Marx hoje: o fim está próximo… apenas não da forma que imaginávamos
Por Slavoj Žižek, via Philosophical Salon, traduzido por Daniel Alves Teixeira
Existe uma velha e deliciosa piada
soviética sobre a rádio Yerevan: um ouvinte pergunta “É verdade que
Rabinovitch ganhou um carro novo na loteria?”, e o rádio responde: “Em
princípio sim, é verdade, somente não era um carro novo mas uma
bicicleta velha, e ele não ganhou, ela foi roubada dele. ” Será que
exatamente o mesmo não vale para o destino dos ensinamentos de Marx
hoje, 200 anos depois de seu nascimento?
Vamos perguntar à rádio Yerevan: “Marx
ainda é atual hoje?” Podemos adivinhar a resposta: em princípio sim, ele
descreve maravilhosamente a dança louca da dinâmica capitalista que
atingiu o seu pico apenas nos dias atuais, mais de um século e meio
depois, mas… Gerald A. Cohen enumerou as quatro características da noção
marxista clássica da classe trabalhadora: (1) ela constitui a maioria
da sociedade; (2) ela produz a riqueza da sociedade; (3) ela consiste
nos membros explorados da sociedade; (4) seus membros são as pessoas
necessitadas na sociedade. Quando essas quatro características são
combinadas, eles geram duas outras características: (5) a classe
trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução; (6) ela pode e vai
se envolver em uma transformação revolucionária da sociedade.[1]
Nenhum dos quatro primeiras se aplica à classe trabalhadora de hoje, e é
por isso que as características (5) e (6) não podem ser geradas. (Mesmo
que algumas das características continuem a se aplicar a partes da
sociedade de hoje, elas não estão mais unidas em um único agente: as
pessoas necessitadas na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.)
O impasse histórico do marxismo reside
não apenas no fato de que ele contava com a perspectiva da crise final
do capitalismo, e portanto não conseguiu compreender como o capitalismo
saiu de cada crise fortalecido. Há um erro muito mais trágico no corpo
clássico do marxismo, descrito em termos precisos por Wolfgang Streeck: O
marxismo estava certo sobre a “crise final” do capitalismo; nós estamos
claramente entrando nela hoje, mas esta crise é apenas isso, um
processo prolongado de decadência e desintegração, sem nenhum Aufhebung
hegeliano fácil à vista, nenhum agente para dar a esta decadência uma
reviravolta positiva e transformá-la em uma passagem para algum nível
superior de organização social:
“É um preconceito marxista – ou melhor:
modernista – que o capitalismo como uma época histórica só terminará
quando uma nova e melhor sociedade estiver à vista, e um sujeito
revolucionário pronto para implementá-la para o avanço da humanidade.
Isso pressupõe um grau de controle político sobre nosso destino comum
com o qual não podemos sequer sonhar após a destruição da ação coletiva
e, mesmo da esperança para isso, na revolução globalista neoliberal. ”[2]
A visão de Marx era a de uma sociedade
gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação na qual a
complexidade da vida social é simplificada em um grande antagonismo
entre capitalistas e a maioria proletária. No entanto, mesmo uma rápida
olhada nas revoluções comunistas do século XX deixa claro que essa
simplificação nunca ocorreu: os movimentos comunistas radicais foram
sempre constrangidos a uma minoria de vanguarda e, para ganhar
hegemonia, tiveram que esperar pacientemente por uma crise (geralmente
uma guerra) que forneceu uma janela estreita de oportunidade. Em tais
momentos, uma autêntica vanguarda pode tomar o dia, mobilizar as pessoas
(mesmo que não a maioria) e assumir o controle. Os comunistas eram aqui
sempre completamente “não dogmáticos”, prontos para serem parasitas em
alguma outra questão: terra e paz na Rússia, libertação nacional e
unidade contra a corrupção na China… Eles estavam sempre bem conscientes
de que a mobilização acabaria logo, e estavam cuidadosamente preparando
o aparato de poder para mantê-los no poder nesse momento. (Em contraste
com a Revolução de Outubro que explicitamente tratou os camponeses como
aliados secundários, a revolução chinesa nem sequer fingia ser
proletária: ela endereçava diretamente os agricultores como sua base.)
