A pobreza da cultura local
na época da descentralização socialista
Rui Matoso
Na ultima edição da revista municipal (outubro, 2018), o edil Carlos Bernardes redigiu um
editorial (auto)laudatório, louvando a governação municipal mas também, de forma subtil, elogiava
o desempenho do governo na política de descentralização em curso. Deste modo, enaltecia-se a si
mesmo e ao seu antecessor na presidência da CMTV, o actual Secretário de Estado das Autarquias,
Carlos Miguel, em grande medida responsável pela actual Lei-quadro da descentralização.
Apesar das retóricas e da responsabilidade acumulada ao longo de 44 anos de governação do
PS em Torres Vedras, a verdade é que estamos no fim de 2018 e nem sinal da existência de uma
política cultural municipal que corresponda minimamente aos desígnios visados na Constituição da
Republica Portuguesa (CRP), ou seja, no contrato social firmado entre a sociedade civil (o povo
português soberano) e o Estado.
Quando Carlos Bernardes, no referido texto, defende que «a descentralização faz parte do
código genético do municipalismo e, ao contrário da tendência da administração central, não se
radica no desejo de obter o poder apenas pelo poder e pelo controlo...», constatamos facilmente que
numa das áreas mais óbvias e enraizadas no território local, a cultura, não existe ainda hoje (2018)
uma política cultural municipal democraticamente construída em parceria com a sociedade civil.
Portanto, a verdade é que apesar da existência de uma forte e histórica autonomia jurídica do
poder local (municipalismo), os autarcas efectivamente eleitos parecem ignorar que as autarquias
locais são instrumentos de realização da democracia cultural e do aprofundamento da democracia
participativa.
Diríamos, imitando a oratória autárquica em vigor no PS: falam falam, mas não fazem nada!
E o que deviam fazer, se quisessem merecer a distinção de “bons autarcas”, era cumprir com o
Artigo 78.º - (Fruição e criação cultural), promover políticas e instrumentos destinados a incentivar
e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, apoiar
iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões
e articular a política cultural e as demais políticas sectoriais. Nada de transcendentemente difícil,
basta entender que em democracia a função dos eleitos, representantes do povo na gestão dos bens
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comuns, é a de servir o povo (a sociedade civil) e cumprir com o contrato social versado na
Constituição. É simples!
Contudo, basta fazer um diagnóstico intuitivo e verificar que a dinâmica sociocultural em
Torres Vedras vem decaindo acentuadamente deste o início do século, e com mais vigor após 2004.
A existirem indicadores, avaliação e monitorização das práticas culturais, tornar-se-ia evidente que
a vitalidade e a participação cultural activa plural e livre, se vem reduzindo drasticamente.
Mais preocupante ainda, na ausência de políticas e instrumentos para a democracia e
cidadania cultural - tão necessárias ao bem-estar e à vitalidade social -, é a emergência de novas
formas de desintegração social e de violência urbana que ocupam o lugar vazio deixado por outros
tipos de sociabilidades construtivas. De acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça, tem
havido em Torres Vedras um constante aumento dos crimes de ofensa à integridade física
qualificada. Talvez uma das razões esteja no facto de a quantidade de álcool, entre outros
estupefacientes, existente por metro quadrado ser inversamente proporcional à existência de formas
alternativas e mais salutares de interacção social.
Faltam espaços e lugares que promovam a diversidade cultural e a criação artística dos mais
jovens, faltam apoios públicos à dinamização de iniciativas plurais, faltam políticas e programas de
serviço público que sirvam realmente os desígnios da participação cultural activa. Torres Vedras,
apesar das operações de cosmética e do “pão e circo”, não corresponde minimamente ao paradigma
contemporâneo da “Cidade Criativa”, estando na realidade a uma grande distância face a outras
cidades portuguesas e europeias de média e pequena escala.
O monopólio das “industrias da noite”, do álcool e de outros estupefacientes, sobre o
escandaloso vazio de práticas culturais, sociais ou artísticas, criativas, plurais e construtivas, é o
resultado de uma espécie de “ignorância obstinada” ao longo destes anos de poder local.
No fundo, não se trata de ignorância nenhuma, é impossível achar que um partido há 44
anos no poder municipal não aprenda com o passar dos anos, nomeadamente quando os cargos de
vereação se repetem durante mandatos consecutivos. Porém, não deixa de ser intrigante que em
áreas como o ambiente ou a cultura, se perpetuem práticas camarárias nefastas para a população e o
território.
No ambiente, por exemplo: o contínuo “arboricídio” municipal, o uso de herbicidas
cancerígenos ou monocultura de eucaliptos na área florestal, são sinais de uma falta de consciência
ecológica para tanto tempo no poder.
Na cultura, o efeito é semelhante, a monocultura oficial, programada pela Câmara
Municipal, é resultado de uma intenção política concreta e de tentações (totalitárias) de
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instrumentalização da cultura. Pelo contrário, pensamos ser evidente que num Estado de Direito, o
que compete à governação é a garantia da liberdade cultural e a protecção dos direitos
fundamentais à cultura.
Já no que se refere à política de descentralização, com a aprovação da Lei-quadro da
transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais (Lei
n.º 50/2018 de 16 de agosto), a dimensão cultural fica reduzida a umas míseras quatro alíneas do
Artº 15, e praticamente despida de qualquer sentido democrático e da sua importância vital para os
territórios.
