István Mészáros: um marxismo para as revoluções do século XXI
A luta de classes é também uma luta ideológica. O marxismo de Mészáros inspirou aqueles que não renunciaram a esta luta em um momento de terrível defensiva.
Por Valério Arcary.
Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas.
Duas meias verdades não perfazem uma verdade.
Eduard Douwes Dekker, ou Multatuli, Ideias
Duas meias verdades não perfazem uma verdade.
Eduard Douwes Dekker, ou Multatuli, Ideias
Se o vaso não está limpo,
tudo o que nele derramares se azeda.
Horácio, Epístolas 1.2
tudo o que nele derramares se azeda.
Horácio, Epístolas 1.2
István Mészáros foi uma das vozes mais
lúcidas na denúncia do neoliberalismo. O seu marxismo se destacou porque
o filósofo pensou além, com altivez e grandeza, e, por isso,
permaneceu, década após década, um irreconciliável anticapitalista. A
crítica que Mészáros construiu ao neoliberalismo hegemônico não o
aproximou daqueles que censuravam os mantras liberais a partir de uma
perspectiva nostálgica do pós-guerra (1945-1979), no qual as políticas
estatistas keynesianas foram dominantes – o marxismo de Mészáros é
antiestatista. Tampouco se reconciliou com projetos restauracionistas
controlados, como na China – o marxismo de Mészáros é internacionalista.
O argumento de que não existiria
alternativa político-histórica superior ao neoliberalismo, assumido como
programa político pelos partidos conservadores em escala mundial e,
depois, também pela social-democracia europeia, sobretudo na restauração
capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu, não resistiu à prova da
história. Mas foi, evidentemente, muito influente nas últimas três
décadas. Apesar do conteúdo histórico-social regressivo das reformas
implantadas, encontrou resistência frágil nos meios acadêmicos. Tal se
verificou porque a luta de classes é também uma luta ideológica. Uma
luta em que pode-se estar, dependendo das circunstâncias
político-históricas, na ofensiva ou na defensiva. O marxismo de Mészáros
inspirou aqueles que não renunciaram a esta luta em um momento de
terrível defensiva.
É verdadeiro que a experiência soviética
demonstrou que a transição ao socialismo seria muito mais complexa do
que tinha sido imaginado pelo marxismo do século XIX. Mas esta é somente
uma meia verdade. É fato que os regimes de partido único que se
autoproclamavam socialistas foram ditaduras que cometeram crimes
aberrantes. Mas esta é somente outra meia verdade. Porque é verdade
também que a propriedade estatizada e o planejamento econômico
promoveram façanhas colossais na URSS, na China e em Cuba. E não é menos
correto que seria inimaginável a regulação econômica do capitalismo
norte-americano, europeu e japonês sem a vitória das revoluções sociais
do século XX. O marxismo de Mészáros alimenta com paixão e compaixão uma
avaliação das vicissitudes do combate histórico pelo socialismo do
século XX. É o marxismo de quem ainda aposta na capacidade dos
trabalhadores de serem o sujeito de sua própria emancipação.
