Marx e a ciência política
Toda a ciência social digna de seu nome toma por base alguma concepção materialista da história e, assim, é tributária do pensamento de Marx.
Por Luis Felipe Miguel.
A obra de Karl Marx deixou sua marca em
uma grande quantidade de campos do saber. Ele foi um filósofo, mas se
tornou um economista. É um dos pais fundadores da sociologia. No
caminho, revolucionou a ciência da história. O marxismo – um rótulo que
não o agradava – evoluiu na forma de uma quase infinidade de correntes e
leituras divergentes, contribuindo de diferentes maneiras para essas e
outras disciplinas científicas (direito, antropologia, geografia,
linguística). E não são apenas os marxistas que se alimentam das ideias
de Marx. Elas assentaram muitas das bases do fazer científico nas
humanidades. Thomas Kuhn dizia que as chamadas “ciências sociais”
permanecem no estágio pré-científico, uma vez que nelas não vigora
qualquer paradigma que seja compartilhado por todos os praticantes; a
cada vez, temos que justificar nossas escolhas teóricas de fundo. Sem
discutir aqui os limites da compreensão de Kuhn sobre o trabalho
científico, é conveniente anotar que tal cizânia se liga às implicações
políticas mais imediatas da ciência social, que sofre, assim, uma
pressão maior para cumprir um papel de legitimação ideológica. Mas se
pode dizer, sem medo de errar e contra o próprio Kuhn, que toda a
ciência social digna de seu nome toma por base alguma concepção
materialista da história e, assim, é tributária do pensamento de Marx.
A ciência política diante do marxismo
Delineado esse quadro, qual é a posição
da ciência política? Trata-se certamente da disciplina das humanidades
em que a penetração das ideias marxistas foi (e ainda é) mais difícil,
por motivos que se ligam à sua própria formação. A ciência política
nasceu nos Estados Unidos e se expandiu pelo mundo reproduzindo essa
matriz. Desde o começo, privilegiou um foco estrito nas instituições
formais, desconectadas do ambiente social em que se encontram. Foi
marcada também por um apreço desmedido por modelos formais e extraiu-os
em geral da economia neoclássica. Muitos de seus modelos mais influentes
retiram dos agentes seu caráter de produtos históricos e patrocinam o
fetichismo da empiria. Como resultado, em grande parte da ciência
política sobrevive uma epistemologia ingênua, marcada pelo positivismo, o
que explica o destaque de percepções bizarras, como a “teoria da
escolha racional”, que projeta agentes políticos num vácuo histórico e
social. Nesse registro, as abordagens comprometidas com a transformação
do mundo são descartadas como “parciais”, mas são admitidas como
“neutras” aquelas que aceitam o mundo tal como está e projetam sua
permanência inconteste. Nada mais longe da tradição inaugurada por Marx.
Outro traço de origem da ciência política
é seu caráter de disciplina auxiliar do Estado, voltada a ampliar a
eficiência dos mecanismos de dominação. Como muitos de seus modelos têm
caráter anistórico, as estruturas vigentes podem ser tomadas como
simples “dados” e a pretensa neutralidade axiológica mascara o caráter
conservador de sua análise. A ciência política passa longe, portanto, do
caráter emancipatório que Marx quis dar à sua própria construção
teórica. Quando Antonio Gramsci, nos Cadernos do cárcere,
condenou a sociologia como uma ciência positivista burguesa e louvou a
ciência política como verdadeiro caminho para a compreensão do mundo
social, ele estava falando de uma fase anterior do pensamento
sociológico. E também de uma ciência política completamente diferente;
ele usa a expressão para designar a tradição de compreensão realista dos
processos de poder, inaugurada por Maquiavel, não de uma nascente
disciplina estadunidense. Na ciência política disciplinar, a abordagem
crítica e antipositivista permanece na contracorrente.