Comparando os artigos da Lei de 1999 (Transferência de Competências Para as Autarquias
Locais) com os da Lei de 2018, observa-se desde logo a pobreza semântica do legislador, e mais
grave, o tom “salazarista” das expressões utilizadas: «c) Executar o controlo prévio de
espetáculos, bem como a sua fiscalização, autorizando a sua realização quando tal esteja
previsto» (Lei n.º 50/2018, Artigo 15.º). A infeliz expressão: «Executar o controlo prévio de
espectáculos» é de facto digna de um Secretariado de Propaganda Nacional. Desde quando, em
democracia, se executa o controlo de iniciativas culturais?
Estas palavras de ordem nem sequer têm lógica ou adesão à realidade no actual contexto
administrativo. O Decreto-Lei n.º 23/2014 (de 14 de fevereiro), que aprova o regime de
funcionamento dos espectáculos de natureza artística e de instalação e fiscalização dos recintos,
através da Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), contradiz, e bem, a linguagem
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autoritária herdada do antigo regime: «O promotor deixa de estar sujeito a autorização
administrativa para o exercício da respetiva atividade e o seu registo, efetuado no seguimento de
mera comunicação prévia (…) No funcionamento dos espetáculos de natureza artística, elimina -se
o procedimento associado à atual licença de representação...».
Assim, de revogação em revogação, e de lei em lei, vai-se perdendo o entendimento de quais
são afinal as competências das autarquias em matéria de cultura. E, a única coisa que vai crescendo
a olhos vistos é a pobreza da mentalidade política cultural ao nível local.
Propositadamente, ou por ignorância intrínseca, o certo é que para além da visão
tecnocrática e neoliberal aplicada actualmente à administração da cultura local, é o próprio Partido
Socialista que parece ignorar o legado dos Estados Gerais (1995) no que concerne à
descentralização cultural. Na apresentação das linhas programáticas para a cultura, pode ler-se: «
Descentralizar é hoje muito mais do que permitir às regiões periféricas um contacto meramente
pontual e casuístico com actividades culturais exteriores. Torna-se também indispensável dotar
cada vez mais as regiões do País dos meios necessários à concretização de uma vida cultural que,
salvaguardando a especificidade de cada sector de actividade artística, incorpore uma componente
cada vez mais significativa de iniciativa própria, capaz de conduzir, tanto quanto possível, a perfis
culturais diversificados e autónomos».
Nesta que foi – consensualmente - a época de ouro das políticas culturais em Portugal, com
Manuel Maria Carrilho como Ministro da Cultura, é possível encontrar dois dos vectores
fundamentais da descentralização e correlativa municipalização da cultura. Por um lado, salienta-se
que o fundamental num processo de descentralização cultural está para alem de promover o
contacto das populações, meramente pontual e casuístico, com actividades culturais exteriores –
leia-se, a descentralização deve ultrapassar as políticas do “acesso” e a mera democratização da
cultura cujo paradigma reside na acessibilidade da cultura legitimada.
Por outro, afirma-se que, antes pelo contrário, a descentralização reside na necessidade de
dotar o país dos meios necessários à concretização de uma vida cultural que incorpore uma
componente cada vez mais significativa de iniciativa própria, capaz de conduzir, tanto quanto
possível, a perfis culturais diversificados e autónomos. Ou seja, a defesa e a promoção de medidas
em favor: i) Da mudança de paradigma, da democratização (descentralização da oferta) à
democracia cultural (produção própria); ii) Da vitalidade cultural endógena dos territórios; iii) Da
existência de meios e condições dirigidas à produção cultural local por iniciativa própria dos
cidadãos e com autonomia; iv) Da diversidade cultural.
De um modo geral, estamos confrontados com um cenário de governação cultural municipal
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que despreza abertamente a noção de Cultura 3.0 (Pier Luigi Sacco, 2011), a qual significa o
potencial de desenvolvimento cultural e criativo dos territórios e a capacidade de estimular novas
dinâmicas de produção de conteúdos culturais e novos modos de acesso à cultura. E, ignora também
a visão proposta pela Agenda 21 da Cultura (A21C), que encoraja as cidades a elaborar estratégias
culturais a longo prazo e convida o sistema cultural a influenciar os principais instrumentos de
planeamento urbano.
A característica fundamental da Cultura 3.0 é, portanto, a transformação do público, que
ainda é a referência da fase "clássica" da indústria cultural, em praticante, definindo assim um novo,
difuso e cada vez mais múltiplo conceito de autoria e de propriedade intelectual.
Torres Vedras necessita urgentemente de um “renascimento cultural”, que recupere dos
danos provocados pela gestão autárquica ao longos dos últimos mandatados. Um plano feito a
pensar nas pessoas, todas, como obriga a Constituição! Que englobe a pluralidade de formas
culturais e artísticas e as integre no quotidiano, que promova o diálogo intercultural mas também a
economia criativa, que sustente os ecossistemas culturais e naturais. Basta de sujeição a décadas de
estupidificação politicamente organizada!
Como diz o gestor cultural Toni Puig, no seu influente livro, Acabou-se a diversão: ideias e
gestão para a cultura que cria e sustenta a cidadania:
A cultura das cidades é coisa de cidadãos. Não da administração,
como bastantes gestores públicos pensam, e uma esmagadora maioria
dos políticos. A cidade são as pessoas. Todas as pessoas. Os que nela
vivem. E, também, os que nela sobrevivem. As cidades e um mundo
melhor construiremos nós, os cidadãos. Acabou-se a submissão.
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