Coreia do Norte
Viagem ao país onde quase não se ouve o barulho das crianças
Ir
de férias à Coreia do Norte não é tarefa impossível. Um jovem português
predispôs-se à aventura para tentar perceber o que era ficção e
realidade entre tanta coisa que ouvia sobre um país governado há 70 anos
por uma família. O primeiro mito caiu poucos minutos após entrar no
país...
Texto Margarida Mota
João
Chaleira levava meia dúzia de horas em solo norte-coreano quando se
questionou, pela primeira vez, se aquele país seria tão fechado e rígido
como tantas vezes ouvira nas notícias. Sentado à mesa de um
restaurante, no centro de Pyongyang, partilhava o jantar com sete outros
ocidentais que, como ele, tinham escolhido a Coreia do Norte para umas
curtas férias. Nos dias seguintes, iam viajar juntos, acompanhados por
duas guias norte-coreanas, uma fluente em inglês, a outra em francês.
Quando
pensavam que o jantar tinha terminado, as luzes da sala apagaram-se.
“Olhámo-nos sem perceber o que se passava”, conta este abrantino de 29
anos, residente em Lisboa desde os 18. “Surgem, então, duas empregadas
com um bolo. As guias levantam-se da mesa e começam a caminhar na minha
direção. Cantam os ‘parabéns a você’ e entregam-me um ramo de flores.
Depois agradecem-me por eu ter escolhido passar o meu aniversário no seu
país. Eu, que esperava o tal país rígido, quase agressivo e de poucos
sorrisos, sou de repente confrontado com uma festa surpresa em
Pyongyang! A ideia de que ia passar os dias seguintes a olhar por cima
do ombro caiu logo ali.”
O português não dissera a
ninguém que fazia anos, mas uma situação desmascarou-o. À chegada ao
país, tinha a recebe-lo, na estação ferroviária de Pyongyang, uma das
guias, que logo lhe pediu o passaporte — o documento só seria devolvido
no final da viagem. Daí até à preparação da festa, tudo foi feito na
maior discrição.
Na
Coreia do Norte, só se entra a partir da China, em comboio ou de avião.
João optou por ir por terra: primeiro, de Pequim a Dandong (norte da
China), onde apanhou outro comboio, que só parou na capital
norte-coreana. Ao todo, precisou de quase 24 horas.
O
controlo fronteiriço foi feito dentro das carruagens, atravessada a
Ponte da Amizade, sobre o Rio Yalu, que separa Dandong e a cidade
norte-coreana de Sinuiji. “Ia preparado para um controlo muito rígido.
Tinham-me dito que era necessário encarar esse momento com o máximo de
cuidado e respeito. Quando chegou a minha vez, a primeira coisa que me
perguntarem foi se levava... livros.”
A pergunta
não o surpreendeu. Em Pequim, tinha tido um “briefing” preparatório,
onde — para além de lhe explicarem que “a Coreia do Norte não existe”, e
que o país chama-se República Popular Democrática da Coreia (DPRK, na
sigla inglesa) — lhe falaram da realidade que ia encontrar e de regras
que havia que cumprir. “Foi-me dito para não levar livros, documentos
relacionados com a Coreia ou mesmo bandeiras da Coreia do Sul, Japão ou
Estados Unidos estampadas em roupas ou em malas.”
Curiosamente,
carimbos no passaporte — ainda que relativos aos mesmos países — não
eram problemáticos. Preocupante era a tecnologia que o turista levava
consigo para dentro do país. “Camera?” “Phone?” “Computer?”, perguntavam
os agentes, num inglês rudimentar, durante a revista, que podia
implicar pesquisas nos telemóveis e portáteis.
“Eles
anotavam as marcas e os modelos de tudo o que era tecnologia,
provavelmente para garantir que os equipamentos que entravam no país
eram os mesmos que saíam, e que nenhum ficava lá com informação. Tirando
isso, foi tranquilo. Os agentes sorriam e pediam permissão para mexer
nas malas. Terminados os procedimentos, podíamos descer do comboio para
esticar as pernas. Na plataforma, havia uma senhora a vender
‘duty-free’. Caiu o meu primeiro mito em relação à Coreia do Norte.”
