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terça-feira, 20 de novembro de 2018

Coreia do Norte
Viagem ao país onde quase não se ouve o barulho das crianças
Uma turista tira uma “selfie” numa estação de metro de Pyongyang, a capital da Coreia do Norte <span class="creditofoto">Foto Ed Jones / AFP / Getty Images</span>
Uma turista tira uma “selfie” numa estação de metro de Pyongyang, a capital da Coreia do Norte Foto Ed Jones / AFP / Getty Images
Ir de férias à Coreia do Norte não é tarefa impossível. Um jovem português predispôs-se à aventura para tentar perceber o que era ficção e realidade entre tanta coisa que ouvia sobre um país governado há 70 anos por uma família. O primeiro mito caiu poucos minutos após entrar no país...
Texto Margarida Mota

João Chaleira levava meia dúzia de horas em solo norte-coreano quando se questionou, pela primeira vez, se aquele país seria tão fechado e rígido como tantas vezes ouvira nas notícias. Sentado à mesa de um restaurante, no centro de Pyongyang, partilhava o jantar com sete outros ocidentais que, como ele, tinham escolhido a Coreia do Norte para umas curtas férias. Nos dias seguintes, iam viajar juntos, acompanhados por duas guias norte-coreanas, uma fluente em inglês, a outra em francês.
Quando pensavam que o jantar tinha terminado, as luzes da sala apagaram-se. “Olhámo-nos sem perceber o que se passava”, conta este abrantino de 29 anos, residente em Lisboa desde os 18. “Surgem, então, duas empregadas com um bolo. As guias levantam-se da mesa e começam a caminhar na minha direção. Cantam os ‘parabéns a você’ e entregam-me um ramo de flores. Depois agradecem-me por eu ter escolhido passar o meu aniversário no seu país. Eu, que esperava o tal país rígido, quase agressivo e de poucos sorrisos, sou de repente confrontado com uma festa surpresa em Pyongyang! A ideia de que ia passar os dias seguintes a olhar por cima do ombro caiu logo ali.”
O português não dissera a ninguém que fazia anos, mas uma situação desmascarou-o. À chegada ao país, tinha a recebe-lo, na estação ferroviária de Pyongyang, uma das guias, que logo lhe pediu o passaporte — o documento só seria devolvido no final da viagem. Daí até à preparação da festa, tudo foi feito na maior discrição.
Vista geral sobre a cidade de Pyongyang, atravessada pelo Rio Taedong <span class="creditofoto">Foto Danish Siddiqui / Reuters</span>
Vista geral sobre a cidade de Pyongyang, atravessada pelo Rio Taedong Foto Danish Siddiqui / Reuters
Na Coreia do Norte, só se entra a partir da China, em comboio ou de avião. João optou por ir por terra: primeiro, de Pequim a Dandong (norte da China), onde apanhou outro comboio, que só parou na capital norte-coreana. Ao todo, precisou de quase 24 horas.
O controlo fronteiriço foi feito dentro das carruagens, atravessada a Ponte da Amizade, sobre o Rio Yalu, que separa Dandong e a cidade norte-coreana de Sinuiji. “Ia preparado para um controlo muito rígido. Tinham-me dito que era necessário encarar esse momento com o máximo de cuidado e respeito. Quando chegou a minha vez, a primeira coisa que me perguntarem foi se levava... livros.”
A pergunta não o surpreendeu. Em Pequim, tinha tido um “briefing” preparatório, onde — para além de lhe explicarem que “a Coreia do Norte não existe”, e que o país chama-se República Popular Democrática da Coreia (DPRK, na sigla inglesa) — lhe falaram da realidade que ia encontrar e de regras que havia que cumprir. “Foi-me dito para não levar livros, documentos relacionados com a Coreia ou mesmo bandeiras da Coreia do Sul, Japão ou Estados Unidos estampadas em roupas ou em malas.”
