“Leiam Karl Marx!” | Musto entrevista Wallerstein
"Minha mensagem para a nova geração é que vale muito a pena descobrir Marx, mas é preciso ler, ler, ler sua obra. Leiam Karl Marx!"
Marcello Musto entrevista Immanuel Wallerstein.
Immanuel Wallerstein,
atualmente pesquisador da Universidade de Yale, em New Haven, EUA, é um
dos maiores sociólogos vivos, e um dos acadêmicos mais capacitados na
discussão sobre a relevância de Marx. É, desde há longo tempo, um leitor
de Marx, e o seu trabalho foi influenciado pelas teorias do
revolucionário nascido em Trier, a 5 de maio de 1818. Wallerstein
escreveu mais de uma trintena de livros, todos traduzidos em diversas
línguas. Marcello Musto é um importante filósofo marxista nascido
e formado na Itália e que atualmente vive e leciona em Toronto, no
Canadá. Autor de diversas obras sobre marxismo, história do pensamento
político, filosofia moderna e história do movimento trabalhista,
organizou e introduziu a monumental antologia de escritos políticos da I
Internacional, Trabalhadores, uni-vos!, e acaba de escrever a obra O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1893),
sobre a qual Wallerstein afirmou o seguinte: “Todos nós estamos
rediscutindo Marx. Dentre a vasta literatura existente, o novo trabalho
de Marcello Musto se destaca como uma cuidadosa análise contextual dos
últimos escritos e contributos de Marx para a nossa compreensão do mundo
– ontem, hoje e amanhã. O velho Marx é uma obra excepcional e
essencial para todos nós.” Na conversa abaixo, Musto entrevista
Wallerstein sobre a atualidade de Marx, 200 anos após seu nascimento.
Vale a pena conferir!
* * *
Marcello Musto: Professor
Wallerstein, 30 anos depois do fim do chamado “socialismo real”,
continua a haver, por todo o mundo, publicações, debates e conferências
sobre a contínua capacidade de Karl Marx para explicar o presente. Isto é
surpreendente? Ou acredita que as ideias de Marx continuarão a ser
relevantes para todos aqueles que procuram uma alternativa ao
capitalismo?
Immanuel Wallerstein: Há
uma velha história sobre Marx: expulsem-no pela porta da frente, que ele
volta a entrar pela janela das traseiras. É o que está a acontecer
outra vez. Marx é relevante porque temos que lidar com problemas sobre
os quais ele ainda tem muito a dizer, e porque o que ele disse é
diferente daquilo que a maior parte dos outros autores discutiram sobre o
capitalismo. Muitos comentadores e acadêmicos – não apenas eu – acham
Marx extremamente útil, e hoje ele atravessa de novo uma fase de
popularidade, apesar de tudo o que foi predito em 1989.
Marcello Musto: A queda do Muro de
Berlim libertou Marx das cadeias de uma ideologia que pouco tinha que
ver com a sua concepção da sociedade. O panorama político que se seguiu
ao fim da União Soviética ajudou a libertar Marx do papel de figura de
proa de um aparelho de Estado. O que é que, na interpretação de Marx do
mundo, continua a chamar a atenção?
Immanuel Wallerstein: Acredito
que, quando as pessoas pensam num conceito sobre a interpretação de Marx
do mundo, elas pensam em “luta de classes”. Quando leio Marx à luz dos
problemas do presente, para mim a luta de classes significa a luta
necessária daquilo a que chamo a Esquerda Global – que acredito
esforçar-se por representar os 80% da população com menores rendimentos –
contra a Direita Global – que representa talvez 1% da população. A luta
é pelos restantes 19%. É sobre como conquistá-los para um dos lados, em
vez de para o outro.
Vivemos numa era de crise estrutural do
sistema mundial. O actual sistema capitalista não pode sobreviver, mas
ninguém pode saber com certeza o que é que o substituirá. Estou
convencido de que há duas possibilidades: uma é aquilo a que chamo o
“Espírito de Davos”. O objectivo do Fórum Económico Mundial de Davos é
estabelecer um sistema que mantém as piores características do
capitalismo: a hierarquia social, a exploração e, sobretudo, a
polarização da riqueza. A alternativa é um sistema que terá que ser mais
democrático e mais igualitário. A luta de classes é um intento
fundamental para influenciar o futuro daquilo que substituirá o
capitalismo.