Face ao colapso da ex-URSS e a crise da
esquerda, as obras de Mészáros insistiram em uma crítica radical do
capitalismo e na defesa da atualidade do socialismo, e escaparam às duas
tentações mais simplificadoras: o retorno às fórmulas keynesianas
estatistas ou a defesa de alguma versão de socialismo de mercado. As
obras de Mészáros se inscrevem na linhagem do marxismo revolucionário
que considera que o sistema capitalista entrou, irreversivelmente, em
decadência histórica. Afirmam a necessidade do socialismo como
socialização da produção social. Para ir além do capital, argumentou
Mészáros, seria necessário ir além dos programas nacionalistas de
estatização da propriedade privada de alguns setores econômicos
estratégicos que inspiraram a maior parte da esquerda socialista no
século XX. Embora progressivos, estes programas seriam insuficientes
para romper com o capital, um sistema mundial. Mészáros nos diz:
“Vivemos na era de uma
crise histórica sem precedentes. Sua severidade pode ser medida pelo
fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais
ou menos extensa, como as vividas no passado, mas a uma crise estrutural
– profunda – do próprio sistema do capital. Como tal, esta crise afeta,
pela primeira vez em toda a história, o conjunto da humanidade,
exigindo para esta sobreviver algumas mudanças fundamentais na maneira
pela qual o metabolismo social é controlado […] O capital, no século XX,
foi forçado a responder às crises cada vez mais extensas (que trouxeram
consigo duas guerras mundiais, antes impensáveis) aceitando a
“hibridização” sob a forma de uma sempre crescente intromissão do Estado
no processo socioeconômico de reprodução como um modo de superar suas
dificuldades, ignorando os perigos que a adoção deste remédio traz, em
longo prazo, para a viabilidade do sistema.”1
Ao longo dos últimos 150 anos, a
interpretação marxista afirmou que o antagonismo principal do
capitalismo seria a oposição entre o capital e o trabalho. Os marxistas
nunca sustentaram, por suposto, que esta contradição, expressa no
protagonismo proletário na luta de classes, fosse o único conflito da
época histórica. Argumentaram, todavia, que seria o mais decisivo para o
destino da vida civilizada. Reconheceram a legitimidade das lutas das
nações oprimidas contra Estados opressores. Abraçaram a luta pelas
liberdades contra os regimes tirânicos. Assumiram a justiça das
reivindicações feministas contra uma ordem social patriarcal. Admitiram a
gravidade crescente da crise ambiental. Acusaram o racismo e fizeram
sua a luta contra a homofobia. Denunciaram que a preservação tardia do
capitalismo ameaçaria a sobrevivência mesma da civilização. Cunharam a
palavra de ordem, ao mesmo tempo um chamado à luta e um prognóstico:
socialismo ou barbárie. Mészáros é um herdeiro deste marxismo.
Mas, acima de tudo, os marxistas
hierarquizaram a luta do proletariado contra a propriedade privada como a
sua principal causa, porque identificaram os trabalhadores como o
sujeito social capaz de derrotar o sistema. O que os diferenciou de
outros lutadores sociais não foi nem o seu obreirismo nem a sua
resistência à luta por reformas. Foi a resistência dos reformistas,
fossem sindicalistas, nacionalistas, democratas, feministas, ecologistas
ou antirracistas, de unir as suas justas reivindicações ao combate
decisivo de nossa época histórica, a luta política para derrotar o
capitalismo. Esta luta é política porque exige instinto de poder. Todos
os movimentos sociais que se recusaram à luta política perderam, mais
cedo ou mais tarde, o instinto de poder. Esse impulso é, ao mesmo tempo,
intuição e perspectiva estratégica, consciência de classe e programa.
Esse discernimento demonstrou-se indispensável para a construção de um
bloco das classes exploradas e oprimidas. Renunciar à política é
demitir-se da luta pelo poder. Aqueles que o fizeram, abraçaram
objetivamente uma prática de reformas do capitalismo.
Mészáros é herdeiro de um marxismo que
alerta que a época das reformas ficou para trás. O capitalismo
contemporâneo é um sistema incapaz de autorregulação. O que não é o
mesmo que dizer que as reformas são impossíveis. Significa reconhecer
com serenidade que as poucas reformas do sistema com conteúdo
histórico-social progressivo estão permanentemente ameaçadas pela
eclosão da próxima crise do ciclo que caracteriza o metabolismo do
capital.
Esta análise mais ortodoxa estava
fundamentada na apreciação da dificuldade do capitalismo regular-se a si
próprio, a não ser por períodos historicamente efêmeros e diante de
circunstâncias excepcionais: quando desafiado pelo perigo de contágio de
situações revolucionárias, como depois da vitória de revoluções
sociais, ou quando colocado diante de catástrofe mundial diante de
crises econômicas explosivas, como depois de 1929. Tanto as crises como
as revoluções, embora tenham se manifestado de forma desigual no tempo e
no espaço, revelaram a existência de limites históricos para o
capitalismo. O sistema não tem capacidade de renovação ou regeneração
indefinida. Não obstante, esses limites históricos não são, também,
rígidos.
Mas este marxismo que mantinha a
avaliação da atualidade da luta revolucionária anticapitalista foi
politicamente marginal e intelectualmente minoritário. Mészáros foi um
dos herdeiros desta tradição nos meios acadêmicos e merece
reconhecimento. Não foram muitos aqueles que tiveram a clareza e a
firmeza de marchar contra a corrente.
