumpre-o escrupulosamente...
Aliás,
vai além do que o Tratado exige em algumas matérias. Na meta do défice,
que é aquela de que se fala, Portugal está até além do que seria
necessário. Do nosso ponto de vista é um erro. Temos essa enorme
divergência com o Governo.
Em termos práticos, o ministro das Finanças comporta-se como um falcão.
Há
dois PS: um que reconhece que o TO foi um enorme erro e quer acabar com
esta política, contrapondo no PE uma nova forma de gestão dos
orçamentos. E há outro PS que continua a recusar retirar lições do que
aconteceu e continua com um otimismo sobre o TO que é impossível de
explicar. Outra explicação é que o PS tem uma posição ambígua, para não
dizer hipócrita.
Acho que o País se lembra do que foram as maiorias absolutas do PS
Continua
a confiar no PS e em António Costa? Francisco Louçã e Mariana Mortágua
acham que mudaram de atitude em relação ao Bloco, depois do congresso...
Não sei se o PS acha que ganha a maioria absoluta
atacando o BE ou tendo comportamentos menos próprios em relação ao
acordo que temos...
O PS tem tido comportamentos menos próprios?
Acordarmos uma medida como a de taxarmos a especulação imobiliária e depois mudarem de ideias quando a medida é anunciada...
Está a falar da ‘taxa Robles’?
Não,
estou a falar de uma taxa sobre a especulação imobiliária. Ou quando é
preciso negociar o OE na madrugada do Conselho de Ministros que o vai
fechar porque o PS decidiu atrasar todos os dossiês... não acho que esta
seja a melhor forma de trabalharmos em conjunto.
Foi uma mudança de atitude, pós-congresso?
Sim.
Visa mais o Bloco do que o PCP?
O PS, eventualmente, terá feito a análise de que o BE dificultava mais uma maioria absoluta do que o PCP.
Ou pensa que é mais fácil ir buscar votos ao Bloco do que ao PCP...
É
uma pergunta a colocar ao PS. Registamos essa alteração e o que fizemos
é manter absolutamente a nossa linha. Estamos aqui para fazer cumprir
os acordos e ir mais longe até ao último dia desta legislatura.
O BE não se sente enganado pelo PS?
O
Bloco não tem uma expectativa de um entendimento extraordinário com o
PS. Temos formas diferentes de estar e de analisar a política. É normal
que não haja um entendimento fácil. O que conta é o compromisso que
assumimos com o país. As questões de humor aqui importam pouco.
Considerando tudo isso, o parceiro é ainda confiável? Ou na reta final, o PS mostra que não precisa mais dos parceiros?
O
cimento de qualquer solução é a relação de forças e a clareza do
compromisso político. Não vale a pena estarmos a discutir quem se dá
melhor com quem, se a relação é mais ou menos simpática em cada momento.
O que é preciso é uma relação de forças clara e explicar ao país qual é
o acordo concreto que foi feito. É a expectativa popular sobre o acordo
que faz com que ele seja cumprido.
O BE já disse que Centeno age como força de bloqueio. Vieira da Silva também foi uma força de bloqueio neste OE?
Tivemos
muitas divergências com Vieira da Silva, até em anteriores governos.
Mas assinalo o extraordinário trabalho que foi possível fazer no combate
à severidade da pobreza. O problema não está resolvido, mas as medidas
que tomámos permitiram sair de indicadores preocupantes.
São todos Centenos, menos Vieira da Silva?
Essas
simplificações não ajudam. Tendo muitas divergências com Vieira da
Silva, foi possível chegar a avanços importantes no abono de família, no
complemento social para idosos...
As matérias mais difíceis para fechar este OE foram da Segurança Social...
