A
afirmação da ministra da Cultura sobre as touradas causa estupefação e
preocupação. Estupefação, porque colocar uma questão fiscal no domínio
da “civilização”, quando estão em causa práticas festivas, ancestrais e
populares, faz parte de um impulso totalitário que visa definir uma
política do gosto; preocupação, porque sinaliza um regresso às políticas
identitárias, uma das causas do declínio eleitoral do centro-esquerda.
Remeter-se
a festa taurina para a categoria dos eventos não civilizados é tanto
mais chocante quanto foi verbalizado por Graça Fonseca que, numa
declaração de grande coragem e alcance, assumiu a sua homossexualidade
como ato político. A questão está longe de ser lateral. Como é sabido, a
rejeição liminar do que é estranho, estigmatizando práticas que não se
entendem, acantonando aqueles que sentem e pensam de forma distinta, é o
berço da intolerância. De quem se bate pela tolerância em relação às
próprias escolhas, exige-se, sempre, maior prudência nos pronunciamentos
sobre as práticas dos outros. Tanto mais que estamos perante uma
afronta aos portugueses que têm na festa taurina parte da sua identidade
comunitária.
A questão é política e mais vasta.
Após a “esquerda moderna”, o PS enveredou pelos temas clássicos do
trabalho, rendimentos e proteção social. Com bons resultados. Espanta,
por isso, que, a um ano das eleições, um membro do Governo promova uma
fratura identitária, abrindo a porta para campanhas de proselitismo
civilizacional em torno das touradas (que logo se iniciaram, com níveis
de violência insólitos em relação a todos que ousam pensar de forma
diferente).
Mas faz sentido. Afinal, a política
identitária é, por definição, excludente — valorizamos a nossa
identidade, fechamo-nos sobre ela e não toleramos a dos outros. Com
graves efeitos: esmorece um discurso partilhado, que é substituído por
vários microdiscursos em tensão uns com os outros.
Esta
é, aliás, parte da explicação das dificuldades da social-democracia nas
últimas décadas. Incapacidade em articular uma ideia de bem comum,
assente numa narrativa renovada em torno da economia e do Estado Social,
e a sua substituição por políticas identitárias, que dificilmente
oferecem uma visão partilhada do que deve ser a nossa sociedade. O
colapso dos partidos social-democratas — e a ascensão de formações
populistas — está intimamente ligado a este processo.
A
fúria abolicionista em relação às touradas é exemplo desta trajetória.
Um progressismo liderado por elites urbanas, hostis a visões distintas
do que é culturalmente adequado. Este movimento de perda de referências,
em que a cultura de um povo passa a ser um produto racional,
higienizado e homogéneo, sem distinções nacionais, leva-nos por caminhos
tortuosos. Entre eles, a absurda equivalência entre direitos humanos e
direitos dos animais, assente, aliás, numa paradoxal rutura na relação
entre homens e natureza.
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