Quis a ironia da história que a explosão
da crise econômica depois do colapso do banco de investimentos Lehman
Brothers, em setembro de 2008, tenha exigido do governo Bush em fim de
mandato – em concertação com o Partido Democrata e o então candidato à
presidência Barack Obama – a iniciativa de salvar o sistema financeiro
norte-americano, inundando o mercado mundial com trilhões de dólares que
elevaram a dívida pública do Estado do imperialismo dominante a
píncaros incomparáveis a qualquer outro período da história do
capitalismo. O papel do Estado revelou-se igualmente decisivo na Europa
Ocidental quando um governo após o outro, de Brown a Sarkozy, de
Sócrates a Zapatero, viram-se forçados a fazer o contrário do que tinham
defendido até então. Conservadores e social-democratas tinham passado
os 25 anos anteriores à crise precipitada em 2008, desde a posse de
González na Espanha e o giro de Mitterrand na França, repetindo versões
muito semelhantes do discurso privatista e antissocial que ganhou
supremacia ideológica com Reagan e Thatcher.
Três anos depois do início da crise
internacional de 2008, a retórica neoliberal – na versão menos
desonesta: “ruim com nosso remédio, pior sem ele” – ainda está longe,
por suposto, de ter sido banida da vida política. Não atravessou, porém,
incólume os últimos 30 meses. Foi necessária à escala mundial uma
operação de resgate estatal que não tem precedentes. As crises das
dívidas públicas na Grécia, Irlanda e, em maior ou menor medida, em
Portugal, Espanha e Itália vêm exigindo dos seus governos medidas
antioperárias – anulação dos 14º e 13º salários, redução salarial,
elevação de impostos indiretos, reformas previdenciárias com elevação da
idade mínima etc. – que evidenciaram a disposição das burguesias
europeias de realizar uma verdadeira guerra social para recuperar as
condições de competitividade de suas economias no mercado mundial.
É possível um capitalismo regulado nos alvores do século XXI?
Inseridos, como estamos, no curso de
acontecimentos de primeira grandeza, o esforço de compreender a dinâmica
do capitalismo não é simples nem poderia ser conclusivo. A história tem
boas razões para manter reservas sobre a urgência do tempo presente.
Mas tem também o desafio de estudar os acontecimentos das últimas duas
décadas em perspectiva, ou seja, analisando seus significados e
proporções em marcos mais gerais. A questão de fundo é identificar a
dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Poderia acontecer novamente um
crescimento sustentado, como nas três décadas do pós-guerra? Seria
possível um capitalismo regulado, ou seja, com negociação de reformas
distributivas da renda, que garantisse uma extensão e não uma redução de
direitos? Os nostálgicos do keynesianismo se apressam em assegurar que
sim.
Uma crise com formas explosivas como a de
1929 está, muito provavelmente, descartada. O mais próximo a uma crise
explosiva internacional, depois de 1929, foi a crise desencadeada em
2008. Considerando-se as formas mais controladas das crises econômicas –
em função da blindagem dos Bancos Centrais, apoiados pelo Banco de
Compensações Internacionais da Basileia, demonstrando uma audácia
inusitada no socorro de emergência em escala mundial –, uma depressão
como 1929 não parece o cenário mais provável. Contudo, o custo
destrutivo para a superação da crise não poderá ser contornado sem um
aumento da superexploração à escala global, inclusive nos EUA e na União
Europeia, e exigirá uma longa recessão.
Seria razoável concluir que as últimas
décadas sugerem que a época histórica de declínio do capital teria sido
superada? Ou caminhamos na direção de uma crise capitalista mundial de
longa duração, com ciclos de recuperação mais curtos e vertigens
destrutivas mais severas, com alternância de pressões inflacionárias e
ajustes recessivos? Mészáros avança uma análise nessa direção:
“A absoluta necessidade
de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão […]
trouxe consigo também uma intransponível limitação histórica. Não
apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês,
mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capital em geral.
Pois esse sistema de controle do metabolismo social teve de poder impor
sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente
irracional, independentemente do caráter devastador de suas
consequências […] O século XX presenciou muitas tentativas malsucedidas
que almejavam a superação das limitações sistêmicas do capital, do
keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente
com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que
aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema
do capital, comparado à sua forma econômica clássica (com implicações
extremamente problemáticas para o futuro), mas não são soluções
estruturais viáveis.”2
O que merece ser destacado nessa
surpreendente linha de análise? Face ao colapso da ex-URSS, Mészáros
relocaliza o eixo da análise na crítica da ordem do capital. Recusa as
coqueluches intelectuais reformistas predominantes na esquerda
latino-americana. Não se deixa iludir pelo significado das políticas
públicas de emergência contra a pobreza, que, mesmo quando justas, como
os planos de renda mínima focalizados, são mais do que insuficientes.