Sou
pouco especialista em humores dos ministros. As medidas vão ficando
mais difíceis à medida que avançamos, porque têm por base opções
ideológicas. É o caso da lei laboral. E as divergências ideológicas não
se podem confundir com questões de boa ou má vontade. Temos uma
divergência ideológica grave com o PS sobre matéria laboral. Sempre
tivemos. Não é por Vieira da Silva ter ficado mais antipático no final
do mandato.
“É assustador ver o tão pouco que os governos mandam”
O Bloco ainda é um partido anticapitalista e antissistema?
Sim e é um partido socialista, feminista e ecologista.
É um partido de protesto, então?
Não.
Somos um partido de transformação. Sempre fomos. A direita é que gosta
de dizer que somos um partido de protesto. Adora ver o BE a dizer que o
salário mínimo é baixo, mas detesta ver-nos com força para o fazer
subir.
A moção M diz que o Bloco se encostou ao poder.
Temos
uma divergência. Há no Bloco um debate importante sobre a luta por uma
sociedade mais justa, não se fazer simplesmente na disputa eleitoral e
institucional. Estamos todos de acordo que para haver transformação é
preciso disputar maiorias sociais de outras formas.
O
Bloco mudou com a sua liderança? Há uns anos, alguns dirigentes saíram
em rutura por defenderem soluções à esquerda que a sua direção da altura
recusou.
Esse sector defendia que o BE abandonasse
o seu programa para se aproximar do PS. Teria sido um enorme erro. Se o
tivesse feito, o BE não era preciso para nada.
Não acha que o Bloco mudou?
Não.
Acho que tivemos uma correlação de forças que nunca tínhamos tido. O
Bloco é maior, tem mais gente e está mais bem preparado.
Desvaloriza a opinião das outras moções que falam em falta de democracia interna e em tiques de centralismo?
Nunca
desvalorizo a crítica. O BE tem algumas dores de crescimento. Elegemos
autarcas onde nunca antes tínhamos conseguido entrar e, como o Bloco não
tem estruturas de apoio, as pessoas eleitas sentem-se desacompanhadas.
Estamos a tentar implementar mecanismos para as apoiar, mas é complicado
porque não queremos um partido de funcionários.
As tendências que fundaram o BE ainda têm influência?
Têm alguma influência na forma como se analisam problemas. Não creio que sejam definidoras de posições internas.
Sente que uniu o partido?
Somos um coletivo, gosto disso, de trabalharmos em conjunto. Não acredito nada que a política seja definida por uma pessoa.
Há quatro anos, a mesa nacional ficou empatada...
Fizemos um longo caminho desde aí.
Nesse sentido, houve mudança com a sua liderança?
É sempre muito difícil fazer uma transição de protagonismo. O que se fizesse depois de Francisco Louçã iria ser complicado.
Como líder, que defeitos tem?
[Pausa longa] Acho que não sou a pessoa mais paciente do mundo.
Admite como um defeito seu a maneira como lidou com o caso Robles?
Avaliámos
e agimos mal, também porque foi tudo muito confuso e, no início, não
nos apercebemos do que estava em causa. Foi difícil a gestão.
No acordo com o PS cometeu erros?
Hoje,
acho que teria sido importante termos ido mais longe em questões do
Estado social e do trabalho. É sempre fácil falar depois de as coisas
terem acontecido...
O que aprendeu na relação com o poder?
O
Bloco teve de preparar-se muito depressa. De repente, começámos a
negociar dossiês sobre os quais nem sequer conhecíamos os dados. Temos
hoje uma preparação que não tínhamos e isso transforma o BE. Foi uma
oportunidade muito importante para disputas futuras. Este período
preparou-nos. Por outro lado, quando negociamos dossiês mais de perto
temos consciência do tão pouco que os governos mandam! E é muito
assustador que tanta gente viva bem com isso.
São os lobbies?
