Não é luto, é luta
Num
anúncio espalhado pela net, Ana Caroline Campagnolo, recém-eleita
deputada estadual pelo PSL (partido de Bolsonaro) em Santa Catarina, fez
um apelo aos estudantes universitários: “Na semana do dia 29 de
outubro, muitos professores doutrinadores estarão inconformados e
revoltados. Muitos não conseguirão disfarçar a sua ira e farão da sala
de aula uma audiência cativa para as suas queixas político-partidárias
em virtude da vitória do Presidente Bolsonaro. Filme ou grave todas as
manifestações político-partidárias e ideológicas que humilhem e ofendam a
sua liberdade de crença e consciência. DENUNCIE! Envie o vídeo e as
informações para (49) 98853 35 88, descreva o nome do professor, o nome
da escola e a cidade. Garantimos o anonimato do denunciante.”
Para
compreender este anúncio é importante perceber que doutrinação política
é, nas cabeças dos bolsonaristas, uma coisa bastante ampla. Ela inclui a
defesa dos direitos humanos e de minorias. Entre as manifestações
político-partidárias e ideológicas que humilham e ofendem a liberdade de
crença e consciência (a palavra liberdade é usada como sinónimo de
direito a calar os outros) está, para esta nova deputada, o feminismo,
por exemplo. No seu Facebook, ela dá exemplo da doutrinação placards na
faculdade com referência a esse movimento cívico. A neutralidade, para
eles, é a amoralidade perante a discriminação. Política na faculdade?
Inaceitável. Deixem isso para o WhatsApp.
Não
vou gastar o latim com quem não perceba a gravidade deste apelo à
bufaria e para quem acha que na Universidade não se fala de política.
Esses estão perdidos para o campo antidemocrático. Quem não se choca com
isto não se chocará com tudo o que virá depois. Quem não se choca com
isto não faz parte do grupo que achava que as ameaças de Bolsonaro eram
apenas exageros de quem tem o coração na boca. Levou-as a sério e
desejou-as. Só quem compreende para onde este apelo nos transporta pode
perceber o que tenho para dizer neste texto. Não consigo descer ao ponto
civilizacional em que os outros estão. Pelo menos por agora.
Quando
se diz que Bolsonaro é um fascista – socorrendo-nos de um termo
específico para determinar de forma genérica um tipo de autoritarismo de
extrema-direita –, muitos brasileiros (e até portugueses) perguntam:
mas acredita mesmo que Bolsonaro vai instaurar uma ditadura no Brasil?
Não faço futurologia. Olhando para o comportamento geral das
instituições brasileiras nos últimos anos, não há qualquer razão alguma
para acreditar que elas tenham solidez para defender a democracia. O
modo de agir da polícia brasileira confunde-se com a criminalidade, os
militares não têm qualquer vinculação à democracia, o poder judicial não
tem nem a independência nem o rigor processual para ser confiável, o
poder legislativo é corrupto e o sistema político-partidário é
disfuncional. Pode afetar a autoestima dos brasileiros, mas as suas
instituições são incrivelmente frágeis (mais do que seria de esperar ao
fim de 35 anos de democracia) e o respeito pelo Estado de Direito e os
direitos humanos está muito pouco interiorizado na maioria dos
brasileiros. Sobretudo nas elites.
A
resistência a Bolsonaro, que não precisa do apoio da maioria para ser
legítima, não será apenas a atos antidemocráticos do Estado. Será uma
resistência quotidiana, desgastante e perigosa a um fascismo viral
levado a cabo por um exército de fanáticos que vão conseguindo tornar
normal o que era abjeto. Perante a derrocada da democracia no Ocidente,
não há tempo para luto. Terá de ser de luta
É
de um otimismo fanfarrão os brasileiros acreditarem que não correm
riscos ao eleger um Presidente autoritário porque os outros poderes o
controlarão. Se isso não é verdade nos Estados Unidos, que é um país do
primeiro-mundo que vive em democracia ininterrupta há quase 250 anos,
como poderia ser verdade numa jovem e tão débil democracia do terceiro
mundo?
Mas a pergunta não
vive apenas de um engano quanto à solidez da democracia brasileira. Vive
de um equívoco mais geral: que a democracia e a ditadura são duas
realidades absolutas. Há ditaduras que mantêm alguma margem democrática,
pelo menos aparente. Foi o caso da ditadura brasileira, que foi
simulando alguma legitimidade parlamentar e até uma oposição consentida.
Da mesma forma, a democracia pode ter elementos ditatoriais.
Nenhum
de nós sabe se Bolsonaro destruirá a frágil democracia brasileira, mas
sabemos que o seu discurso de ódio soltou os demónios da tirania. Este
apelo a que os alunos filmem professores que façam discursos políticos
que incomodam os vencedores das eleições e os enviem para um número de
denúncias anónimas é apenas uma das milhares de formas de espalhar a
intimidação. Outra é a perseguição a homossexuais, com um aumento das
agressões. Ou a perseguição de qualquer discurso que ponha em causa a
religião. Ou a instituição da censura, por via da pressão económica ou
de Estado, sobre qualquer mensagem artística ou académica que não cumpra
as cânones do combate ao “marxismo cultural”. Ou a polícia sentir-se
ainda mais à vontade para atirar a matar, institucionalizando a pena de
morte sumária. Legitimados pelo poder político, todos os abusos se
sentirão mais livres. Quase tudo isto já está a acontecer há algum tempo
no Brasil. Algumas coisas desde sempre. Mas ao terem proteção e o apoio
do Presidente banalizar-se-ão, transformando o Brasil numa democracia
meramente formal.
É por isso
que a resistência a Bolsonaro, que não precisa do apoio da maioria para
ser legítima, não será apenas uma resistência a atos antidemocráticos
do Estado. Será uma resistência política, social e cultural à
banalização de um fascismo viral levado a cabo por um exército de
fanáticos que vão conseguindo tornar normal o que era abjeto. Uma
resistência quotidiana, desgastante e perigosa. Porque o poder
repressivo já não está apenas nas mãos do Estado, está nas mãos de
milhares e espalha-se por todos os cantos. Entra na escola, na empresa,
em casa. Parece que estou a falar do Brasil mas ele é apenas um caso
extremo. O futuro é isto. E é por isso que o susto não pode esmorecer os
democratas. E muito menos podem aceitar a ideia absurda de que a
democracia os obriga a calar e a aplaudir um eleito, por mais perigoso
que ele seja. Perante a derrocada da democracia no Ocidente, não há
tempo para luto. Terá de ser de luta. Com muito menos tolerância do que
até agora. É para partir a espinha ao fascismo. De novo. As vezes que
for preciso.
in Expresso Diário, 31/10/2018
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