Porque uma política de emergência, nos limites do capitalismo, não
substitui a necessidade da ruptura com o capital. Não se deixa seduzir
pela defesa de um capitalismo de Estado saudoso do cardenismo mexicano
dos anos 1930, do nasserismo egípcio dos anos 1950 ou da Frente de
Libertação Nacional (FLN) argelina dos anos 1970. Não alimenta
esperanças na restauração capitalista “à la chinesa”. Afasta-se das
versões sociais-liberais de políticas compensatórias. Mészáros nos
convida a refletir sobre o novo lugar do Estado para “salvar o
capitalismo dos capitalistas”.
Planejamento ou mercado
Comecemos pelo princípio: a regulação
econômica pura, nos últimos dois séculos, nunca existiu. Ela sempre
resulta, em economias complexas, ou seja, industriais, de diferentes
graus de combinação de métodos de alocação de recursos: ou por alguma
forma de planejamento pelo Estado ou pelo mercado, por meio da oferta e
procura. O predomínio de uma dessas formas não exclui o emprego da
outra. Nem socialismo é igual a estatismo, nem capitalismo é sinônimo de
economia de mercado. Já existiu uma experiência de transição ao
socialismo que admitiu a existência controlada de mercado, como na fase
russa da Nova Política Econômica (NEP), no início dos anos 1920, assim
como o capitalismo já assumiu formas estatistas até severas, tanto sob o
nazifascismo de Hitler ou Mussolini quanto sob a social-democracia na
Escandinávia. Por outro lado, as grandes corporações, em sua luta feroz
por mercados, não podem dispensar formas bastante sofisticadas de
planejamento, mesmo na época dos monopólios.
O novo na segunda metade do século XX foi
que o Estado, nas economias capitalistas mais avançadas, foi obrigado,
por razões fundamentalmente políticas, ou seja, exógenas às necessidades
do ciclo, ou extraeconômicas, a exercer um papel redimensionado de
controle macroeconômico, no sentido de atenuar os efeitos das crises
cíclicas. Razões políticas nos remetem à avaliação das relações de
forças entre as classes e entre os Estados. Quando a estratégia
keynesiana se tornou dominante, passou a ser o programa comum dos
partidos do regime, estivessem eles na situação ou na oposição. Este
novo papel do Estado como instrumento de uma negociação econômica para
manter a paz social interna – por exemplo, na Inglaterra sob o Partido
Trabalhista, na França sob De Gaulle, na Alemanha sob Adenauer – exigiu
um aumento da elasticidade política dos regimes democrático-liberais no
pós-guerra.
O chamado Estado de bem-estar social
surgiu na Escandinávia pelas mãos da social-democracia, mas foi
implantado, na Alemanha, com Adenauer, enquanto o Partido
Social-Democrata Alemão (SPD) estava na oposição, e na França, com De
Gaulle, enquanto o Partido Comunista Francês (PCF) estava na oposição.
Não puderam evitar a depressão lenta, mas prolongada, a partir dos anos
1970. Desde então, mesmo se com diferenças retóricas, o programa
neoliberal passou a ser a plataforma dominante e o plano de governo dos
mesmos partidos eleitorais que antes compartilhavam a defesa das
políticas anticíclicas keynesianas.
É para esse fenômeno que Mészáros nos
chama a atenção quando procura explicar porque, em todos os países
centrais, não importando a alternância de partidos – trabalhistas ou
conservadores na Inglaterra, social-democratas ou pós-gaullistas na
França etc. –, a política é sempre a mesma. Os partidos do regime
democrático são, cada vez mais, diferentes frações públicas de um só
partido, em grande medida, uma internacionalização do modelo
norte-americano, que opõe democratas a republicanos. Em outras palavras,
o Estado como forma objetivada da política a serviço do capital não é
somente uma superestrutura determinada pelas flutuações da economia ou
pelas oscilações das relações de forças entre as classes e das lutas
políticas entre partidos, mas deve ser compreendido como um instrumento
integrado de economia e política em um grau superior ao que existiu
antes das guerras mundiais da primeira metade do século XX. Um aparelho
estrutural do processo de sobreacumulação de capital e, nesse novo
lugar, uma das chaves de explicação do relativo sucesso do imperialismo
durante a fase dos trinta anos de crescimento do pós-guerra.