Marcello Musto: A sua reflexão
sobre a classe média recorda-me a ideia de hegemonia de Antonio Gramsci,
mas penso que a questão está também no entendimento de como motivar as
massas, os 80% que referiu, para a participação política. Isto é
particularmente urgente no chamado Sul global, onde se concentra a
maioria da população mundial e onde, nas últimas décadas, apesar do
dramático aumento das desigualdades produzido pelo capitalismo, os
movimentos progressistas se tornaram muito mais fracos do que eram
anteriormente. Nestas regiões, a oposição à globalização neo-liberal tem
sido frequentemente canalizada para o apoio a fundamentalismos
religiosos e partidos xenófobos. Também na Europa vemos este fenômeno
crescer cada vez mais.
A questão é: será que Marx nos ajuda a
entender este novo cenário? Estudos recentemente publicados têm
apresentado novas interpretações de Marx que podem contribuir para abrir
“retrovisores” para o futuro, para usar a sua expressão. Estes estudos
revelam um autor que estendeu a sua análise das contradições da
sociedade capitalista para além do conflito entre o capital e o
trabalho, alargando-o a outros domínios. De facto, Marx dedicou muito do
seu tempo ao estudo das sociedades não Europeias e ao papel destrutivo
do colonialismo na periferia do capitalismo. Consistentemente, e ao
contrário das interpretações que equiparam a concessão de Marx do
socialismo ao desenvolvimento das forças produtivas, as preocupações
ecológicas figuram de forma notória no seu trabalho.
Finalmente, Marx demonstrou um vasto
interesse em diversos outros tópicos que os acadêmicos frequentemente
ignoram quando dissertam sobre ele. Entre eles estão as potencialidades
da tecnologia, a crítica do nacionalismo, a procura de formas colectivas
de propriedade não controlada pelo Estado e a necessidade de liberdade
individual na sociedade contemporânea: todos temas fundamentais dos
nossos tempos. Mas, para além destas novas facetas de Marx – que sugerem
que o renovado interesse no seu pensamento é um fenômeno destinado a
continuar nos próximos anos –, poderia indicar três das ideias mais
reconhecidas de Marx que acredita valer a pena reconsiderar hoje em dia?
Immanuel Wallerstein: Em primeiro
lugar, Marx explicou-nos melhor que ninguém que o capitalismo não é a
forma natural de organização da sociedade. Na Miséria da filosofia,
publicada quando tinha apenas 29 anos, Marx já ironizava com os
economistas políticos burgueses que defendiam que as relações
capitalistas “são leis naturais, independentes da influência do tempo”.
Marx escreveu que, para eles, “houve História, já que nas instituições
do feudalismo encontramos relações de produção bastante diferentes das
da sociedade burguesa”, mas que não aplicavam a História ao modo de
produção que defendiam; representavam o capitalismo como “natural e
eterno”. No meu livro Historical Capitalism tentei demonstrar que
capitalismo é aquilo que ocorreu na História, em oposição a uma ideia
vaga e obscura adotada por diversos economistas políticos do mainstream. Defendi
várias vezes que não há capitalismo que não seja capitalismo histórico.
É tão simples como isso, para mim, e devemos muito a Marx.
Em segundo lugar, quero reforçar a
importância do conceito de “acumulação primitiva”, ou seja, a espoliação
das terras dos camponeses é o elemento fundador do capitalismo. Marx
compreendeu muito bem que era um processo chave na constituição do
domínio da burguesia. Estava lá no início do capitalismo, e está lá
ainda hoje.
Finalmente, convidaria a uma reflexão
mais profunda obre o tema da “propriedade privada e comunismo”. No
sistema estabelecido na União Soviética – em particular sob Estaline – o
Estado possuía a propriedade, mas isso não significava que as pessoas
não fossem exploradas ou oprimidas. Eram-no. Falar sobre “socialismo num
país”, como fez Estaline, é também algo que nunca entrou na cabeça de
ninguém, incluindo Marx, antes desse período. A propriedade pública dos
meios de produção é uma possibilidade. Também podem ser possuídos de
forma cooperativa. Mas, se queremos fundar uma sociedade melhor, temos
que saber quem produz e quem recebe o superávit. Que tem que ser
completamente reorganizada, ao contrário do capitalismo. Para mim, esta é
a questão chave.
Marcello Musto: Em 2018
assinala-se o bicentenário do nascimento de Marx, e novos livros e
filmes têm sido dedicados à sua vida. Há um período da sua vida que
considere mais interessante?