Quem
me dera que fossem lobbies! Porque seria uma coisa que se poderia
combater. O problema é o poder que o poder económico tem a partir do
momento em que se privatizam os sectores estratégicos da economia. Ou o
poder que tem o sistema financeiro internacional quando não temos
praticamente nenhuma capacidade de intervenção na banca. Não é uma
novidade, fez sempre parte da análise do Bloco. Mas ver no concreto e ao
pormenor esta degradação da soberania popular é assustador.
Miguel Portas dizia que a política é uma droga dura. Não veio da política, mas está “agarrada”?
Discordo de que não vim da política. A política foi a minha vida toda, mas ela não se confunde com os partidos.
Ao nível a que chegou na política, é uma coisa viciante?
É
viciante organizar pessoas e estabelecer objetivos para conseguir
alterar as coisas. Mas não tem só que ver com a organização partidária.
E imagina-se fora da política partidária?
Fora
da vida política partidária, claro que sim. Agora fora da política,
não. Onde estiver, tentarei organizar-me com outras pessoas.
Até quando se vê como coordenadora do BE?
Até quando fizer sentido. Estou a candidatar-me a ser coordenadora mais dois anos. Por enquanto é isto.
“O Bloco não cedeu” no OE
António Costa foi decisivo para desbloquear o Orçamento na 25ª hora?
É normal o primeiro-ministro desbloquear negociações quando elas são difíceis. Ainda bem.
O que é que ele desbloqueou?
Nunca
falei das reuniões que tivemos antes, também não vou falar agora. Sei
que está na moda, mas não me revejo nessa forma de atuar.
Sem a intervenção do PM o Bloco estava fora do OE?
Se o Governo não tivesse negociado com o BE medidas que para nós eram essenciais, não estaríamos a fazer o OE em conjunto.
Onde é que o Governo cedeu?
Há
sempre, todos os anos, dossiês complicados. Este ano houve três
matérias complicadas: energia, pensões e o problema da universalidade do
Estado social.
Sente-se confortável se o PS elogiar o Bloco por ter ajudado o país a chegar ao défice zero?
Orgulhamo-nos
que estes anos tenham provado que foi a recuperação de rendimentos de
trabalho e de pensões que puxou pela economia, criou emprego e permitiu a
consolidação das contas públicas.
É normal o PM desbloquear negociações quando são difíceis. Ainda bem
Tem orgulho num défice zero?
Não,
porque esse défice não vem só do crescimento económico, mas de
continuarmos a ter um investimento no Estado social e nos serviços
públicos que fica muito aquém do necessário.
Isso não se chama ‘engolir vários sapos’?
A
pergunta não faz sentido. Terá sido um sapo para o PS engolir OE que
descongelaram e fizeram atualizações de pensões que no final da
legislatura representam mais de mil milhões de euros?
Não há o risco de os vossos eleitores sentirem que o défice zero foi à custa de salários, carreiras e pensões?
Tenho
dificuldade em acreditar que alguém à esquerda tivesse preferido que o
BE se tivesse abstido de recuperar rendimentos e direitos por não
conseguir impor o seu programa todo.
O BE viabilizou OE do que chama “ortodoxia neoliberal europeia”, citando a sua moção. Tornou-se colaboracionista?
Esses termos são inaceitáveis no contexto da política portuguesa. Não só para o Bloco como para qualquer outro partido.
Houve cedência ao Governo?
O
Bloco de Esquerda não cedeu. Não ganhamos eleições e não temos força
para impor o nosso programa. Houve uma maioria social em Portugal de
80%, com os votos do PS, do PSD e do CDS, que apoiou a ortodoxia
europeia. Ainda assim, achámos que valia a pena usar a força que
tínhamos. E quando vemos que estes orçamentos significaram uma
recuperação de rendimentos de cinco mil milhões de euros, não houve
cedências.
Há margem para ganhos no debate da especialidade?
Acho
que sim, espero que haja. A energia precisa de ser corrigida, o IVA da
cultura precisa de ser corrigido. Salários e carreiras, neste momento,
estão fora do OE. Veremos como vamos lidar com isso.
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