As condições que permitiram esse relativo
sucesso – sucesso porque houve crescimento prolongado; relativo porque
não impediu, por exemplo, a vaga revolucionária de 1968 – deixaram de
existir no último quarto de século. Esgotaram-se as possibilidades de um
capitalismo estatista, apoiado no consumo improdutivo da corrida
armamentista, na extensão do crédito, na elevação das dívidas públicas,
na regulação anticíclica através dos investimentos estatais. Quando se
observa o peso dos crescentes déficits norte-americanos e a fragilização
do dólar, por exemplo, conclui-se sem dificuldades que há limites
crescentes para o endividamento dos Estados. A emergência de moratórias
em série na Europa depois da crise grega é mais uma confirmação da
análise de Mészáros.
São essas mudanças históricas profundas, que poderíamos talvez definir como uma fase de crise crônica, que explicam a agonia das políticas keynesianas, assim como a nostalgia que elas deixaram. Em Para além do capital,
Mészáros explora as possibilidades dessa conceituação do Estado e a
necessidade de uma política de esquerda que vá além dos limites do
capitalismo, portanto, um programa socialista para além da lei do valor.
Ou seja, um projeto para a transição pós-capitalista que defenda que a
socialização não pode se confundir nem se resumir à estatização.
Boa parte da reflexão inspirada no
marxismo já dedicou atenção a esse tema. Mas o fez admitindo as
premissas liberais da escassez crônica e a defesa da democracia liberal
contra os despotismos stalinistas. Tais teorias estabeleciam uma falsa
relação de causalidade entre as estatizações e a burocratização do
Estado. Mas não foi a expropriação do capital que levou à burocratização
das experiências de transição, mas sim a derrota da revolução mundial, o
isolamento nacional e o atraso econômico-cultural das sociedades em que
a revolução triunfou. Essas circunstâncias trágicas foram um acidente
da história, não uma determinação histórica.
Entretanto, se aceitas as premissas
liberais que contagiaram o pensamento da esquerda, decorreria como
consequência programática a oposição às estatizações do passado: a
defesa da necessidade de privatização das estatais, pelo menos das não
estratégicas. A adesão à viabilidade do terceiro setor, público não
estatal, é o seu corolário mais moderado. O mais radical concluirá que o
Estado deve transferir para as famílias a responsabilidade da educação,
da saúde e da previdência, reservando-se o papel de políticas sociais
de renda mínima reduzidas à atenção dos setores sociais mais
vulneráveis, os excluídos. Esse tipo de antiestatismo de “esquerda” tem
sido uma das vias de acesso de ex-marxistas para as ideias da Terceira
Via, pela defesa da desobrigação do Estado de serviços públicos que
seriam melhor fornecidos por organizações não governamentais (ONGs) etc.
Daí até uma passagem direta para o campo do neoliberalismo há um
pequeno passo: deixa de ser difícil reconhecer alguma forma de
propriedade privada como estímulo da iniciativa econômica, do impulso de
crescimento, ou a preservação do mercado como mecanismo de alocação de
recursos, de busca de maior produtividade e de garantia de algum
alinhamento relativo de preços.
O horror, compreensível, às aberrações
burocráticas na ex-URSS dá fôlego a essas elaborações. No entanto,
Mészáros segue outro caminho. Nisso reside a sua originalidade e o seu
mérito. Reconhece o fracasso da estatização e do planejamento
burocrático, mas não retira a conclusão da inevitabilidade do recurso às
engrenagens cegas do mercado. Defende a necessidade e a possibilidade
de ir além da propriedade privada e do mercado, portanto, além da lei do
valor, o que nos convida à discussão da hierarquia das necessidades de
consumo e da possibilidade de alocação de recursos em função das
necessidades mais intensamente sentidas, ou das possibilidades de um
planejamento democrático apoiado na livre participação popular. Ou seja,
em última análise, a discussão sobre escassez e abundância relativas,
para além dos limites impostos pela premissa liberal de que a humanidade
estaria condenada a ser escrava de necessidades ilimitadas. Um mundo de
necessidades de consumo ilimitadas e cambiantes seria um mundo em que a
permanência do racionamento, pela forma monetária da distribuição
intermediada pela moeda, isto é, dos salários, seria inevitável.