As tradições de que a ciência política é
herdeira a tornaram pouco receptiva às contribuições do marxismo. Mas há
uma leitura alternativa que também merece consideração, segundo a qual
foi o próprio marxismo que demonstrou pouca atenção pela política. Um
texto provocativo de Norberto Bobbio respondia negativamente à questão
que lhe servia de título: “Existe uma doutrina marxista do Estado?” A
visão de que a política é apenas uma parte da “superestrutura” que
reflete uma determinada base social, ou seja, de que não passa de um
epifenômeno de conflitos mais profundos, teria levado a um
subdesenvolvimento do pensamento marxista neste campo. Soma-se a isso a
tendência, presente em boa parte do marxismo (sobretudo, mas não só, até
as últimas décadas do século XX), de insulamento teórico, impedindo sua
fecundação por outras correntes – no texto, Bobbio ironiza Umberto
Cerroni, que, em livro de 1968, qualificou Wright Mills como “grande
sociólogo” e concedeu a Max Weber o estatuto modesto de “observador
atento. Sendo assim, a reflexão dos marxistas sobre o Estado e sobre a
política em geral acaba condenada a, muitas vezes, simplesmente
redescobrir o que muitos outros já haviam dito antes.
A leitura de Bobbio foi contestada por
autores marxistas, que a apontaram como enviesada e seletiva. Mas não é
possível negar que as obras fundadoras do marxismo concedem à política
um papel limitado e, de fato, nela veem sobretudo o reflexo de
estruturas mais profundas. Há um contraste entre a sensibilidade para a
especificidade do político, presente nas obras em que Marx discute
processos históricos concretos, e a teorização insuficiente quando ele
trabalha em maior nível de abstração. Embora se possam indicar autores
que, de dentro do marxismo da primeira metade do século XX, apresentaram
uma discussão mais robusta sobre a política (como é o caso, por
caminhos diversos, seja de Lênin, seja de Rosa Luxemburgo, seja de
Eduard Bernstein), é no pós-guerras, com a divulgação da obra de
Gramsci, que há um salto significativo na reflexão marxista sobre a
política.
As contribuições do instrumental marxiano
A despeito de todas essas ressalvas, é
possível e necessário destacar a utilidade do pensamento marxiano, ou do
pensamento fecundado pela tradição marxista, para a produção de uma
ciência política que seja mais capaz de entender o mundo social – e,
quiçá, também de orientar a ação nele. Estou, portanto, alinhado à
posição de Gramsci: trata-se de buscar uma disciplina que reflita mais
sua inspiração primitiva, na obra de Maquiavel, e menos sua
institucionalização, a partir dos últimos anos do século XIX, no
ambiente acadêmico estadunidense. O caminho que proponho não é apenas
encarar o “marxismo como ciência social”, para evocar o título do belo
livro de Adriano Codato e Renato Perissinotto, o que sugere algo como
sua normalização e incorporação nas vertentes teórico-metodológicas
dominantes, mas de mantê-lo como tensionador da disciplina. O acréscimo
fornecido pelo marxismo, assim como por outras correntes com projeto
emancipatório (feminismo, estudos decoloniais), é o de uma teoria focada
nos padrões vigentes de dominação que tem como horizonte a produção de
uma sociedade nova. Um marxismo mutilado da décima-primeira tese sobre
Feuerbach – aquela que diz que a questão não é interpretar o mundo, mas
transformá-lo – perde seu diferencial.
Há muito no instrumental teórico e
conceitual do marxismo que pode – e deve – ser apropriado pela ciência
política, se ela deseja construir um entendimento mais aprofundado de
seu objeto. Há as questões de método e é possível indicar também muitos
outros elementos: a centralidade das classes sociais para o deciframento
do conflito político; o entendimento do Estado como vinculado às
disputas na sociedade; o conturbado conceito de “ideologia” e a atenção
concedida aos circuitos socialmente estruturados de produção das
preferências; a busca por padrões mais exigentes, atentos às formas de
dominação e opressão incrustadas no cotidiano, de justiça e de
liberdade. Mas creio que a primeira contribuição essencial do marxismo
remete à compreensão do que é a própria política.