Entre
os companheiros de viagem, havia uma grega, uma alemã, um canadiano, um
finlandês e três franceses. Uns mais viajados do que outros, todos com a
mesma motivação para ali estarem: espreitar a Coreia do Norte e, dentro
do que fosse possível observar, tentar confirmar o que era realidade e
ficção entre tanta coisa que tinham ouvido sobre um país governado há 70
anos pela família Kim.
No “briefing” em Pequim,
tinham sido aconselhados a evitar conversas de cariz político. Mas o que
fazer quando era a própria guia — João interagiu mais com a falante de
inglês — a disparar perguntas? “O que achas da reunificação? Achas que
vai acontecer?” “Os EUA devem estar envolvidos? E a China?”
Muitas
vezes, as discussões começavam a dois e generalizavam-se ao grupo. “No
início, tinha receio de responder. Não sabia se podia dizer o que
realmente pensava. Com o passar dos dias, a conversa tornou-se mais
distendida. Muitas vezes, ela apenas ouvia; noutras, também dava a
opinião. Até que ponto era sincera, não sei. Também não consegui
perceber se as perguntas eram curiosidade pessoal ou se tinha indicações
para recolher as nossas opiniões e reportá-las. Mas tendo sempre
presente que não estava num país livre, e que só via aquilo que me
deixavam ver, foi outro mito que caiu, o de que não é possível ter
conversas políticas na Coreia do Norte.”
A
Coreia do Norte enquanto destino de férias entra nos planos de João
Chaleira — um apaixonado por basquetebol licenciado em gestão de
empresas — na senda de um conjunto de “viagens míticas” com que sempre
sonhou, e que concretizou. Foi de Moscovo a Pequim a bordo do
Transiberiano, visitou Machu Picchu (Peru), viu o nascer do sol no Salar
de Uyuni (Bolívia), calcorreou Israel e a Palestina, o Japão e a
Islândia. Em dezembro foi à Patagónia.
“Quando
comecei a pensar na viagem seguinte, quis optar por algo mais marcante a
nível pessoal. E surgiu a ideia da península da Coreia, com o propósito
de conhecer os dois lados de uma das fronteiras mais fechadas do mundo
que separa, para além de países, duas realidades distintas.” Esteve
cinco dias no Norte e sete no Sul.
Se ir ao Sul é
fácil, ir ao Norte não é necessariamente difícil. Há agências
acreditadas pelas autoridades de Pyongyang que vendem “tours”. Para além
da capital, João visitou Nampo, Sariwon, Kaesong e a zona
desmilitarizada entre as duas Coreias. As burocracias são céleres e
simples — o visto é dado à entrada —, mas também criteriosas... Há que
assinar um documento em que o turista garante que não trabalha como
jornalista, fotógrafo ou escritor. Nesses casos, a agência deixa de
poder ser útil e aconselha-o a contactar diretamente as autoridade
norte-coreanas — uma forma polida de fechar a porta, salvo honrosas
exceções...
No comboio que levou João até
Pyongyang, seguia também o ator Michael Palin, dos Monty Pyhton. “Ia lá
gravar um programa de viagens para a ‘National Geographic’. Já ia
acompanhado por um guia. Tinham fitas azuis no braço que os identificava
como jornalistas.”
Na
Coreia do Norte, pode-se tirar fotografias em “todo o lado”, salvo onde
os guias o proíbem, como edifícios governamentais, controlos militares
nas ruas ou situações que revelem pobreza. No metro, pode-se fotografar
as estações, mas não os túneis.
Também não é
permitida a captação de imagens no Palácio do Sol, onde estão os
mausoléus de Kim Il-sung e Kim Jong-il — avô e pai do atual líder, Kim
Jong-un — e onde só se entra com traje formal. “Ainda em Lisboa, recebi
um email da agência aconselhando a que levasse camisa, calça, gravata e
sapatos para a visita ao Palácio do Sol”, diz João.
Em
dois momentos do programa, foi também aconselhado ao grupo que fizesse
vénias em sinal de respeito: uma no Palácio do Sol, onde o visitante tem
de se curvar aos pés, à esquerda e à direita dos corpos (não à cabeça);
outra diante das duas grandes estátuas em bronze dos “grandes líderes”
falecidos, uma das imagens icónicas de Pyongyang. As vénias não eram
obrigatórias, mas quem não as fizesse ficaria excluído das visitas aos
locais.
