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domingo, 6 de maio de 2018

István Mészáros: um marxismo para as revoluções do século XXI

A luta de classes é também uma luta ideológica. O marxismo de Mészáros inspirou aqueles que não renunciaram a esta luta em um momento de terrível defensiva.


Por Valério Arcary.

Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas.
Duas meias verdades não perfazem uma verdade.
Eduard Douwes Dekker, ou Multatuli, Ideias
Se o vaso não está limpo,
tudo o que nele derramares se azeda.
Horácio, Epístolas 1.2
István Mészáros foi uma das vozes mais lúcidas na denúncia do neoliberalismo. O seu marxismo se destacou porque o filósofo pensou além, com altivez e grandeza, e, por isso, permaneceu, década após década, um irreconciliável anticapitalista. A crítica que Mészáros construiu ao neoliberalismo hegemônico não o aproximou daqueles que censuravam os mantras liberais a partir de uma perspectiva nostálgica do pós-guerra (1945-1979), no qual as políticas estatistas keynesianas foram dominantes – o marxismo de Mészáros é antiestatista. Tampouco se reconciliou com projetos restauracionistas controlados, como na China – o marxismo de Mészáros é internacionalista.

O argumento de que não existiria alternativa político-histórica superior ao neoliberalismo, assumido como programa político pelos partidos conservadores em escala mundial e, depois, também pela social-democracia europeia, sobretudo na restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu, não resistiu à prova da história. Mas foi, evidentemente, muito influente nas últimas três décadas. Apesar do conteúdo histórico-social regressivo das reformas implantadas, encontrou resistência frágil nos meios acadêmicos. Tal se verificou porque a luta de classes é também uma luta ideológica. Uma luta em que pode-se estar, dependendo das circunstâncias político-históricas, na ofensiva ou na defensiva. O marxismo de Mészáros inspirou aqueles que não renunciaram a esta luta em um momento de terrível defensiva.
É verdadeiro que a experiência soviética demonstrou que a transição ao socialismo seria muito mais complexa do que tinha sido imaginado pelo marxismo do século XIX. Mas esta é somente uma meia verdade. É fato que os regimes de partido único que se autoproclamavam socialistas foram ditaduras que cometeram crimes aberrantes. Mas esta é somente outra meia verdade. Porque é verdade também que a propriedade estatizada e o planejamento econômico promoveram façanhas colossais na URSS, na China e em Cuba. E não é menos correto que seria inimaginável a regulação econômica do capitalismo norte-americano, europeu e japonês sem a vitória das revoluções sociais do século XX. O marxismo de Mészáros alimenta com paixão e compaixão uma avaliação das vicissitudes do combate histórico pelo socialismo do século XX. É o marxismo de quem ainda aposta na capacidade dos trabalhadores de serem o sujeito de sua própria emancipação.
Face ao colapso da ex-URSS e a crise da esquerda, as obras de Mészáros insistiram em uma crítica radical do capitalismo e na defesa da atualidade do socialismo, e escaparam às duas tentações mais simplificadoras: o retorno às fórmulas keynesianas estatistas ou a defesa de alguma versão de socialismo de mercado. As obras de Mészáros se inscrevem na linhagem do marxismo revolucionário que considera que o sistema capitalista entrou, irreversivelmente, em decadência histórica. Afirmam a necessidade do socialismo como socialização da produção social. Para ir além do capital, argumentou Mészáros, seria necessário ir além dos programas nacionalistas de estatização da propriedade privada de alguns setores econômicos estratégicos que inspiraram a maior parte da esquerda socialista no século XX. Embora progressivos, estes programas seriam insuficientes para romper com o capital, um sistema mundial. Mészáros nos diz:
“Vivemos na era de uma crise histórica sem precedentes. Sua severidade pode ser medida pelo fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado, mas a uma crise estrutural – profunda – do próprio sistema do capital. Como tal, esta crise afeta, pela primeira vez em toda a história, o conjunto da humanidade, exigindo para esta sobreviver algumas mudanças fundamentais na maneira pela qual o metabolismo social é controlado […] O capital, no século XX, foi forçado a responder às crises cada vez mais extensas (que trouxeram consigo duas guerras mundiais, antes impensáveis) aceitando a “hibridização” sob a forma de uma sempre crescente intromissão do Estado no processo socioeconômico de reprodução como um modo de superar suas dificuldades, ignorando os perigos que a adoção deste remédio traz, em longo prazo, para a viabilidade do sistema.”1
Ao longo dos últimos 150 anos, a interpretação marxista afirmou que o antagonismo principal do capitalismo seria a oposição entre o capital e o trabalho. Os marxistas nunca sustentaram, por suposto, que esta contradição, expressa no protagonismo proletário na luta de classes, fosse o único conflito da época histórica. Argumentaram, todavia, que seria o mais decisivo para o destino da vida civilizada. Reconheceram a legitimidade das lutas das nações oprimidas contra Estados opressores. Abraçaram a luta pelas liberdades contra os regimes tirânicos. Assumiram a justiça das reivindicações feministas contra uma ordem social patriarcal. Admitiram a gravidade crescente da crise ambiental. Acusaram o racismo e fizeram sua a luta contra a homofobia. Denunciaram que a preservação tardia do capitalismo ameaçaria a sobrevivência mesma da civilização. Cunharam a palavra de ordem, ao mesmo tempo um chamado à luta e um prognóstico: socialismo ou barbárie. Mészáros é um herdeiro deste marxismo.
Mas, acima de tudo, os marxistas hierarquizaram a luta do proletariado contra a propriedade privada como a sua principal causa, porque identificaram os trabalhadores como o sujeito social capaz de derrotar o sistema. O que os diferenciou de outros lutadores sociais não foi nem o seu obreirismo nem a sua resistência à luta por reformas. Foi a resistência dos reformistas, fossem sindicalistas, nacionalistas, democratas, feministas, ecologistas ou antirracistas, de unir as suas justas reivindicações ao combate decisivo de nossa época histórica, a luta política para derrotar o capitalismo. Esta luta é política porque exige instinto de poder. Todos os movimentos sociais que se recusaram à luta política perderam, mais cedo ou mais tarde, o instinto de poder. Esse impulso é, ao mesmo tempo, intuição e perspectiva estratégica, consciência de classe e programa. Esse discernimento demonstrou-se indispensável para a construção de um bloco das classes exploradas e oprimidas. Renunciar à política é demitir-se da luta pelo poder. Aqueles que o fizeram, abraçaram objetivamente uma prática de reformas do capitalismo.
Mészáros é herdeiro de um marxismo que alerta que a época das reformas ficou para trás. O capitalismo contemporâneo é um sistema incapaz de autorregulação. O que não é o mesmo que dizer que as reformas são impossíveis. Significa reconhecer com serenidade que as poucas reformas do sistema com conteúdo histórico-social progressivo estão permanentemente ameaçadas pela eclosão da próxima crise do ciclo que caracteriza o metabolismo do capital.
Esta análise mais ortodoxa estava fundamentada na apreciação da dificuldade do capitalismo regular-se a si próprio, a não ser por períodos historicamente efêmeros e diante de circunstâncias excepcionais: quando desafiado pelo perigo de contágio de situações revolucionárias, como depois da vitória de revoluções sociais, ou quando colocado diante de catástrofe mundial diante de crises econômicas explosivas, como depois de 1929. Tanto as crises como as revoluções, embora tenham se manifestado de forma desigual no tempo e no espaço, revelaram a existência de limites históricos para o capitalismo. O sistema não tem capacidade de renovação ou regeneração indefinida. Não obstante, esses limites históricos não são, também, rígidos.
Mas este marxismo que mantinha a avaliação da atualidade da luta revolucionária anticapitalista foi politicamente marginal e intelectualmente minoritário. Mészáros foi um dos herdeiros desta tradição nos meios acadêmicos e merece reconhecimento. Não foram muitos aqueles que tiveram a clareza e a firmeza de marchar contra a corrente.