Curiosamente, carimbos no passaporte — ainda que relativos aos mesmos países — não eram problemáticos. Preocupante era a tecnologia que o turista levava consigo para dentro do país. “Camera?” “Phone?” “Computer?”, perguntavam os agentes, num inglês rudimentar, durante a revista, que podia implicar pesquisas nos telemóveis e portáteis.
“Eles anotavam as marcas e os modelos de tudo o que era tecnologia, provavelmente para garantir que os equipamentos que entravam no país eram os mesmos que saíam, e que nenhum ficava lá com informação. Tirando isso, foi tranquilo. Os agentes sorriam e pediam permissão para mexer nas malas. Terminados os procedimentos, podíamos descer do comboio para esticar as pernas. Na plataforma, havia uma senhora a vender ‘duty-free’. Caiu o meu primeiro mito em relação à Coreia do Norte.”
Um passaporte turístico norte-coreano, numa loja de recordações da Torre Juche, um dos monumentos emblemáticos da capital <span class="creditofoto">Foto Danish Siddiqui / Reuters</span>
Um passaporte turístico norte-coreano, numa loja de recordações da Torre Juche, um dos monumentos emblemáticos da capital Foto Danish Siddiqui / Reuters
Entre os companheiros de viagem, havia uma grega, uma alemã, um canadiano, um finlandês e três franceses. Uns mais viajados do que outros, todos com a mesma motivação para ali estarem: espreitar a Coreia do Norte e, dentro do que fosse possível observar, tentar confirmar o que era realidade e ficção entre tanta coisa que tinham ouvido sobre um país governado há 70 anos pela família Kim.
No “briefing” em Pequim, tinham sido aconselhados a evitar conversas de cariz político. Mas o que fazer quando era a própria guia — João interagiu mais com a falante de inglês — a disparar perguntas? “O que achas da reunificação? Achas que vai acontecer?” “Os EUA devem estar envolvidos? E a China?”
Muitas vezes, as discussões começavam a dois e generalizavam-se ao grupo. “No início, tinha receio de responder. Não sabia se podia dizer o que realmente pensava. Com o passar dos dias, a conversa tornou-se mais distendida. Muitas vezes, ela apenas ouvia; noutras, também dava a opinião. Até que ponto era sincera, não sei. Também não consegui perceber se as perguntas eram curiosidade pessoal ou se tinha indicações para recolher as nossas opiniões e reportá-las. Mas tendo sempre presente que não estava num país livre, e que só via aquilo que me deixavam ver, foi outro mito que caiu, o de que não é possível ter conversas políticas na Coreia do Norte.”
Jovens norte-coreanos jogam voleibol, num parque de Pyongyang. É o desporto mais praticado nas ruas da cidade <span class="creditofoto">Foto Ed Jones / AFP / Getty Images</span>
Jovens norte-coreanos jogam voleibol, num parque de Pyongyang. É o desporto mais praticado nas ruas da cidade Foto Ed Jones / AFP / Getty Images
A Coreia do Norte enquanto destino de férias entra nos planos de João Chaleira — um apaixonado por basquetebol licenciado em gestão de empresas — na senda de um conjunto de “viagens míticas” com que sempre sonhou, e que concretizou. Foi de Moscovo a Pequim a bordo do Transiberiano, visitou Machu Picchu (Peru), viu o nascer do sol no Salar de Uyuni (Bolívia), calcorreou Israel e a Palestina, o Japão e a Islândia. Em dezembro foi à Patagónia.
“Quando comecei a pensar na viagem seguinte, quis optar por algo mais marcante a nível pessoal. E surgiu a ideia da península da Coreia, com o propósito de conhecer os dois lados de uma das fronteiras mais fechadas do mundo que separa, para além de países, duas realidades distintas.” Esteve cinco dias no Norte e sete no Sul.