O problema do marxismo ocidental (e mesmo
do marxismo como tal) era a ausência do sujeito revolucionário: como é
que a classe trabalhadora não completa a passagem do em si para o
para-si e constitui a si mesma como um agente revolucionário? Esse
problema forneceu a principal razão de ser da referência à psicanálise
que foi evocada justamente para explicar os mecanismos libidinais
inconscientes que impedem o surgimento da consciência de classe inscrita
no próprio ser (situação social) da classe trabalhadora. Deste modo, a
verdade da análise socioeconômica marxista era salva; não havia razão
para dar fundamento às teorias “revisionistas” sobre a ascensão das
classes médias, etc. Por essa mesma razão, o marxismo ocidental também
estava em busca constante por outros atores sociais que pudessem
desempenhar o papel de agente revolucionário, como o dublê substituto da
classe trabalhadora indisposta: camponeses do Terceiro Mundo,
estudantes e intelectuais, os marginais excluídos … A versão mais
recente dessa ideia refere-se aos refugiados: somente o influxo de um
número realmente grande de refugiados pode revitalizar a esquerda
radical européia. Essa linha de pensamento é completamente obscena e
cínica. Não obstante o fato de que tal desenvolvimento certamente daria
um impulso imenso à brutalidade antiimigrante, o aspecto verdadeiramente
louco dessa ideia é o projeto de preencher a lacuna dos proletários
desaparecidos ao importá-los do exterior, para que então pudéssemos ter a
revolução por um agente revolucionário substituto e terceirizado.
O fracasso da classe trabalhadora como
sujeito revolucionário já está no cerne da revolução bolchevique. A arte
de Lenin era detectar o “potencial de fúria” (Sloterdijk) dos
camponeses desapontados. A Revolução de Outubro venceu devido ao slogan
“terra e paz”, endereçado à vasta maioria camponesa, aproveitando o
curto momento de sua insatisfação radical. Lenin já pensava por essas
linhas uma década antes, motivo pelo qual ficou horrorizado com a
perspectiva do sucesso da reforma agrária de Stolypin, que visava criar
uma nova classe forte de agricultores independentes. Ele escreveu que se
Stolypin tivesse sucesso, a chance de uma revolução estaria perdida por
décadas. Todas as revoluções socialistas bem-sucedidas, de Cuba à
Iugoslávia, seguiram esse modelo, aproveitando a oportunidade em uma
situação crítica extrema, cooptando a libertação nacional ou outros
“capitas de fúria”. Obviamente, aqui, um partidário da lógica hegemônica
indicaria que essa é a própria lógica “normal” da revolução, que a
“massa crítica” é alcançada precisamente e somente através de uma série
de equivalências entre múltiplas demandas que são sempre radicalmente
contingentes e dependentes de um conjunto específico, mesmo único, de
circunstâncias. Uma revolução nunca ocorre quando todos os antagonismos
colapsam no Grande único, mas quando eles combinam sinergeticamente seus
poderes.
A questão não é apenas que a revolução
não segue mais o curso da História, seguindo suas Leis, uma vez que não
há História, já que a história é um processo aberto contingente. O
problema é diferente: é como se houvesse uma Lei da História, uma linha
principal de desenvolvimento histórico mais ou menos clara, e que a
revolução somente poderia ocorrer em seus interstícios, “contra a
corrente”. Os revolucionários têm que esperar pacientemente pelo período
de tempo (geralmente muito breve) em que o sistema abertamente falha ou
colapsa, para aproveitar a janela de oportunidade, tomar o poder que
naquele momento estava nas ruas, está em disputa, e então fortalecer seu
domínio no poder, construindo aparatos repressivos, etc., de modo que,
uma vez terminado o momento de confusão e a maioria fique sóbria e
desapontada com o novo regime, será tarde demais para se livrar dele,
dado seu firme entrincheiramento.