Contactar
com locais foi um obstáculo intransponível. “Com o passar dos dias, fui
percebendo até onde é que podia ‘esticar a corda’. Um dia, quando
saíamos do autocarro, havia um senhor a pouca distância, que nos olhava
com curiosidade. Levantei a mão, ele sorriu e correspondeu. Num ápice, a
guia colou-se a mim para se inteirar do que estava a acontecer. Pedi
para tirar uma fotografia com o homem e ela autorizou, agindo sempre com
pressa. O senhor seguiu-nos, com o telemóvel na mão, e pediu para tirar
uma foto comigo. Ela não deixou.”
Durante a
estadia na Coreia do Norte, João nunca ficou sozinho — até ao dia em que
se sentiu indisposto. “Estávamos num restaurante. A guia ficou
preocupadíssima. Imagino a pressão que sofrem para mostrar o melhor do
país e fazer com que os turistas não fiquem com má imagem. Seria um
grande problema se um ocidental adoecesse num ‘tour’. Pedi-lhe para ir
‘lá fora’ apanhar ar. Ela hesitou mas deixou. Só depois me apercebi que
estive 15 minutos sozinho numa rua de Pyongyang.”
Na
memória, João guarda a imagem de uma cidade organizada, incrivelmente
limpa e estranhamente silenciosa, com pouco trânsito e onde quase não se
ouve barulho de crianças. Diz também nunca se ter sentido em risco.
“Antes de partir, perguntavam-me se eu não tinha medo de ir à Coreia do
Norte. Eu comecei a fazer essa pergunta a mim próprio e uma resposta
foi-se formando na minha cabeça. Eu teria medo de ir ao Afeganistão ou à
Síria, pelo fator aleatório: podia estar numa praça e acontecer um
atentado terrorista. Na Coreia do Norte, bastaria seguir as indicações
das guias e manter o foco: Atenção às fotos! Mantém-te com o grupo!
Evita conversas com locais! Atenção às risadas e cotoveladas quando nos
contam histórias surreais dos líderes!
“Todas as
nossas ações, por mais inocentes que fossem, estavam a ser vigiadas
pelas guias. Mas, verdadeiramente, nunca me senti vigiado. Havia um
controlo, mas era tão bem feito que eu facilmente me abstraía.”
No
fim de cada dia de visitas, o grupo era deixado no Hotel Yanggakdo,
onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang.
Inaugurado em 1995, o edifício é um monstro de betão ao estilo
soviético, com 1000 quartos distribuídos por 48 andares. “Nós ficávamos
no piso 37. Eu ia jurar que os turistas eram alojados nos andares de
cima para parecer que o hotel estava cheio, mas estava muito longe
disso.”
Sem as guias por perto, por que não
arriscar uma escapada noturna pelas ruas da cidade? “O hotel tem uma
localização curiosa”, explica João. Situado numa ilha no meio do Rio
Taedong, que atravessa a capital, o acesso faz-se através de duas
pontes, uma para cada lado. “Não lhe vou chamar prisão, mas é a
comparação que ocorre com facilidade...” Não havia guardas à porta do
hotel a impedir a saída para o exterior, mas possivelmente se
arriscassem ir sozinhos seriam intercetados e mandados para casa.
No
hotel, não faltava nada: restaurantes, bares e karaoke; casa de câmbio,
posto de correios, terminais de telefone, onde se podia ligar para o
estrangeiro. A outra forma de fazer chamadas internacionais passava por
comprar um chip de telemóvel norte-coreano, que custava mais de 100
euros e que só permitia fazer chamadas, não receber. No fim da viagem, o
chip teria de ficar no país.
O grupo almoçava e
jantava quase sempre em restaurantes, numa sala reservada só para
turistas, sem possibilidade de contacto com locais. “Em alguns lugares,
parecia mesmo que éramos os únicos clientes, numa sala cheia de mesas e
cadeiras vazias e uma mesa posta para nós.”
Na
última noite, em jeito de despedida, a guia pergunta ao grupo o que quer
fazer. Sugerem ir a um pub local. Ela recorda que no hotel há bares com
fartura, mas o grupo insiste. Encurralada, ela não dá parte de fraca.
Terminado o jantar, mergulham na noite norte-coreana — o grupo com a
expectativa de testemunhar como os locais se divertem, as guias com a
sensação do dever cumprido. Chegados ao pub, não faltava música nem
bebidas. Mas o local estava... vazio.
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