Se ir ao Sul é fácil, ir ao Norte não é necessariamente difícil. Há agências acreditadas pelas autoridades de Pyongyang que vendem “tours”. Para além da capital, João visitou Nampo, Sariwon, Kaesong e a zona desmilitarizada entre as duas Coreias. As burocracias são céleres e simples — o visto é dado à entrada —, mas também criteriosas... Há que assinar um documento em que o turista garante que não trabalha como jornalista, fotógrafo ou escritor. Nesses casos, a agência deixa de poder ser útil e aconselha-o a contactar diretamente as autoridade norte-coreanas — uma forma polida de fechar a porta, salvo honrosas exceções...
No comboio que levou João até Pyongyang, seguia também o ator Michael Palin, dos Monty Pyhton. “Ia lá gravar um programa de viagens para a ‘National Geographic’. Já ia acompanhado por um guia. Tinham fitas azuis no braço que os identificava como jornalistas.”
Dois estudantes fazem a vénia diante do Palácio do Sol, onde estão sepultados Kim Il-sung e Kim Jong-il, avô e pai do atual líder <span class="creditofoto">Foto Ed Jones / AFP / Getty Images</span>
Dois estudantes fazem a vénia diante do Palácio do Sol, onde estão sepultados Kim Il-sung e Kim Jong-il, avô e pai do atual líder Foto Ed Jones / AFP / Getty Images
Na Coreia do Norte, pode-se tirar fotografias em “todo o lado”, salvo onde os guias o proíbem, como edifícios governamentais, controlos militares nas ruas ou situações que revelem pobreza. No metro, pode-se fotografar as estações, mas não os túneis.
Também não é permitida a captação de imagens no Palácio do Sol, onde estão os mausoléus de Kim Il-sung e Kim Jong-il — avô e pai do atual líder, Kim Jong-un — e onde só se entra com traje formal. “Ainda em Lisboa, recebi um email da agência aconselhando a que levasse camisa, calça, gravata e sapatos para a visita ao Palácio do Sol”, diz João.
Em dois momentos do programa, foi também aconselhado ao grupo que fizesse vénias em sinal de respeito: uma no Palácio do Sol, onde o visitante tem de se curvar aos pés, à esquerda e à direita dos corpos (não à cabeça); outra diante das duas grandes estátuas em bronze dos “grandes líderes” falecidos, uma das imagens icónicas de Pyongyang. As vénias não eram obrigatórias, mas quem não as fizesse ficaria excluído das visitas aos locais.
Lembrança do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo, na Torre Juche, um monumento em Pyongyang que homenageia a ideologia do regime norte-coreano, segundo a qual “o homem é dono do seu próprio destino” <span class="creditofoto">Foto João Chaleira</span>
Lembrança do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo, na Torre Juche, um monumento em Pyongyang que homenageia a ideologia do regime norte-coreano, segundo a qual “o homem é dono do seu próprio destino” Foto João Chaleira
Contactar com locais foi um obstáculo intransponível. “Com o passar dos dias, fui percebendo até onde é que podia ‘esticar a corda’. Um dia, quando saíamos do autocarro, havia um senhor a pouca distância, que nos olhava com curiosidade. Levantei a mão, ele sorriu e correspondeu. Num ápice, a guia colou-se a mim para se inteirar do que estava a acontecer. Pedi para tirar uma fotografia com o homem e ela autorizou, agindo sempre com pressa. O senhor seguiu-nos, com o telemóvel na mão, e pediu para tirar uma foto comigo. Ela não deixou.”
Durante a estadia na Coreia do Norte, João nunca ficou sozinho — até ao dia em que se sentiu indisposto. “Estávamos num restaurante. A guia ficou preocupadíssima. Imagino a pressão que sofrem para mostrar o melhor do país e fazer com que os turistas não fiquem com má imagem. Seria um grande problema se um ocidental adoecesse num ‘tour’. Pedi-lhe para ir ‘lá fora’ apanhar ar. Ela hesitou mas deixou. Só depois me apercebi que estive 15 minutos sozinho numa rua de Pyongyang.”