Os comunistas também sempre calcularam
cuidadosamente o momento certo de parar a mobilização popular. Vejamos o
caso da Revolução Cultural Chinesa que, sem dúvida, continha elementos
de uma utopia atuada. Em seu momento final, antes que a agitação fosse
bloqueada pelo próprio Mao (já que ele já alcançara seu objetivo de
restabelecer seu poder total e de se livrar da principal competição da
nomenklatura), ocorreu a “Comuna de Xangai”: um milhão de trabalhadores
que simplesmente tomou os slogans oficiais a sério, exigindo a abolição
do Estado e até do próprio Partido, e querendo uma organização comunal
direta da sociedade. É significativo que foi nesse exato momento que Mao
ordenou que o exército interviesse e restaurasse a ordem. O paradoxo é o
de um líder que desencadeia uma sublevação descontrolada, enquanto
tenta exercer o poder pessoal total – a sobreposição da extrema ditadura
e da extrema emancipação das massas.
A questão sobre a continuidade da
relevância da crítica de Marx à economia política em nossa era do
capitalismo global deve ser então respondida de uma maneira propriamente
dialética: não apenas a crítica de Marx à economia política, seus
contornos da dinâmica capitalista, ainda são totalmente atuais, mas
deve-se também dar um passo à frente e afirmar que é apenas hoje, com o
capitalismo global, que, em termos hegelianos, a realidade chegou ao seu
conceito. Entretanto, uma inversão propriamente dialética intervém
aqui: neste exato momento de plena atualidade a limitação tem que
aparecer, o momento do triunfo é o da derrota. Depois de superar os
obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro, sinalizando
inconsistências imanentes. Quando a realidade alcança plenamente seu
conceito, esse conceito em si precisa ser transformado. Aí reside o
paradoxo propriamente dialético: Marx não estava simplesmente errado,
ele estava certo na maior parte das vezes, mas mais literalmente do que
ele próprio esperava estar.
Então qual é o nosso resultado? Devemos
descartar os textos de Marx como um documento interessante do passado e
nada mais? Em um paradoxo dialético, os próprios impasses e fracassos do
comunismo do século XX, impasses que eram claramente alicerçados nas
limitações da visão de Marx, aos mesmo tempo testemunham a sua
atualidade: a solução marxista clássica fracassou, mas o problema
permanece. O comunismo não é hoje o nome de uma solução, mas o nome de
um problema, o problema dos comuns em todas as suas
dimensões – os comuns da natureza como a substância de nossa vida, o
problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos bens
culturais (“propriedade intelectual”) e, por último mas não menos
importante, os comuns como o espaço universal da humanidade do qual
ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá que
lidar com esses problemas.
Nas traduções soviéticas, a bem conhecida declaração de Marx a Paul Lafargue “Ce qu’il y de certain, c’est que moi je ne suis pas marxiste”
foi traduzida como “se isso é marxismo, então eu não sou marxista”.
Este erro traduz perfeitamente a transformação do marxismo num discurso
universitário: no marxismo soviético, mesmo o próprio Marx era marxista,
participando do mesmo conhecimento universal que compõe o marxismo. O
fato de que dele criou o ensinamento mais tarde conhecido como
“marxismo” não oferece exceção, e assim sua negação apenas se refere a
alguma versão errada específica que se proclama falsamente “marxista”. O
que Marx queria dizer era algo mais radical: uma lacuna separa o
próprio Marx, o criador que tem uma relação substancial com o seu
ensino, dos “marxistas” que seguem este ensinamento. Essa lacuna também
pode ser traduzida pela conhecida piada dos irmãos Marx: “Você parece o
Emmanuel Ravelli. -Mas eu sou Emmanuel Ravelli. – Então não admira que
se pareça com ele.” O cara que é Ravelli não se parece com Ravelli; ele
simplesmente é Ravelli. E, da mesma maneira, o próprio Marx não é
marxista (um entre os marxistas); ele é o ponto de referência excetuado
da série. É a referência à ele que faz dos outros marxistas. E a única
maneira de permanecer fiel a Marx hoje não é mais ser um “marxista”, mas
repetir o gesto fundador de Marx de uma nova maneira.
[1] G.A.Cohen, If You’re an Egalitarian, How Come You’re So Rich?, Cambridge (MA): Harvard University Press 2001.
[2] Wolfgang Streeck, How Will Capitalism End?, London: Verso Books 2016, p. 57.
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