Quis a ironia da história que a explosão da crise econômica depois do colapso do banco de investimentos Lehman Brothers, em setembro de 2008, tenha exigido do governo Bush em fim de mandato – em concertação com o Partido Democrata e o então candidato à presidência Barack Obama – a iniciativa de salvar o sistema financeiro norte-americano, inundando o mercado mundial com trilhões de dólares que elevaram a dívida pública do Estado do imperialismo dominante a píncaros incomparáveis a qualquer outro período da história do capitalismo. O papel do Estado revelou-se igualmente decisivo na Europa Ocidental quando um governo após o outro, de Brown a Sarkozy, de Sócrates a Zapatero, viram-se forçados a fazer o contrário do que tinham defendido até então. Conservadores e social-democratas tinham passado os 25 anos anteriores à crise precipitada em 2008, desde a posse de González na Espanha e o giro de Mitterrand na França, repetindo versões muito semelhantes do discurso privatista e antissocial que ganhou supremacia ideológica com Reagan e Thatcher.
Três anos depois do início da crise internacional de 2008, a retórica neoliberal – na versão menos desonesta: “ruim com nosso remédio, pior sem ele” – ainda está longe, por suposto, de ter sido banida da vida política. Não atravessou, porém, incólume os últimos 30 meses. Foi necessária à escala mundial uma operação de resgate estatal que não tem precedentes. As crises das dívidas públicas na Grécia, Irlanda e, em maior ou menor medida, em Portugal, Espanha e Itália vêm exigindo dos seus governos medidas antioperárias – anulação dos 14º e 13º salários, redução salarial, elevação de impostos indiretos, reformas previdenciárias com elevação da idade mínima etc. – que evidenciaram a disposição das burguesias europeias de realizar uma verdadeira guerra social para recuperar as condições de competitividade de suas economias no mercado mundial.

É possível um capitalismo regulado nos alvores do século XXI?

Inseridos, como estamos, no curso de acontecimentos de primeira grandeza, o esforço de compreender a dinâmica do capitalismo não é simples nem poderia ser conclusivo. A história tem boas razões para manter reservas sobre a urgência do tempo presente. Mas tem também o desafio de estudar os acontecimentos das últimas duas décadas em perspectiva, ou seja, analisando seus significados e proporções em marcos mais gerais. A questão de fundo é identificar a dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Poderia acontecer novamente um crescimento sustentado, como nas três décadas do pós-guerra? Seria possível um capitalismo regulado, ou seja, com negociação de reformas distributivas da renda, que garantisse uma extensão e não uma redução de direitos? Os nostálgicos do keynesianismo se apressam em assegurar que sim.
Uma crise com formas explosivas como a de 1929 está, muito provavelmente, descartada. O mais próximo a uma crise explosiva internacional, depois de 1929, foi a crise desencadeada em 2008. Considerando-se as formas mais controladas das crises econômicas – em função da blindagem dos Bancos Centrais, apoiados pelo Banco de Compensações Internacionais da Basileia, demonstrando uma audácia inusitada no socorro de emergência em escala mundial –, uma depressão como 1929 não parece o cenário mais provável. Contudo, o custo destrutivo para a superação da crise não poderá ser contornado sem um aumento da superexploração à escala global, inclusive nos EUA e na União Europeia, e exigirá uma longa recessão.
Seria razoável concluir que as últimas décadas sugerem que a época histórica de declínio do capital teria sido superada? Ou caminhamos na direção de uma crise capitalista mundial de longa duração, com ciclos de recuperação mais curtos e vertigens destrutivas mais severas, com alternância de pressões inflacionárias e ajustes recessivos? Mészáros avança uma análise nessa direção:
“A absoluta necessidade de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão […] trouxe consigo também uma intransponível limitação histórica. Não apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês, mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capital em geral. Pois esse sistema de controle do metabolismo social teve de poder impor sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente irracional, independentemente do caráter devastador de suas consequências […] O século XX presenciou muitas tentativas malsucedidas que almejavam a su­peração das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado à sua forma econômica clássica (com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não são soluções estruturais viáveis.”2
O que merece ser destacado nessa surpreendente linha de análise? Face ao colapso da ex-URSS, Mészáros relocaliza o eixo da análise na crítica da ordem do capital. Recusa as coqueluches intelectuais reformistas predominantes na esquerda latino-americana. Não se deixa iludir pelo significado das políticas públicas de emergência contra a pobreza, que, mesmo quando justas, como os planos de renda mínima focalizados, são mais do que insuficientes. Porque uma política de emergência, nos limites do capitalismo, não substitui a necessidade da ruptura com o capital. Não se deixa seduzir pela defesa de um capitalismo de Estado saudoso do cardenismo mexicano dos anos 1930, do nasserismo egípcio dos anos 1950 ou da Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina dos anos 1970. Não alimenta esperanças na restauração capitalista “à la chinesa”. Afasta-se das versões sociais-liberais de políticas compensatórias. Mészáros nos convida a refletir sobre o novo lugar do Estado para “salvar o capitalismo dos capitalistas”.