“Política” é um conceito complexo, sobre o
qual o único consenso existente é que deve incluir, de alguma maneira, a
ideia de disputa pelo poder. Se o conceito é reduzido ao mínimo, a
política se torna desprovida de especificidade e coextensiva a todo o
social, pois se sabe que as relações de poder perpassam toda a teia de
relações humanas. No caminho inverso, a maior parte da ciência política
busca estreitar a abrangência do conceito, limitando-o às dimensões
estritas da política institucional (partidos, governos, parlamentos,
eleições; também a diplomacia, como política externa). Com isso, porém,
não apreende os conflitos relativos à politização de fenômenos sociais
que escapam da política institucional ou do campo político propriamente
dito. Não é capaz, portanto, de analisar fenômenos da dominação social que passam pelo impedimento à expressão de determinadas reivindicações ou reclamos nas arenas aceitas como políticas.
É mais frutífero compreender a política
como um conjunto de práticas sociais, historicamente determinadas, cuja
abrangência é fruto também das lutas sociais. Dito de outra maneira, ela
é o processo pelo qual se obtém acesso ao exercício do poder e, por
meio dele, à organização da vida coletiva numa determinada sociedade. O
essencial é defini-la como “processo”, não como um espaço social
predefinido. Com isso, entende-se que seus limites não são fixos e que
inserir – ou não – um campo de questões no âmbito da política já é a
primeira grande disputa política. O insulamento da política nas suas
manifestações institucionais hoje reconhecidas, tal como produzido pela
maior parte da ciência política, é uma forma de reificação de um
processo histórico, que o despe de sua dinâmica e reduz nossa capacidade
de interpretá-lo.
Todo o método científico de Marx se funda
na compreensão de que qualquer fenômeno humano é dotado de sentido
apenas à luz de seu percurso histórico e das relações sociais em que se
introduz. São estas relações que produzem sua especificidade e o
destacam de uma universalidade que também pode ser apreendida pelo
pensamento – mas que, abandonada a si mesma, pouco nos diz sobre o
mundo. Discutindo, nos Grundrisse,
o conceito de “capital”, em oposição aos economistas burgueses que
fazem dele uma permanência transistórica, ele observa que “as
determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente
isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o
sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja
esquecida a diferença essencial”. Se a produção humana da riqueza
depende de um instrumento e de trabalho acumulado, mesmo que eles
estejam apenas na “destreza acumulada na mão do selvagem pelo exercício
repetido”, então sempre há capital. Entretanto, essa conclusão pelos
economistas burgueses deixa de fora “justamente o específico, o que faz
do ‘instrumento de produção’, do ‘trabalho acumulado’, capital”. Ou
seja: o capital como abstração é condição para o trabalho humano. O
capital como relação social que submete o trabalho nasce em determinadas
circunstâncias históricas. É essa segunda percepção, muito mais do que a
primeira, é que abre caminho para a compreensão da sociedade
capitalista.
O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis,
para a política. Resumida à ideia de que mulheres e homens devem
encontrar maneiras de organizar sua vida coletiva, ela é uma prática
presente em qualquer sociedade humana. Mas a feição concreta dessa
política muda, ao ponto de que sobra bem pouco em comum entre a política
de uma sociedade de caçadores-coletores e a de um Estado-nação moderno.
Em particular, a determinação histórica das práticas políticas implica
uma definição do que é sua matéria, isto é, do que pode e deve estar
submetido aos processos que aquela sociedade reconhece como políticos. A
fórmula retórica “tudo é política”, com que às vezes se tenta sacudir o
marasmo e apontar o significado das mais diferentes práticas sociais
para a reprodução da ordem de dominação vigente, acaba por ignorar o
esforço de circunscrição da política a determinado espaço, que é parte
integrante desta mesma ordem de dominação: mesmo que “tudo” seja
política, nem tudo conta como política numa determinada sociedade.
