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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Um Daniel de Oliveira inspirado e inspirador

Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Não é luto, é luta

Num anúncio espalhado pela net, Ana Caroline Campagnolo, recém-eleita deputada estadual pelo PSL (partido de Bolsonaro) em Santa Catarina, fez um apelo aos estudantes universitários: “Na semana do dia 29 de outubro, muitos professores doutrinadores estarão inconformados e revoltados. Muitos não conseguirão disfarçar a sua ira e farão da sala de aula uma audiência cativa para as suas queixas político-partidárias em virtude da vitória do Presidente Bolsonaro. Filme ou grave todas as manifestações político-partidárias e ideológicas que humilhem e ofendam a sua liberdade de crença e consciência. DENUNCIE! Envie o vídeo e as informações para (49) 98853 35 88, descreva o nome do professor, o nome da escola e a cidade. Garantimos o anonimato do denunciante.”
Para compreender este anúncio é importante perceber que doutrinação política é, nas cabeças dos bolsonaristas, uma coisa bastante ampla. Ela inclui a defesa dos direitos humanos e de minorias. Entre as manifestações político-partidárias e ideológicas que humilham e ofendem a liberdade de crença e consciência (a palavra liberdade é usada como sinónimo de direito a calar os outros) está, para esta nova deputada, o feminismo, por exemplo. No seu Facebook, ela dá exemplo da doutrinação placards na faculdade com referência a esse movimento cívico. A neutralidade, para eles, é a amoralidade perante a discriminação. Política na faculdade? Inaceitável. Deixem isso para o WhatsApp.
Este apelo a que os alunos filmem professores que façam discursos políticos que incomodam os vencedores das eleições e os enviem para um número de denúncias anónimas é apenas uma das milhares de formas de espalhar a intimidação
Este apelo a que os alunos filmem professores que façam discursos políticos que incomodam os vencedores das eleições e os enviem para um número de denúncias anónimas é apenas uma das milhares de formas de espalhar a intimidação
Não vou gastar o latim com quem não perceba a gravidade deste apelo à bufaria e para quem acha que na Universidade não se fala de política. Esses estão perdidos para o campo antidemocrático. Quem não se choca com isto não se chocará com tudo o que virá depois. Quem não se choca com isto não faz parte do grupo que achava que as ameaças de Bolsonaro eram apenas exageros de quem tem o coração na boca. Levou-as a sério e desejou-as. Só quem compreende para onde este apelo nos transporta pode perceber o que tenho para dizer neste texto. Não consigo descer ao ponto civilizacional em que os outros estão. Pelo menos por agora.
Quando se diz que Bolsonaro é um fascista – socorrendo-nos de um termo específico para determinar de forma genérica um tipo de autoritarismo de extrema-direita –, muitos brasileiros (e até portugueses) perguntam: mas acredita mesmo que Bolsonaro vai instaurar uma ditadura no Brasil? Não faço futurologia. Olhando para o comportamento geral das instituições brasileiras nos últimos anos, não há qualquer razão alguma para acreditar que elas tenham solidez para defender a democracia. O modo de agir da polícia brasileira confunde-se com a criminalidade, os militares não têm qualquer vinculação à democracia, o poder judicial não tem nem a independência nem o rigor processual para ser confiável, o poder legislativo é corrupto e o sistema político-partidário é disfuncional. Pode afetar a autoestima dos brasileiros, mas as suas instituições são incrivelmente frágeis (mais do que seria de esperar ao fim de 35 anos de democracia) e o respeito pelo Estado de Direito e os direitos humanos está muito pouco interiorizado na maioria dos brasileiros. Sobretudo nas elites.
A resistência a Bolsonaro, que não precisa do apoio da maioria para ser legítima, não será apenas a atos antidemocráticos do Estado. Será uma resistência quotidiana, desgastante e perigosa a um fascismo viral levado a cabo por um exército de fanáticos que vão conseguindo tornar normal o que era abjeto. Perante a derrocada da democracia no Ocidente, não há tempo para luto. Terá de ser de luta
É de um otimismo fanfarrão os brasileiros acreditarem que não correm riscos ao eleger um Presidente autoritário porque os outros poderes o controlarão. Se isso não é verdade nos Estados Unidos, que é um país do primeiro-mundo que vive em democracia ininterrupta há quase 250 anos, como poderia ser verdade numa jovem e tão débil democracia do terceiro mundo?
Mas a pergunta não vive apenas de um engano quanto à solidez da democracia brasileira. Vive de um equívoco mais geral: que a democracia e a ditadura são duas realidades absolutas. Há ditaduras que mantêm alguma margem democrática, pelo menos aparente. Foi o caso da ditadura brasileira, que foi simulando alguma legitimidade parlamentar e até uma oposição consentida. Da mesma forma, a democracia pode ter elementos ditatoriais.
Nenhum de nós sabe se Bolsonaro destruirá a frágil democracia brasileira, mas sabemos que o seu discurso de ódio soltou os demónios da tirania. Este apelo a que os alunos filmem professores que façam discursos políticos que incomodam os vencedores das eleições e os enviem para um número de denúncias anónimas é apenas uma das milhares de formas de espalhar a intimidação. Outra é a perseguição a homossexuais, com um aumento das agressões. Ou a perseguição de qualquer discurso que ponha em causa a religião. Ou a instituição da censura, por via da pressão económica ou de Estado, sobre qualquer mensagem artística ou académica que não cumpra as cânones do combate ao “marxismo cultural”. Ou a polícia sentir-se ainda mais à vontade para atirar a matar, institucionalizando a pena de morte sumária. Legitimados pelo poder político, todos os abusos se sentirão mais livres. Quase tudo isto já está a acontecer há algum tempo no Brasil. Algumas coisas desde sempre. Mas ao terem proteção e o apoio do Presidente banalizar-se-ão, transformando o Brasil numa democracia meramente formal.
É por isso que a resistência a Bolsonaro, que não precisa do apoio da maioria para ser legítima, não será apenas uma resistência a atos antidemocráticos do Estado. Será uma resistência política, social e cultural à banalização de um fascismo viral levado a cabo por um exército de fanáticos que vão conseguindo tornar normal o que era abjeto. Uma resistência quotidiana, desgastante e perigosa. Porque o poder repressivo já não está apenas nas mãos do Estado, está nas mãos de milhares e espalha-se por todos os cantos. Entra na escola, na empresa, em casa. Parece que estou a falar do Brasil mas ele é apenas um caso extremo. O futuro é isto. E é por isso que o susto não pode esmorecer os democratas. E muito menos podem aceitar a ideia absurda de que a democracia os obriga a calar e a aplaudir um eleito, por mais perigoso que ele seja. Perante a derrocada da democracia no Ocidente, não há tempo para luto. Terá de ser de luta. Com muito menos tolerância do que até agora. É para partir a espinha ao fascismo. De novo. As vezes que for preciso.

in Expresso Diário, 31/10/2018

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