Diogo Vaz Pinto 04/04/2018 12:06
Em “Da Miséria
Simbólica”, Stiegler preconiza convulsões como o Brexit e a eleição de
Trump num efeito de alienação que decorre da exploração industrial dos
tempos de consciência e do espíritoHillary Clinton falou nos “deploráveis”. As palavras de que logo se arrependeria foram proferidas numa angariação de fundos em Nova Iorque, a dois meses da fenomenal reviravolta que entregou a Casa Branca a Donald Trump. De lá para cá, houve grandes esforços a nível cosmético, vieram os mea-culpas, e têm surgido outros nomes, toda uma nova gramática com que se pretende agora reenquadrar um problema bastante mais ameaçador do que se pensava. Bernard Stiegler, um dos mais destacados pensadores franceses da actualidade, leva um grande avanço nesta reflexão, pois não precisou do Brexit nem do resultado das eleições norte-americanas para se dar conta de que estava a ocorrer algo de profundamente inquietante na tessitura da sociedade moderna. Ele encarou como uma “catástrofe político-estética” o resultado que Jean-Marie Le Pen alcançou nas presidenciais francesas de 21 de Abril de 2002. O seu diagnóstico passa por reconhecer: “Hoje estamos em guerra e, sentimo-lo todos, à beira de cair e decair para fora do político. Estamos já na decadência de uma guerra de um novo tipo em que temos todos os motivos para sentirmos vergonha de sermos homens.” Esta “guerra estética” nasce do conflito de interesses que resulta de uma economia que induz a alienação do desejo e do afeto, é uma guerra que nos faz abandonar toda a vergonha de estarmos imiscuídos num ambiente saturado de vulgaridades, e em que o único valor universal é o mercado. À medida que os nossos impulsos começam a ser dominados pelo marketing - aqui enquadrado como o principal instrumento do controlo social -, a economia torna-se “uma guerra sem regras, onde civis e guerreiros já não se distinguem”.
Stiegler assume uma afinidade particular com este assustador novo mundo que conhece bem, pois, como frisa: “eu venho de lá. E sei que é portador de insuspeitas energias. Mas, se forem deixadas ao abandono, tais energias tornar-se-ão essencialmente destruidoras.” A noção decisiva aqui é esta que nos permite encarar as pessoas que hoje execram figuras como Hillary Clinton - figura que não soube evitar tornar-se um odioso ícone dessa elite política em perfeita consonância com os interesses da presente sociedade hiperindustrial -, como pessoas que “já não se sentem pertencer à sociedade, que estão fechadas numa zona que já não é o mundo, porque despegou esteticamente”. Cria-se assim, bem no seio da sociedade dos consumidores, uma situação de grande miséria simbólica, e, à medida que um número crescente de pessoas sofre este efeito de exclusão, agudiza-se a sensação de fechamento em zonas, com “largas faixas da população a viverem em espaços urbanos desprovidos de qualquer urbanidade, enquanto uma minúscula minoria pode desfrutar de um meio de vida digno desse nome”.
O que há de irónico na forma como atua a economia libidinal é o facto de esta produzir uma miséria que já não afeta apenas as classes sociais mais desfavorecidas, mas, seguindo a necessidade que o capital tem de hipermassificar os comportamentos, sujeita as pessoas a um tipo de “condicionamento estético” que cria um gueto no seio da própria sociedade de consumidores, procurando reduzir o desejo a uma mera compulsão. Stiegler nota que, ao transformar o desejo em desejo de consumo, as indústrias culturais e o marketing reforçam constantemente a pulsão de morte, isto na medida em que exploram ao limite o fenómeno compulsivo da repetição.