A ordem vigente de dominação, no entanto,
é desafiada por movimentos que nascem no próprio tecido social; é nesse
sentido que a definição do que é política consiste na disputa política
elementar. Pelo menos grandes três ondas de ampliação das fronteiras da
política ocorreram nos últimos dois séculos. O movimento operário
politizou as relações de trabalho, que a burguesia desejava manter na
condição de contratos privados entre empregados e patrões. O movimento
feminista politizou a esfera doméstica, percebida tradicionalmente como
respondendo a uma ordem natural e, portanto, inquestionável. O movimento
ambientalista politizou a relação da humanidade com o meio natural que a
cerca. Esses processos de politização são, em si mesmos, batalhas
políticas essenciais, em que se defrontam projetos emancipatórios e seus
adversários.
A última frase está no presente porque
nenhuma destas batalhas pode ser considerada ganha, nem na sociedade,
nem na teoria. A compreensão de que as relações de trabalho, a família e
a exploração da natureza são questões políticas continua a ter que ser
sustentada todos os dias. Contra ela opera um discurso de senso comum,
que reduz a política aos espaços institucionais e que é refletido e
reforçado pelo jornalismo, que setoriza as ações no mundo segundo sua
lógica produtiva e reserva o noticiário político aos poderes
constitucionais e aos partidos, relegando o conflito entre capital e
trabalho às páginas de economia, as lutas pelos direitos de mulheres aos
cadernos de “cotidiano” e o ambientalismo a umas ou outros, conforme o
caso. A maior parte da ciência política, com seu institucionalismo
estreito, funciona no mesmo diapasão.
Política e economia: para além da compartimentação e do determinismo
Há um reforço permanente da separação
entre a política e a economia; somos levados a crer que se tratam de
duas esferas naturalmente diversas, cujas fronteiras são apenas
identificadas, não produzidas por nosso sistema de pensamento. Os
discursos dominantes observam que a política não deve atrapalhar a
economia. Mesmo em muito da tradição marxista se aceita, sem maior
preocupação, a distinção entre luta econômica e luta política.
Mas Marx já indicava que há sempre um
caráter político nas relações econômicas, não apenas porque a relação
entre proprietários e trabalhadores é uma relação de autoridade, mas
porque a subordinação se manifesta na própria operação da indústria
capitalista, na qual o operário passa a ser “peça de uma máquina”. As
reivindicações trabalhistas mais chãs, aceitas em geral como sendo
apenas econômicas, como aquelas por melhoria no salário ou nas condições
de trabalho, implicam uma contestação política, pondo em cheque a
ideologia do contrato (que legitima o poder do patrão sobre o empregado)
e também o direito do proprietário à extração de mais-valor e ao
controle sobre o processo de produção, conforme certa vez observou André
Gorz.
A separação entre economia e política é
entendida melhor como sendo fruto de um trabalho ideológico primário,
cujo resultado principal é fazer com que os problemas da exploração e da
dominação deixem de ser entendidos como políticos e se tornem
“econômicos”. Como demonstrou Ellen Meiksins Wood,
essa divisão, da maneira como é aceita hoje, nasce com o próprio
capitalismo. Nos modos de produção anteriores, as funções sociais
vinculadas à produção, extração de mais-valor e apropriações e as
funções vinculadas à repressão política costumavam ser exercidas pelos
mesmos agentes, o que sublinhava sua indissociabilidade. O senhor
feudal, por exemplo, era responsável por ambas. O capitalismo gera
esferas diferenciadas ao alocar as funções “econômicas” aos
proprietários privados e as funções “políticas” ao Estado. Com isso,
despolitiza disputas essenciais, vinculadas à exploração e à dominação,
que são relegadas à economia. Em síntese, diz ela, o que o capitalismo
produz é uma diferenciação de tipos de atividades políticas, alocadas
separadamente na esfera econômica privada e na esfera pública do Estado.