Planejamento ou mercado

Comecemos pelo princípio: a regulação econômica pura, nos últimos dois séculos, nunca existiu. Ela sempre resulta, em economias complexas, ou seja, industriais, de diferentes graus de combinação de métodos de alocação de recursos: ou por alguma forma de planejamento pelo Estado ou pelo mercado, por meio da oferta e procura. O predomínio de uma dessas formas não exclui o emprego da outra. Nem socialismo é igual a estatismo, nem capitalismo é sinônimo de economia de mercado. Já existiu uma experiência de transição ao socialismo que admitiu a existência controlada de mercado, como na fase russa da Nova Política Econômica (NEP), no início dos anos 1920, assim como o capitalismo já assumiu formas estatistas até severas, tanto sob o nazifascismo de Hitler ou Mussolini quanto sob a social-democracia na Escandinávia. Por outro lado, as grandes corporações, em sua luta feroz por mercados, não podem dispensar formas bastante sofisticadas de planejamento, mesmo na época dos monopólios.
O novo na segunda metade do século XX foi que o Estado, nas economias capitalistas mais avançadas, foi obrigado, por razões fundamentalmente políticas, ou seja, exógenas às necessidades do ciclo, ou extraeconômicas, a exercer um papel redimensionado de controle macroeconômico, no sentido de atenuar os efeitos das crises cíclicas. Razões políticas nos remetem à avaliação das relações de forças entre as classes e entre os Estados. Quando a estratégia keynesiana se tornou dominante, passou a ser o programa comum dos partidos do regime, estivessem eles na situação ou na oposição. Este novo papel do Estado como instrumento de uma negociação econômica para manter a paz social interna – por exemplo, na Inglaterra sob o Partido Trabalhista, na França sob De Gaulle, na Alemanha sob Adenauer – exigiu um aumento da elasticidade política dos regimes democrático-liberais no pós-guerra.
O chamado Estado de bem-estar social surgiu na Escandinávia pelas mãos da social-democracia, mas foi implantado, na Alemanha, com Adenauer, enquanto o Partido Social-Democrata Alemão (SPD) estava na oposição, e na França, com De Gaulle, enquanto o Partido Comunista Francês (PCF) estava na oposição. Não puderam evitar a depressão lenta, mas prolongada, a partir dos anos 1970. Desde então, mesmo se com diferenças retóricas, o programa neoliberal passou a ser a plataforma dominante e o plano de governo dos mesmos partidos eleitorais que antes compartilhavam a defesa das políticas anticíclicas keynesianas.
É para esse fenômeno que Mészáros nos chama a atenção quando procura explicar porque, em todos os países centrais, não importando a alternância de partidos – trabalhistas ou conservadores na Inglaterra, social-democratas ou pós-gaullistas na França etc. –, a política é sempre a mesma. Os partidos do regime democrático são, cada vez mais, diferentes frações públicas de um só partido, em grande medida, uma internacionalização do modelo norte-americano, que opõe democratas a republicanos. Em outras palavras, o Estado como forma objetivada da política a serviço do capital não é somente uma superestrutura determinada pelas flutuações da economia ou pelas oscilações das relações de forças entre as classes e das lutas políticas entre partidos, mas deve ser compreendido como um instrumento integrado de economia e política em um grau superior ao que existiu antes das guerras mundiais da primeira metade do século XX. Um aparelho estrutural do processo de sobreacumulação de capital e, nesse novo lugar, uma das chaves de explicação do relativo sucesso do imperialismo durante a fase dos trinta anos de crescimento do pós-guerra.
