DIÁRIO DE CARLOS – 10
A minha casa paterna. Cheguei ontem noite alta. Acendi todas as luzes e os meus pais não se materializaram. Abandonaram vestígios: no quarto deles a cómoda da minha mãe, com os seus artefactos com os quais ela compunha aquela imagem sempre agradável com que recebia o meu pai regressado do trabalho, me recebia a mim, muitos anos depois, habitante única daquela mansão, quando eu a visitava; no chão, ao lado da cama, o mesmo lado da cama que ele ocupou durante dezenas de anos, umas pantufas do meu pai. Salvaguardei tudo nos seus lugares para tentar travar o devir do tempo. Cristalizado no quarto, nas estantes dos livros na sala de estar. Fixar o tempo, fixar num ponto do devir a casa como uma ilha no caos. Eu sou feito de acontecimentos, tudo o é, contudo quando reentro nesta casa, quando a ela regresso, nada aconteceu dentro dela, excepto a erosão macia e quase imperceptível dos materiais. Nesta casa parada no fluxo do tempo não há vida humana, a matéria não emite afectos: sento-me no longo e largo sofá onde o meu pai dormia as sestas de domingo e não o sinto, nada resta; passo no corredor atapetado, os quadros nas paredes, e nada sinto que daí venha, nem das escadas de madeira em caracol que levam aos quartos. Somente o silêncio fracturado pelos meus passos. Uma casa assim está esvaziada. E eu encontro-me só.
Procuro um livro nas estantes para me ocupar. Ligo o televisor, elimino o som. Abandono o livro, retiro o computador da mala, busco o correio. Dois e-mails chamam-me a atenção: um, do meu chefe convocando-me para a cerimónia de lançamento da primeira pedra, início da construção da ponte, da minha ponte. Já sabia, o tipo não quer é que eu me balde! É burro, pois eu nunca faltaria a esse momento. A ponte que eu desenhei e vou acompanhar passo a passo é o projecto da minha vida. De uma vida. Perseguirei implacavelmente os engenheiros, os mestres e contramestres, cada operário, para que nada falhe e tudo se cumpra escrupulosamente conforme o que arquitectei.
O outro e-mail é do Professor. O título provoca-me perplexidade e alguma inquietação: «Credo». Leio: «Redijo este testamento intelectual numa altura em que me encontro na plena posse das minhas faculdades mentais. Quer desapareça amanhã, quer viva mais dez ou vinte anos deteriorando-se o corpo e a mente, o que eu agora afirmo é o que fica a valer.
A crença de que não possuímos alma mas uma mente inseparada do corpo, um cérebro que é o corpo, é uma evidência racional e científica absolutamente irrefutável. A nossa Espécie é apenas uma entre milhões delas, que deriva de um elo comum a diversas espécies aparentadas e que sobreviveu à última extinção em massa que o planeta sofreu (como as aves são sobreviventes dos dinossáurios). O que destrói, cria. Somos o resultado de ontogéneses proporcionadas por erros de cópia (vários elos ou ramos da árvore de hominídeos extinguiram-se sem apelo nem agravo), mutações acidentais e de uma prolongada e dura caminhada adaptativa, cujo sucesso se deve à existência de um cérebro e de algumas vantagens físicas que nos permitiram colonizar todos os habitats, caçar, pescar, construir fortificações e abrigos, inventar a agricultura, as cidades, os Estados, a escrita, as aprendizagens, os valores e as regras, as explicações sobre o mundo e os modos de viver, de produzir, reproduzir e acumular os excedentes.
Inventámos, por força das emoções e dos modos do viver, ficções fantasiosas de seres sobre-humanos, sobrenaturais, contudo nenhuma realidade transcendente, fora da Natureza, explica melhor a Natureza do que os conhecimentos que estão ao nosso dispor: este universo ao qual pertencemos teve uma origem natural e terá uma morte irreversível, e tudo que de fundamental ainda ignoramos, saber-se-á muito provavelmente neste século e felizes daqueles que possam acompanhar os fantásticos progressos das ciências (esses sim, fantásticos!). Somente existe uma Substância, que é material, pura imanência sem transcendência alguma, que se exprime de diversos e diferenciados modos, físico-químicos, biológicos, sociais (sem a natureza física não se produziriam efeitos de natureza simbólica ou imaterial).
Creio nestes axiomas porque apresentam-se hoje à razão com indubitável evidência. E estas certezas devo-as à Ciência. Por isso ela constitui uma das fontes inesgotáveis do Conhecimento e do progresso social, do humanismo, isto é, da humanização de cada e de todos os indivíduos. Poderá e deverá ser de todos se soubermos aprender com a utilidade e outros valores intrínsecos das actividades humanas que a nossa história geral nos oferece. Os progressos da consciência são inextinguíveis: apesar de todos os recuos e alienações é imensa a parte da humanidade que já não pensa hoje como se pensava há 100 anos atrás! Apesar das derrotas, das mentiras, da ignorância domesticada e induzida, uma ampla percentagem da população mundial acredita, ainda que muitos o ocultem por medo ou pessimismo, que os modos de produzir os bens e de se apropriar dos excedentes (materiais e imateriais) constituem o motor determinante das múltiplas e mutáveis configurações dos organismos societários. Este “senso-comum” (que o senso-comum alienado dominante subverteu) permite-lhe, ou permitir-lhe-á, deduzir (e esta é razão “natural” que se opõe à “razão consensual”, a que é imposta pela ideologia dominante) que uma transformação revolucionária (socializar os meios e bens de produção que hoje já são sociais) do modo de produção actual é não só possível como absolutamente necessária para a sobrevivência da Casa Comum, para o bem-estar de todos que habitam a mesma Aldeia Global. Não há mentira, ou teoria resignada e conformista, que me convença que esta sociedade injusta e agressiva, seja o fim-da-história. Que todas as reformas revolucionárias sejam por via pacífica é o que deseja qualquer indivíduo pacífico e razoável. O perigo que encerra uma auto-defesa violenta contra uma violência imposta é que a violência da auto-defesa seja desproporcionada, ou que os meios justifiquem os fins. Se não queremos que um regime entre numa escalada de autoritarismo, não o ataquemos: qual o animal que não aprende a agressão quando é agredido? O principal problema com a realização do socialismo «num só país» prende-se com a pressa de fazer num só dia, por meios coercivos, aquilo que se poderia fazer pacifica e democraticamente em meses ou anos. Uma ditadura é sempre uma ditadura por mais eufemismos e teorias que a queiram justificar. O socialismo ou é democrático, ou não é socialismo.
Eis o meu credo. Ditado pela minha razão que nenhuma doença ainda afectou. Se a primeira parte é irrefutável (ou se aplicarmos o critério de Popper, é falsificável e, portanto, é verdadeira), a segunda, reconheço, é passível de refutação. Não deixa, no entanto, de ser racional. Não são os erros e crimes cometidos no passado em seu nome (quantos crimes se cometem e cometeram em nome do que quer que seja!) que a tornam irracional, são os erros e crimes eles próprios.»
2 comentários:
"O socialismo ou é democrático, ou não é socialismo..."
excelente o texto.
abraço, abraço
Obrigado e um abraço sincero.
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