Essa separação é fundamental para perpetuar o império do capital,
na medida em que a regulação promovida pelo mercado fica imune ao
controle político. É o estratagema que permite driblar a tensão que é
congenial ao casamento conflituoso entre capitalismo e democracia. A
ordem democrática é baseada num credo igualitário, pelo qual a vontade
expressa de cada cidadã ou cidadão deve pesar tanto quanto a de qualquer
outro. Já no mercado capitalista a influência é determinada pela posse
desigual dos recursos. Como escreveu Adam Przeworski, “só por mágica os
dois mecanismos podem levar ao mesmo resultado”. A fixação da economia
como um mundo à parte permite restringir o âmbito da democracia. Graças a
isso, sociedades que aceitamos como democráticas convivem com
hierarquias altamente autoritárias no âmbito das relações de produção
(ou da esfera doméstica).
O pensamento de Marx busca, ao contrário,
indicar a interrelação profunda entre as diferentes esferas da ação no
mundo social. A formulação “canônica” aparece no célebre prefácio à Contribuição à crítica da economia política, de uma maneira, porém, que talvez tenha causado mais dano do que benefício. Lá está escrito que
“na produção social da própria existência, os homens [usado no sentido de “a humanidade”] entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção que correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual.” (As armas da crítica, p. 106)
A metáfora base-superestrutura indica de
forma gráfica o que Marx quer dizer, isto é, o impacto da organização
das relações de produção em todos os aspectos da vida social, mas também
cobra um preço. Ela encaminha para uma compreensão muito unidirecional e
mesmo mecânica das influências entre as diferentes esferas do mundo
humano. Marx fala em termos de correspondências e condicionantes. A um
determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas correspondem
certas relações de produção; a elas corresponde uma superestrutura
jurídica e política, à qual corresponde por sua vez uma forma de
consciência; o modo de produção condiciona o desenvolvimento de toda a
vida social. É possível ler condicionantes e correspondências de uma
maneira mais lassa, indicando sobretudo limites ou tendências. Mas é
mais corrente interpretá-los de forma determinista, como se um estado
levasse de forma obrigatória a outro. Assim, em última análise, do
estágio de desenvolvimento das forças produtivas materiais nós
poderíamos derivar, de forma inexorável, um conjunto de relações de
produção, as quais, por sua vez, estabelecem também de maneira
inelutável uma dada superestrutura.
É o tipo de leitura que faz com que Marx
seja entendido – e não só por antimarxistas – como sendo um
“determinista econômico”. Trechos dele próprio ajudam a sustentar essa
posição. Por exemplo: ele está certamente correto quando escreve, em A miséria da filosofia,
que ao adquirir novas forças produtivas, a humanidade acaba por alterar
a maneira de ganhar a vida e, com isso, também todas as relações
sociais. Mas arremata dizendo que “o moinho movido pelo braço humano nos
dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o
capitalista industrial” (p. 102). A sugestão de que há uma causalidade
mecânica é inegável.
Essa não é a melhor maneira de
interpretar a visão marxiana de fundo em relação à sociedade e à
história. É necessário, em primeiro lugar, situá-la diante das
interpretações então dominantes sobre o processo histórico. Na segunda
metade do século XIX, grassavam, por exemplo, visões baseadas no
britânico Thomas Carlyle, para quem “a história do mundo é apenas a
biografia de grandes homens”. Para Marx trata-se, ao contrário, de
inserir as ações individuais nas linhas de força dos grandes conflitos
coletivos e das estruturas sociais. Mais importante ainda para a
compreensão de sua obra, a filosofia de Hegel via a história como sendo o
progresso da Razão, cujo núcleo dinâmico estava, portanto, no âmbito da
consciência e das ideias. Marx chegou a descrever sua ambição
intelectual como sendo colocar o hegelianismo com os pés no chão, Nele, a
dialética “se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a
fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”. Essa
inversão é o materialismo histórico, que não nega o papel do pensamento
no mundo, mas compreende que sua verdade depende de seu “caráter
terreno”, da práxis que ele é capaz de engendrar.