É possível, no entanto, ir além desses
dogmas, como nos recorda Mészáros. Ir além do valor significaria ir além
da produção e distribuição reguladas pelo mercado, logo, pela ganância
do capital. O Estado foi pensado na tradição da II Internacional,
influenciada por Kautsky e herdada pelo stalinismo, como a instância da
superestrutura, separado da infraestrutura pela mediação das classes
sociais. O Estado seria um elemento exterior ao processo da reprodução
ampliada, mais como um fator exógeno do que endógeno. Mészáros
inverte a perspectiva e sugere que a experiência do século XX – em suas
palavras, o período mais destrutivo da história do capitalismo – teria
demonstrado que o lugar do Estado seria absolutamente vital para a
preservação do sistema, inclusive do ponto de vista econômico,
garantindo a continuidade da acumulação de capital.
Esta nova centralidade do Estado seria
uma refração de uma etapa histórica em que os conflitos de classe já não
se expressam predominantemente na forma de um conflito entre reação e
reforma (como teria sido, pelo menos, até as últimas décadas do século
XIX), mas nos novos termos, mais agudos, de um confronto entre contrarrevolução e revolução.
O lugar do Estado passou, portanto, a ser mais complexo. Precisou
intervir na regulação mercantil livre e agir de forma preventiva em
relação aos efeitos destruidores e terrivelmente desestabilizadores das
crises de superprodução: “vinte e nove nunca mais” passou a ser uma
palavra de ordem programática do capital.
Durante os trinta anos do pós-guerra, o
Estado foi onipresente, seja pelo seu papel empreendedor, com o aumento
impressionante dos gastos públicos (construção civil, despesas com
funcionalismo vinculadas aos novos serviços na educação, saúde e
transportes), seja pelo impulso ao crédito (a antecipação para o
presente do consumo futuro, alargando as dimensões do mercado).
Por outro lado, durante a etapa mundial
aberta entre 1945-1989, o fenômeno da revolução social e política
adquiriu novas características: o eixo das lutas de classes mais
radicalizadas deslocou-se do centro para a periferia do sistema, do
Norte para o Sul, do Ocidente para o Oriente, e foi quase sempre
indivisível da guerra. O papel do Estado se agigantou como regulador de
uma economia que teve, durante décadas, como primeiro e mais dinâmico
ramo produtivo o setor de armamentos, em geral, um setor estatal.
A estagnação prolongada dos últimos
trinta anos ainda não foi superada, apesar de todos os instrumentos a
que recorreu o neoliberalismo. O pequeno boom da economia
norte-americana nos anos 1990, com Clinton, ou a recuperação sob Bush,
entre 2003 e 2008, foram erráticos e culminaram em bolhas especulativas
devastadoras, comparados com as décadas entre 1945-1955 ou 1955-1973. A
queda da taxa média de lucro, que se manifestou na crise dos anos 1970
em atrofia de investimentos – estagnação e inflação conjugadas –,
colocou por terra o velho Estado interventor keynesiano.
Contudo, um dos paradoxos do último
período é que, em certo sentido, foi preciso mais Estado para que
houvesse menos Estado. Ao mesmo tempo em que se retirava de algumas
áreas produtivas que, no passado, exigiam investimentos volumosos e
retorno lento, ou seja, pouco cobiçadas pela iniciativa privada, como o
saneamento básico, a telefonia ou a produção e distribuição de
eletricidade – hoje, por uma série de razões, irresistivelmente
atraentes para as megacorporações –, o Estado vinha aumentando tanto a
sua arrecadação fiscal quanto os seus níveis de endividamento,
transferindo, todos os anos, trilhões de dólares para o capital
financeiro em escala mundial. Hoje, o faz, no entanto, em proporções
muito diferentes. O lugar atual do endividamento público na América
Latina, por exemplo, em relação aos Produtos Internos Brutos (PIBs)
nacionais, em comparação à carga fiscal – em média, oscilando entre 50% e
60% dos PIBs –, é muito maior do que há 25 anos. O mesmo fenômeno é
ainda mais significativo nas economias capitalistas centrais.