As condições que permitiram esse relativo sucesso – sucesso porque houve crescimento prolongado; relativo porque não impediu, por exemplo, a vaga revolucionária de 1968 – deixaram de existir no último quarto de século. Esgotaram-se as possibilidades de um capitalismo estatista, apoiado no consumo improdutivo da corrida armamentista, na extensão do crédito, na elevação das dívidas públicas, na regulação anticíclica através dos investimentos estatais. Quando se observa o peso dos crescentes déficits norte-americanos e a fragilização do dólar, por exemplo, conclui-se sem dificuldades que há limites crescentes para o endividamento dos Estados. A emergência de moratórias em série na Europa depois da crise grega é mais uma confirmação da análise de Mészáros.
São essas mudanças históricas profundas, que poderíamos talvez definir como uma fase de crise crônica, que explicam a agonia das políticas keynesianas, assim como a nostalgia que elas deixaram. Em Para além do capital, Mészáros explora as possibilidades dessa conceituação do Estado e a necessidade de uma política de esquerda que vá além dos limites do capitalismo, portanto, um programa socialista para além da lei do valor. Ou seja, um projeto para a transição pós-capitalista que defenda que a socialização não pode se confundir nem se resumir à estatização.
Boa parte da reflexão inspirada no marxismo já dedicou atenção a esse tema. Mas o fez admitindo as premissas liberais da escassez crônica e a defesa da democracia liberal contra os despotismos stalinistas. Tais teorias estabeleciam uma falsa relação de causalidade entre as estatizações e a burocratização do Estado. Mas não foi a expropriação do capital que levou à burocratização das experiências de transição, mas sim a derrota da revolução mundial, o isolamento nacional e o atraso econômico-cultural das sociedades em que a revolução triunfou. Essas circunstâncias trágicas foram um acidente da história, não uma determinação histórica.
Entretanto, se aceitas as premissas liberais que contagiaram o pensamento da esquerda, decorreria como consequência programática a oposição às estatizações do passado: a defesa da necessidade de privatização das estatais, pelo menos das não estratégicas. A adesão à viabilidade do terceiro setor, público não estatal, é o seu corolário mais moderado. O mais radical concluirá que o Estado deve transferir para as famílias a responsabilidade da educação, da saúde e da previdência, reservando-se o papel de políticas sociais de renda mínima reduzidas à atenção dos setores sociais mais vulneráveis, os excluídos. Esse tipo de antiestatismo de “esquerda” tem sido uma das vias de acesso de ex-marxistas para as ideias da Terceira Via, pela defesa da desobrigação do Estado de serviços públicos que seriam melhor fornecidos por organizações não governamentais (ONGs) etc. Daí até uma passagem direta para o campo do neoliberalismo há um pequeno passo: deixa de ser difícil reconhecer alguma forma de propriedade privada como estímulo da iniciativa econômica, do impulso de crescimento, ou a preservação do mercado como mecanismo de alocação de recursos, de busca de maior produtividade e de garantia de algum alinhamento relativo de preços.
O horror, compreensível, às aberrações burocráticas na ex-URSS dá fôlego a essas elaborações. No entanto, Mészáros segue outro caminho. Nisso reside a sua originalidade e o seu mérito. Reconhece o fracasso da estatização e do planejamento burocrático, mas não retira a conclusão da inevitabilidade do recurso às engrenagens cegas do mercado. Defende a necessidade e a possibilidade de ir além da propriedade privada e do mercado, portanto, além da lei do valor, o que nos convida à discussão da hierarquia das necessidades de consumo e da possibilidade de alocação de recursos em função das necessidades mais intensamente sentidas, ou das possibilidades de um planejamento democrático apoiado na livre participação popular. Ou seja, em última análise, a discussão sobre escassez e abundância relativas, para além dos limites impostos pela premissa liberal de que a humanidade estaria condenada a ser escrava de necessidades ilimitadas. Um mundo de necessidades de consumo ilimitadas e cambiantes seria um mundo em que a permanência do racionamento, pela forma monetária da distribuição intermediada pela moeda, isto é, dos salários, seria inevitável.