Não se trata, portanto, de julgar que o
mundo social deriva de forma mecânica das relações econômicas e que todo
o resto – cultura, instituições, política – é epifenômeno da economia.
Trata-se de entender que o mundo material condiciona a possibilidade e a
efetividade do pensamento e que, justamente por ser assim, as disputas
relativas à organização desse mundo material são as disputas centrais na
sociedade. Essa compreensão mais sofisticada permite um entendimento
mais preciso do mundo social, mas exige também maior esforço de
operacionalização do que o mero determinismo econômico.
Muitos autores, partindo de Marx,
buscaram estabelecer modelos capazes de apreender, de forma simultânea,
as múltiplas determinações cruzadas entre as diferentes esferas da
prática humana e a primazia da estrutura material na explicação
histórica. Por exemplo, Louis Althusser apontava um padrão complexo de
sobredeterminação entre as diferentes práticas humanas, incidindo umas
sobre as outras, com a economia sendo “determinante em última
instância”. Isto é, a economia é determinante a longo prazo e,
concretamente, define que esfera da sociedade concentrará a tarefa de
reprodução da ordem estabelecida. Na Idade Média, marcada pela
naturalização de uma ordem que se assume como hierárquica, este papel
cabia à religião. No capitalismo, em que a desigualdade é apresentada
como fruto das trocas mercantis livres e voluntárias, a economia
determina que ela própria é a instância dominante, para o que, aliás,
contribui de forma central a própria separação entre economia e
política, como visto antes.
Não invoquei Althusser para endossar sua
teoria, mas para apontar como o materialismo histórico não significa
determinismo econômico, nem indiferença a outras motivações para a ação
humana. Significa, isso sim, que a atenção às circunstâncias materiais é
importante para a explicação de qualquer movimento na sociedade humana,
mesmo aqueles que parecem à primeira vista guardar pouca relação com
elas. Uma mudança na doutrina católica – a invenção do purgatório – é
melhor entendida quando conectada à emergência, na Baixa Idade Média, de
uma camada urbana com recursos suficientes para comprar da Igreja a
celebração de missas em prol de almas que permaneciam a meio do caminho
entre o céu e o inferno. A revolução impressionista nas artes plásticas
dependeu da disseminação da pintura ao ar livre, que gera quadros de
menor dimensão, apropriados ao novo público consumidor burguês, ao passo
que antes a produção voltada à nobreza e à Igreja privilegiava obras
murais ou em grandes formatos. Os paradigmas estéticos que exaltam maior
gordura corporal estão associados a sociedades com baixa oferta de
calorias. E assim por diante. Não é determinismo: o surgimento das
camadas médias urbanas na Europa medieval não engendra o purgatório, nem
a ascensão da burguesia exige a pintura de cavalete. Mas as condições
de êxito de inovações se ligam à situação material.
Por uma ciência política aberta às contribuições do marxismo
Se é assim para a teologia, a arte ou os
padrões de beleza, certamente também é para a política. Aquilo que é
aceito em geral como sendo os conflitos políticos correntes, que estão
nas páginas de política dos jornais, que ocupam os “comentaristas
políticos”, consiste nas brigas partidárias, nas lutas pelos cargos no
Estado, nos esforços para a obtenção de maiorias eleitorais. São homens e
mulheres – dada a estrutura sexista da sociedade, em geral mais homens
do que mulheres – competindo pelo poder. É a “pequena política”,
definida por Gramsci como compreendendo “as questões parciais e
cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já
estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as
diversas frações de uma mesma classe política”. Ou seja, a pequena
política põe em disputa a ocupação das posições de direção dentro de uma
determinada ordem de dominação, mas não a própria ordem. “Portanto”,
prossegue o revolucionário sardo, “é grande política tentar excluir a
grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a
pequena política”. Ao participar do fechamento de seu foco às questões
da pequena política, elegendo como preocupação central os processos
institucionalizados de disputa pelos cargos de comando do Estado, a
ciência política corrobora o trabalho de naturalização da ordem de
dominação vigente e de estreitamente das potencialidades emancipatórias
da ação política.
