Diário de Marta -10
Sim, procuro sair mais, seguir o conselho da minha mãe. Aliás, uma solução óbvia. Desde sempre que a soube, a dificuldade foi encontrar vontade, iniciativa. Somente seguimos os conselhos para os quais já estávamos preparados. Ontem percorri a pé a cidade. Se excluirmos a zona norte que cresce rapidamente, a cidade de Torres Vedras percorre-se sem qualquer esforço. Observei com uma atenção que nunca lhe prestei a Igreja e Convento da Graça. Ao que dizem foi convento dos Eremitas Calçados (curiosa esta classificação! Andariam de facto descalços os outros?). É austero mas adornado com uma elevada e bela torre sineira. Pouco mais posso descrever com termos técnicos que a minha ignorância nestes assuntos não é pequena (admiro os médicos que arranjam tempo para serem cultos). O que posso afirmar como leiga é que o retábulo da igreja é bem bonito. As esculturas são delicadas nos tons e nas roupagens. O claustro é a parte de que mais gostei: um sorriso breve do sol de inverno adoçava-lhe as colunas e fazia apetecer a tranquilidade dos bancos. Visitei o Museu Municipal, a documentação sobre as invasões francesas, esse período histórico do qual todos julgam saber muito e na realidade não sabem nada.
Não pude visitar a Igreja da Misericórdia, ali ao pé do café Havanesa, por estar encerrada, foi pena porque me disseram que era bastante bonita. Aproveitei para visitar a igreja de São Pedro, pequena e confortável, com uma torre sineira que me informaram ser quinhentista mas reconstruída depois do terramoto de 1755, e um portal manuelino ao qual tirei algumas fotos (a fotografia poderia ser o meu entretenimento preferido se tivesse tempo e aquele à vontade que faz de um fotógrafo um autêntico caçador). Atravessei depois a pequena praceta que se situa nas traseiras, pejada de carros e dirigi-me para o Chafariz dos Canos, monstruosamente enquadrado por uns prédios horrorosos. Um monumento de que nunca vi igual. Merecia uma área condigna e um restauro que o tornasse vivo e atractivo. Regressei à praça da igreja de São Pedro, enfiei pela ruela agradável que desemboca nos Paços do Concelho, com um bonita fachada, virei à esquerda para descansar um pouco num banco aprazível da praça de Machado Santos, que é para mim talvez a praça mais bonita da cidade, ao lado a igreja de Santiago que já visitara antes. A vontade de comer invadiu-me sem aviso, mesmo assim decidi-me a subir o Centro histórico, recuperado recentemente, a guardar respeito e silêncio no interior da Igreja de Santa Maria do Castelo, a mais hospitaleira das igrejas de Torres Vedras, com uma luz diáfana e um belo púlpito. Não sou de rezas, contudo apeteceu-me rezar. Não são as catedrais faustosas que os soberanos mandavam construir para garantir a imortalidade deles, como os faraós, que me comovem, mas as capelas, as igrejinhas modestas, às vezes perdidas e solitárias no ventre das grandes metrópoles, outras vezes peregrinas no alto dos montes.
Não sei se Deus existe, se não. Se existir que tenha em paz ao lado dele a minha filha morta para este mundo.
Amanhã vou visitar o professor Ramos, meu mestre nos tempos já longínquos do Liceu. Não sei o que me deu, que pressentimento, que vontade, que fui descobri-lo na Net, provavelmente por causa de um dossiê de grupo que descobri por acaso, numas arrumações, em casa. E-mail enviado, e-mail respondido de pronto. Vi a fotografia dele num blog, a cabeça encanecida, os olhos com aquele brilho peculiar que o tornava interessante. Vou visitá-lo, não é longe. Vou seguir o conselho de minha mãe.
Sem comentários:
Enviar um comentário