Na memória, João guarda a imagem de uma cidade organizada, incrivelmente limpa e estranhamente silenciosa, com pouco trânsito e onde quase não se ouve barulho de crianças. Diz também nunca se ter sentido em risco. “Antes de partir, perguntavam-me se eu não tinha medo de ir à Coreia do Norte. Eu comecei a fazer essa pergunta a mim próprio e uma resposta foi-se formando na minha cabeça. Eu teria medo de ir ao Afeganistão ou à Síria, pelo fator aleatório: podia estar numa praça e acontecer um atentado terrorista. Na Coreia do Norte, bastaria seguir as indicações das guias e manter o foco: Atenção às fotos! Mantém-te com o grupo! Evita conversas com locais! Atenção às risadas e cotoveladas quando nos contam histórias surreais dos líderes!
“Todas as nossas ações, por mais inocentes que fossem, estavam a ser vigiadas pelas guias. Mas, verdadeiramente, nunca me senti vigiado. Havia um controlo, mas era tão bem feito que eu facilmente me abstraía.”
Em Pyongyang, todos os turistas ficam no Hotel Yanggakdo. Na foto, a receção está cheia de jornalistas estrangeiros, convidados para cobrir as cerimónias do 70º aniversário do país, em setembro passado <span class="creditofoto">Foto Danish Siddiqui / Reuters</span>
Em Pyongyang, todos os turistas ficam no Hotel Yanggakdo. Na foto, a receção está cheia de jornalistas estrangeiros, convidados para cobrir as cerimónias do 70º aniversário do país, em setembro passado Foto Danish Siddiqui / Reuters
No fim de cada dia de visitas, o grupo era deixado no Hotel Yanggakdo, onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang. Inaugurado em 1995, o edifício é um monstro de betão ao estilo soviético, com 1000 quartos distribuídos por 48 andares. “Nós ficávamos no piso 37. Eu ia jurar que os turistas eram alojados nos andares de cima para parecer que o hotel estava cheio, mas estava muito longe disso.”
Sem as guias por perto, por que não arriscar uma escapada noturna pelas ruas da cidade? “O hotel tem uma localização curiosa”, explica João. Situado numa ilha no meio do Rio Taedong, que atravessa a capital, o acesso faz-se através de duas pontes, uma para cada lado. “Não lhe vou chamar prisão, mas é a comparação que ocorre com facilidade...” Não havia guardas à porta do hotel a impedir a saída para o exterior, mas possivelmente se arriscassem ir sozinhos seriam intercetados e mandados para casa.
João Chaleira junto à guia do Museu da Guerra de Libertação da Pátria Vitoriosa, em Pyongyang. A gravata, que tinha sido necessária para visitar o Palácio do Sol, já estava fora do pescoço <span class="creditofoto">Foto João Chaleira</span>
João Chaleira junto à guia do Museu da Guerra de Libertação da Pátria Vitoriosa, em Pyongyang. A gravata, que tinha sido necessária para visitar o Palácio do Sol, já estava fora do pescoço Foto João Chaleira
No hotel, não faltava nada: restaurantes, bares e karaoke; casa de câmbio, posto de correios, terminais de telefone, onde se podia ligar para o estrangeiro. A outra forma de fazer chamadas internacionais passava por comprar um chip de telemóvel norte-coreano, que custava mais de 100 euros e que só permitia fazer chamadas, não receber. No fim da viagem, o chip teria de ficar no país.
O grupo almoçava e jantava quase sempre em restaurantes, numa sala reservada só para turistas, sem possibilidade de contacto com locais. “Em alguns lugares, parecia mesmo que éramos os únicos clientes, numa sala cheia de mesas e cadeiras vazias e uma mesa posta para nós.”
Na última noite, em jeito de despedida, a guia pergunta ao grupo o que quer fazer. Sugerem ir a um pub local. Ela recorda que no hotel há bares com fartura, mas o grupo insiste. Encurralada, ela não dá parte de fraca. Terminado o jantar, mergulham na noite norte-coreana — o grupo com a expectativa de testemunhar como os locais se divertem, as guias com a sensação do dever cumprido. Chegados ao pub, não faltava música nem bebidas. Mas o local estava... vazio.

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