Immanuel Wallerstein: Marx teve
uma vida muito difícil. Lutou contra graves problemas de pobreza pessoal
e teve a sorte de ter um camarada como Friedrich Engels, que o ajudou a
sobreviver. Marx também não teve uma vida emocional fácil, e a sua
persistência em tentar fazer aquilo que pensava ser o trabalho da sua
vida – a compreensão da maneira como funciona o capitalismo – foi
admirável. Isto foi o que ele se viu a fazer. Marx não queria explicar a
Antiguidade, nem definir o que é o que socialismo deveria ser no
futuro. Estas não eram as tarefas que se impôs. O que queria era
compreender o mundo capitalista em que vivia.
Marcello Musto: Durante toda a sua
vida, Marx não foi um mero acadêmico isolado no meio dos livros do
British Museum de Londres, mas foi sempre um militante revolucionário
envolvido nas lutas da sua época. Por causa do seu ativismo, na
juventude foi expulso de França, da Bélgica e da Alemanha. Foi também
forçado ao exílio na Inglaterra, quando as revoluções de 1848 foram
derrotadas. Promoveu jornais e revistas e sempre apoiou os movimentos de
trabalhadores de todas as maneiras que pôde. Mais tarde, entre 1864 e
1872, tornou-se o líder da Associação Internacional de Trabalhadores, a
primeira organização transnacional da classe trabalhadora e, em 1871,
defendeu a Comuna de Paris, a primeira experiência socialista da
História.
Immanuel Wallerstein: Sim, é verdade. É essencial lembrar a militância de Marx. Tal como o Marcello sublinhou, recentemente, no volume Trabalhadores, uni-vos!: antologia política da I Internacional,
ele desempenhou um papel extraordinário na Internacional, uma
organização de pessoas que estavam fisicamente distantes umas das
outras, num tempo em que não existiam mecanismos de comunicação fácil. A
atividade política de Marx também envolveu o jornalismo, que o
acompanhou durante a maior parte da sua vida como forma de comunicação
com uma audiência alargada. Trabalhou como jornalista para ter um
rendimento, mas via o seu contributo como atividade política. Não tinha
nenhuma intenção de ser neutro. Foi sempre um jornalista comprometido.
Marcello Musto: Em 2017, por
ocasião do centésimo aniversário da revolução russa, alguns académicos
voltaram ao contraste com o estilo dos seguidores que estiveram no poder
durante o século XX. Qual é a principal diferença entre estes e Marx?
Immanuel Wallerstein: Os escritos
de Marx são iluminados, e muito mais subtis e variados do que algumas
das interpretações simplistas das suas ideias. É sempre bom lembrar a
famosa boutade em que Marx disse: “Se isto é o marxismo, então de
certeza que eu não sou marxista”. Marx esteve sempre pronto para lidar
com a realidade do mundo, não como muitos outros que impuseram as suas
perspectivas dogmaticamente. Marx mudava muitas vezes de ideias. Estava
constantemente à procura de soluções para os problemas que via que o
mundo enfrentava. É por isso que, ainda hoje, ele é um guia muito útil.
Marcello Musto: Para concluir, o que é que gostaria de dizer à geração mais nova que ainda não encontrou Marx?
Immanuel Wallerstein: A primeira coisa que tenho a dizer aos jovens é que ele precisam lê-lo. Não leiam sobre ele, leiam Marx.
Poucas pessoas – em comparação com os muitos que falam sobre ele –
leram Marx na realidade. Isto também é verdade para Adam Smith.
Geralmente, as pessoas limitam-se a ler sobre estes clássicos.
Aprendem sobre eles a partir dos resumos de outras pessoas. Querem
poupar tempo mas, na verdade, estão perdendo tempo! Devemos ler pessoas
interessantes, e Marx é o acadêmico mais interessante dos séculos XIX e
XX. Não há qualquer dúvida sobre isso. Ele não tem igual em termos do
número de assuntos sobre os quais escreveu, nem na qualidade da análise.
Por isso, a minha mensagem para a nova geração é que vale muito a pena
descobrir Marx, mas é preciso ler, ler, lê-lo. Leiam Karl Marx!
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Immanuel Wallerstein
nasceu em Nova York (Estados Unidos), em 1930. É doutor em Sociologia
pela Universidade Columbia, onde lecionou — foi também professor nas
universidades McGill e Binghamton. Desde 2000, é pesquisador-sênior do
Departamento de Sociologia da Universidade Yale. Estudioso do marxismo e
crítico do capitalismo global, é uma das principais referências
teóricas dos movimentos antiglobalização. É autor de O universalismo europeu (Boitempo, 2007) e The essential Wallerstein (Boitempo, no prelo).
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