É possível, no entanto, ir além desses dogmas, como nos recorda Mészáros. Ir além do valor significaria ir além da produção e distribuição reguladas pelo mercado, logo, pela ganância do capital. O Estado foi pensado na tradição da II Internacional, influenciada por Kautsky e herdada pelo stalinismo, como a instância da superestrutura, separado da infraestrutura pela mediação das classes sociais. O Estado seria um elemento exterior ao processo da reprodução ampliada, mais como um fator exógeno do que endógeno. Mészáros inverte a perspectiva e sugere que a experiência do século XX – em suas palavras, o período mais destrutivo da história do capitalismo – teria demonstrado que o lugar do Estado seria absolutamente vital para a preservação do sistema, inclusive do ponto de vista econômico, garantindo a continuidade da acumulação de capital.
Esta nova centralidade do Estado seria uma refração de uma etapa histórica em que os conflitos de classe já não se expressam predominantemente na forma de um conflito entre reação e reforma (como teria sido, pelo menos, até as últimas décadas do século XIX), mas nos novos termos, mais agudos, de um confronto entre contrarrevolução e revolução. O lugar do Estado passou, portanto, a ser mais complexo. Precisou intervir na regulação mercantil livre e agir de forma preventiva em relação aos efeitos destruidores e terrivelmente desestabilizadores das crises de superprodução: “vinte e nove nunca mais” passou a ser uma palavra de ordem programática do capital.
Durante os trinta anos do pós-guerra, o Estado foi onipresente, seja pelo seu papel empreendedor, com o aumento impressionante dos gastos públicos (construção civil, despesas com funcionalismo vinculadas aos novos serviços na educação, saúde e transportes), seja pelo impulso ao crédito (a antecipação para o presente do consumo futuro, alargando as dimensões do mercado).
Por outro lado, durante a etapa mundial aberta entre 1945-1989, o fenômeno da revolução social e política adquiriu novas características: o eixo das lutas de classes mais radicalizadas deslocou-se do centro para a periferia do sistema, do Norte para o Sul, do Ocidente para o Oriente, e foi quase sempre indivisível da guerra. O papel do Estado se agigantou como regulador de uma economia que teve, durante décadas, como primeiro e mais dinâmico ramo produtivo o setor de armamentos, em geral, um setor estatal.
A estagnação prolongada dos últimos trinta anos ainda não foi superada, apesar de todos os instrumentos a que recorreu o neoliberalismo. O pequeno boom da economia norte-americana nos anos 1990, com Clinton, ou a recuperação sob Bush, entre 2003 e 2008, foram erráticos e culminaram em bolhas especulativas devastadoras, comparados com as décadas entre 1945-1955 ou 1955-1973. A queda da taxa média de lucro, que se manifestou na crise dos anos 1970 em atrofia de investimentos – estagnação e inflação conjugadas –, colocou por terra o velho Estado interventor keynesiano.
Contudo, um dos paradoxos do último período é que, em certo sentido, foi preciso mais Estado para que houvesse menos Estado. Ao mesmo tempo em que se retirava de algumas áreas produtivas que, no passado, exigiam investimentos volumosos e retorno lento, ou seja, pouco cobiçadas pela iniciativa privada, como o saneamento básico, a telefonia ou a produção e distribuição de eletricidade – hoje, por uma série de razões, irresistivelmente atraentes para as megacorporações –, o Estado vinha aumentando tanto a sua arrecadação fiscal quanto os seus níveis de endividamento, transferindo, todos os anos, trilhões de dólares para o capital financeiro em escala mundial. Hoje, o faz, no entanto, em proporções muito diferentes. O lugar atual do endividamento público na América Latina, por exemplo, em relação aos Produtos Internos Brutos (PIBs) nacionais, em comparação à carga fiscal – em média, oscilando entre 50% e 60% dos PIBs –, é muito maior do que há 25 anos. O mesmo fenômeno é ainda mais significativo nas economias capitalistas centrais.