Assim, a compreensão aprofundada da
política exige tanto superar a marola das disputas do momento,
conectando-as com os conflitos sociais mais profundos, quanto entender
sua relação com os interesses materiais – a divisão do trabalho, o
controle da riqueza, a distribuição dos frutos da cooperação social, o
acesso aos diferentes espaços sociais. Foi o que o próprio Marx procurou
fazer em seus escritos de conjuntura, como O 18 de brumário de Luís Bonaparte.
A complexidade dessas obras mostra como não é um programa fácil de ser
seguido, demandando uma grande clareza teórica em relação às
contradições sociais fundamentais e, ao mesmo tempo, um olhar aguçado
para as personagens do drama e as tramas em desenvolvimento.
A perspectiva marxiana, que ancora a
disputa política nos conflitos sociais de base, serve de antídoto para
as visões predominantes, que não veem mais do que a competição
superficial, e também para as interpretações idealistas, que julgam que é
possível transcender os interesses e fazer da política um exercício de
uso puro da razão. Serve também para enfatizar que os conflitos não
podem ser compreendidos sem relação com sua base material, ao contrário
das vertentes que dão primazia absoluta ao simbólico, como as leituras
conservadoras do “pós-materialismo” e aquelas, que se apresentam como
mais progressistas, da “teoria do reconhecimento”. A aceitação da
prioridade do reconhecimento tornou-se tão disseminada e influente que
mesmo no interior do marxismo mais ortodoxo há quem entenda que o
caminho não é questioná-la mas, ao contrário, atribuí-la pioneiramente
ao próprio Marx – como fez, por exemplo, Domenico Losurdo.
A dimensão do reconhecimento permite
apreender um aspecto da complexidade das motivações para o engajamento
político, mas, tornada a explicação universal, é no mínimo tão limitada
quanto o reducionismo econômico. Como enquadramento teórico geral, ainda
é superior leitura do materialismo histórico que o vê não como
determinação econômica, mas como sobredeterminação das diferentes
práticas sociais. Ela permite entender que o que está em jogo, em última
análise, é a maneira pelo qual mulheres e homens reproduzem a vida. Com
isso, simultaneamente recusa a autonomia da política, que não é
compreensível quando desconectada das relações e conflitos sociais mais
amplos, e preserva a efetividade do momento político, que seria
comprometida caso se aceitasse que as instituições e a cultura eram
simplesmente derivadas do estágio de desenvolvimento das relações de
produção.
Embora subteorizada pelo próprio Marx,
essa efetividade transparece em seus escritos históricos e é
desenvolvida pelos grandes pensadores marxistas da política, como Lênin,
Gramsci, Althusser ou Poulantzas. A política é percebida como a prática
que expressa as contradições presentes na sociedade e a arena em que se
encontram as soluções, sempre provisórias, para elas. A fórmula
gramsciana sintetiza com clareza: o “político em ato é um criador, um
suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move na vazia agitação
de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva”. Trata-se
de mais do que a frase surrada, atribuída a Bismarck, de que “a política
é a arte do possível”, pois entende que a ação política incide também
sobre o universo das possibilidades em aberto. Por isso – e essa é uma
lição que Gramsci extrai de Maquiavel – a análise realista do mundo
social não pode ser desatenta aos elementos, presentes na própria
realidade, que a empurram para além de sua configuração atual. A ciência
política, com frequência presa de uma miopia profunda, que a leva a
trabalhar com o momento presente como se estive congelado, tem muito a
ganhar com esse entendimento.
Trata-se de alcançar não uma “ciência política marxista”, que afirme uma filiação doutrinária a priori,
mas uma ciência política aberta às contribuições do marxismo, seja em
suas ferramentas analíticas, seja nos problemas que discute.
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Luis Felipe Miguel é
professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília,
onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades –
Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.
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