Desfazendo as últimas ilusões de uma suposta sociedade pós-industrial, Stiegler reflete sobre o papel do capitalismo cultural, denunciando a ideia de que o egoísmo que caracteriza a atual civilização deriva de um predomínio do individualismo. Segundo ele, tecnologias como a rede televisiva ou as redes sociais, o que promovem é uma padronização das existências, comportamentos cada vez mais gregários e que levam à perda do indivíduo. Assim, estes instrumentos de controlo social operam por uma sincronização das consciências. Ora, como Eduardo Prado Coelho sublinhou a propósito desta noção, esta sincronização “implica uma perda de diacronia, isto é, de sentido histórico, o que leva à consolidadação dos sujeitos. Daí que se possa dizer que, ao contrário do sistema tradicional, não vivemos numa sociedade repressiva, mas sim numa sociedade depressiva.”
A situação “paradoxal” deste gueto que cresce no seio das nossas sociedades permite que exista hoje uma imensa maioria que “vive em zonas esteticamente sinistradas, onde não se pode viver e amar porque se está esteticamente alienado”. Stiegler explica, assim, como a nossa época se caracteriza por esta tomada de controlo do simbólico e como a estética se tornou “simultaneamente arma e palco da guerra”. E uma das noções cruciais para perceber como o marketing opera é retirada de um documento de uma agência de publicidade norte-americana que, em 1955, afirmava o seguinte: “O que faz a grandeza deste país é a criação de necessidades e desejos, a criação do nojo por tudo aquilo que está velho e fora de moda”. Deste modo, o filósofo consegue mostrar como a “criação de gostos é, afinal, aqui a criação do nojo”, e defende que os meios de comunicação de massas e as indústrias culturais não têm feito muito mais do que criar este “nojo” pelo velho e fora de moda, dirigindo a atenção do consumidor para o novo e a novidade.
Este ensaio, originalmente publicado em 2004, chega até nós investido de um carácter de urgência dada a série de eventos que tem vindo a desdobrar os sintomas do quadro que Stiegler vem traçando num tão amplo quanto esclarecedor diálogo entre diversos campos do saber e ciências contemporâneas. Chega-nos com o selo da Orfeu Negro, num primoroso objecto que, posto ao lado dos livros da generalidade das editoras, os encherá de vergonha. Num formato de bolso não apenas cómodo mas graficamente insuperável, este volume integra uma coleção de ensaios que, se lida e tida em conta por mais leitores, exporia ao ridículo as análises da avassaladora maioria dos nossos comentadores políticos.
É apenas o segundo título publicado no nosso país de um autor que se vem destacando entre o conjunto de pensadores contemporâneos que, além de herdeiros de uma longa tradição filosófica, veem como uma catástrofe o alheamento do mundo artístico face às questões políticas, e que, desenvolvendo uma filosofia de incidência social, procuram que as pessoas tidas por cultivadas, sejam os académicos, os cientistas ou, até, mais geralmente, as pessoas informadas, resgatem um papel na vida política.
O caso de Bernard Stiegler é particularmente incitante uma vez que se trata de alguém que chegou à filosofia na intimidade de uma cela de prisão. Nascido em 1952, depois de um percurso errático em que exerceu ofícios tão díspares como empregado de escritório e trabalhador agrícola, deixou-se levar pelo sonho de ser proprietário de um bar-restaurante com jazz ao vivo, que até concretizou, só que a consequência foi ter dado por si enterrado em dívidas. A solução que viu foi assaltar um banco. A ideia podia parecer ingénua, mas deu certo, e tinha-o conseguido sozinho.
Depois desse houve outro, e outro depois, e ainda um outro. Limpinho. Só que ao quarto assalto à mão armada foi apanhado em flagrante e foi dar com os ossos na prisão de Saint-Michel, em Toulouse, passando depois pelo Centro de Detenção de Muret. Esteve encarcerado entre 1978 e 1983, e resolveu inscrever-se, por correspondência, no curso de Filosofia da Universidade de Toulouse. Um ano depois de ter saído em liberdade, foi convidado para dirigir um programa de investigação no Colégio Internacional de Filosofia e, desde então, tem desempenhado diversos cargos académicos e funções públicas, sendo dirctor do departamento de desenvolvimento cultural do Centro Georges Pompidou em Paris, presidente e dinamizador da associação internacional Ars Industrialis e professor convidado em várias universidades.
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