A tendência ao bonapartismo vem também se acentuando, sobretudo, mas não apenas, nos países dependentes. Expliquemo-nos: tem sido necessário mais Estado repressivo, na forma de reforço do aparelho de informação e repressão, para que haja menos Estado regulador, na forma de políticas públicas que estimulem o pleno emprego e a busca da correspondente paz social. Assim como fracassou, no pós-guerra, a estratégia reformista de transição pacífica ao socialismo nos países centrais, deixando como herança um Estado de “bem-estar social” em crise, fracassará a estratégia reformista contemporânea de um capitalismo de “bem-estar social”, apoiado na assistência social focada e políticas de renda mínima. Esta é uma das conclusões de Sérgio Lessa, em comentário a Mészáros:
“É essa concepção de fundo que possibilita a Mészáros concluir que a estratégia reformista que predominou no movimento operário neste século resultou não no fortalecimento da luta dos trabalhadores contra o capital, mas, pelo contrário, na assimilação pelo Estado desses mesmos partidos e sindicatos. Estes também terminaram por assumir como suas as necessidades do capital. O “projeto dos (sociais-democratas) de institucionalizar o socialismo por meios parlamentares estava condenado ao fracasso desde o começo. Pois eles visam o impossível. Eles prometiam transformar, de forma gradual, em algo radicalmente diferente – isto é, uma ordem socialista – um sistema de controle sociorreprodutivo sobre o qual eles não tinham nem poderiam ter qualquer controle significativo no e através do Parlamento. Por ser o capital, por suas próprias determinações ontológicas, incontrolável,” investir energias de um movimento social em tentar reformar um sistema substancialmente incontrolável é um trabalho de Sísifo, já que a viabilidade da reforma, mesmo a mais limitada, é inconcebível.”3
Muitos observadores já compararam a euforia com a globalização econômica turbinada pelo crescimento das economias asiáticas, em especial da China, com a embriaguez que precedeu, nos anos 1920 do século passado, o curto-circuito de 1929. De qualquer forma, restam poucas dúvidas de que a restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu só pode ser apreendida no seu significado historicamente mais profundo, se considerarmos a preservação do controle do capital sobre o mercado mundial. Nunca como hoje foi tão poderoso o controle dos países imperialistas sobre o mundo, mas também nunca como hoje foi tão incerto e perigoso o futuro da civilização: tudo que existe carrega consigo os germes da sua destruição. O período histórico de apogeu do capitalismo parece coincidir hegelianamente com a etapa de sua decadência. A irrupção das revoluções contemporâneas é uma demonstração inequívoca de que vivemos uma época do declínio do capital. Elas já começaram a mostrar sua face há dez anos na América Latina, e no início de 2011 no mundo árabe. Revoluções populares não são nunca prematuras. A revolução contemporânea desperta como revolução democrática, mas, quando os trabalhadores descobrem a força de impacto de sua mobilização, ameaça radicalizar-se rapidamente como revolução anticapitalista. A incerteza sobre a dinâmica futura das revoluções é grande? Sim. A dúvida sobre a capacidade do proletariado de se afirmar de forma independente contra o capital cresceu? Sim. Mas o socialismo permanece como a única aposta de defesa da vida civilizada? Sim, também. O marxismo de Mészáros fica como uma inspiração para as revoluções do século XXI.
Notas
Artigo publicado originalmente no livro István Mészáros e os desafios do tempo histórico, organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile.
1 István Mészáros, “A crise estrutural do capital”, em Outubro (São Paulo, Xamã), n. 4, mar. 2000, p. 11. Esse artigo corresponde à introdução escrita por Mészáros para a edição em farsi, publicada por exilados iranianos, do seu livro Para além do capital [São Paulo, Boitempo, 2002]. A versão em inglês foi publicada na revista Monthly Review, fev. 1998, sob o título The Uncontrollability of Globalizing Capital.
2 Ibidem, p. 9.
3 Sérgio Lessa, “István Mészáros”, em Crítica Marxista (São Paulo, Xamã), n. 6, 1998, p. 143.
***
Valério Arcary é Doutor em história pela USP, é professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile.

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