A tendência ao bonapartismo vem também se
acentuando, sobretudo, mas não apenas, nos países dependentes.
Expliquemo-nos: tem sido necessário mais Estado repressivo, na forma de
reforço do aparelho de informação e repressão, para que haja menos
Estado regulador, na forma de políticas públicas que estimulem o pleno
emprego e a busca da correspondente paz social. Assim como fracassou, no
pós-guerra, a estratégia reformista de transição pacífica ao socialismo
nos países centrais, deixando como herança um Estado de “bem-estar
social” em crise, fracassará a estratégia reformista contemporânea de um
capitalismo de “bem-estar social”, apoiado na assistência social focada
e políticas de renda mínima. Esta é uma das conclusões de Sérgio Lessa,
em comentário a Mészáros:
“É essa concepção de
fundo que possibilita a Mészáros concluir que a estratégia reformista
que predominou no movimento operário neste século resultou não no
fortalecimento da luta dos trabalhadores contra o capital, mas, pelo
contrário, na assimilação pelo Estado desses mesmos partidos e
sindicatos. Estes também terminaram por assumir como suas as
necessidades do capital. O “projeto dos (sociais-democratas) de
institucionalizar o socialismo por meios parlamentares estava condenado
ao fracasso desde o começo. Pois eles visam o impossível. Eles prometiam
transformar, de forma gradual, em algo radicalmente diferente – isto é,
uma ordem socialista – um sistema de controle sociorreprodutivo sobre o
qual eles não tinham nem poderiam ter qualquer controle significativo
no e através do Parlamento. Por ser o capital, por suas próprias
determinações ontológicas, incontrolável,” investir energias de um
movimento social em tentar reformar um sistema substancialmente
incontrolável é um trabalho de Sísifo, já que a viabilidade da reforma,
mesmo a mais limitada, é inconcebível.”3
Muitos observadores já compararam a
euforia com a globalização econômica turbinada pelo crescimento das
economias asiáticas, em especial da China, com a embriaguez que
precedeu, nos anos 1920 do século passado, o curto-circuito de 1929. De
qualquer forma, restam poucas dúvidas de que a restauração capitalista
na ex-URSS e no Leste Europeu só pode ser apreendida no seu significado
historicamente mais profundo, se considerarmos a preservação do controle
do capital sobre o mercado mundial. Nunca como hoje foi tão poderoso o
controle dos países imperialistas sobre o mundo, mas também nunca como
hoje foi tão incerto e perigoso o futuro da civilização: tudo que existe
carrega consigo os germes da sua destruição. O período histórico de apogeu do capitalismo parece coincidir hegelianamente com a etapa de sua decadência.
A irrupção das revoluções contemporâneas é uma demonstração inequívoca
de que vivemos uma época do declínio do capital. Elas já começaram a
mostrar sua face há dez anos na América Latina, e no início de 2011 no
mundo árabe. Revoluções populares não são nunca prematuras. A revolução
contemporânea desperta como revolução democrática, mas, quando os
trabalhadores descobrem a força de impacto de sua mobilização, ameaça
radicalizar-se rapidamente como revolução anticapitalista. A incerteza
sobre a dinâmica futura das revoluções é grande? Sim. A dúvida sobre a
capacidade do proletariado de se afirmar de forma independente contra o
capital cresceu? Sim. Mas o socialismo permanece como a única aposta de
defesa da vida civilizada? Sim, também. O marxismo de Mészáros fica como
uma inspiração para as revoluções do século XXI.
Notas* Artigo publicado originalmente no livro István Mészáros e os desafios do tempo histórico, organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile.
1 István Mészáros, “A crise estrutural do capital”, em Outubro (São Paulo, Xamã), n. 4, mar. 2000, p. 11. Esse artigo corresponde à introdução escrita por Mészáros para a edição em farsi, publicada por exilados iranianos, do seu livro Para além do capital [São Paulo, Boitempo, 2002]. A versão em inglês foi publicada na revista Monthly Review, fev. 1998, sob o título The Uncontrollability of Globalizing Capital.
2 Ibidem, p. 9.
3 Sérgio Lessa, “István Mészáros”, em Crítica Marxista (São Paulo, Xamã), n. 6, 1998, p. 143.
***
Valério Arcary é Doutor em história pela USP, é professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile.
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