«(...) A princípio, a questão parece resolvida. Submeter critérios de verdade à praxis, à atividade humana implicaria reconhecer que a essência humana é, como dirá Marx no mesmo texto, o “conjunto das relações sociais” (das ensemble des gesellchaftlichen Verhältnisse) visando a produção da realidade material com seus modos hegemônicos de vida; o que fornece à verdade uma definição pragmática e historicamente determinada. Mas, Marx estaria então a dizer que se abandona a filosofia através de um certo pragmatismo que eleva o conjunto das relações sociais à condição de fundamento historicista para nossos critérios de verdade? De fato, seria este o caso se Marx estivesse interessado nas condições de estabilidade sistêmica da situação atual, e não, como é seu caso, no processo interno de transformação do “conjunto das relações sociais”. No entanto, e aqui começa realmente o problema, como analisar a natureza de tal processo interno, como compreender o movimento de transformação social, qual é a natureza do movimento real em relação a outros “movimentos aparentes”? Conhecemos várias formas de transformação social da situação atual, algumas profundamente estruturais, mas nem todas tem o mesmo valor para Marx, nem todas são descrições de processos revolucionários. Lembremos a este respeito de suas análises sobre os desdobramentos da revoltas de junho de 1848 com suas “paródias” de transformações. Isto nos coloca uma questão maior: haveria então uma definição diferencial do movimento propriamente revolucionário? A posteridade de Marx mostrará como esta questão era, de fato, muito mais complicada do que poderia parecer.
Neste contexto, vale a pena indicar inicialmente um caminho provisório operando um certo salto de algumas décadas a fim de lembrar de uma conhecida passagem do posfácio da segunda edição de O Capital. Tentemos lê-la tendo nossa última tese sobre Feuerbach ressoando ao fundo:
Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (...) A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento (allgemeinen Bewegungsformen). Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo, um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, o entendimento positivo do existente/permanente (Bestehenden), inclui, ao mesmo tempo, o entendimento de sua negação, de sua necessária passagem (Untergangs). Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária.
Notem quão admirável é a tensão própria à construção textual de Marx. Décadas depois das “Teses sobre Feuerbach”, Marx começa por falar que ele possui um método presente em suas reflexões econômicas e políticas. Um método que, de certa forma, o vincula à filosofia, mas que para ser efetivamente realizado precisa passar no seu oposto, quase se estivéssemos a assistir a aplicação de uma guinada dialética à própria dialética. Isto lhe permite terminar afirmando que a dialética, quando não se deixa intimidar por nada, ou seja, quando opera expressando o movimento interno dos objetos com os quais ela lida, quando apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, é não apenas perspectiva crítica, mas também ação revolucionária. Ou seja, ela opera a transformação que as interpretações do mundo eram incapazes de produzir, pois mostra como o entendimento correto do que existe inclui a compreensão da necessidade de sua transformação, do movimento real que supera o estado de coisas existente. Quando não se deixa intimidar por nada, a dialética não fornece uma interpretação que justifica o existente, nem é a base para a aplicação de um programa de reforma social e de educação das massas no estilo daquele proposto pelos socialistas utópicos (Fourier, Saint-Simon). Ela é a lei de modificação, o entendimento do princípio de transformação que abre o mundo e os sujeitos ao que ainda não se realizou. Afinal, como dirá Marx em uma frase plena de consequências:
O comunismo não é, para nós, um estado/situação (Zustand) que deve ser implementado, um ideal ao qual a realidade deve se sujeitar. Nós chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado atual.
Ou seja, comunismo não é o nome de uma situação a ser implementada, de um ideal utópico a ser realizado. Ele é o nome de um tipo específico de movimento, um tipo de insurgência capaz de abrir a situação atual ao que ela só pode determinar como contradição profunda, produzindo assim o aniquilamento do modo de vida atualmente reproduzido. Ou seja, e devemos tirar todas as consequências disto, a possibilidade do comunismo, para Marx, está logicamente vinculada à compreensão do movimento real das sociedades modernas a partir das formas gerais de movimento fornecidas pela dialética e por suas categorias.
Por isto, há algo aqui que não deve desaparecer de vista. Pois é evidente como, neste momento decisivo, Marx se vê obrigado a reconhecer uma relação profunda de filiação e transmissão. Ele dirá: devemos virar a dialética hegeliana de cabeça para baixo, mas há de se reconhecer que as formas gerais do movimento responsáveis pela compreensão correta da processualidade do existente já estão todas configuradas na filosofia de Hegel. Mais, ainda. Marx assume que tais formas estarão presentes em seu próprio texto. Proposição aparentemente surpreendente pois como é possível separar a estrutura lógica de um pensamento que pensa o movimento e a transformação, como separar sua maneira de apreender a gênese processual das formas e das normatividades que se querem ontologicamente asseguradas, e sua impotência em funcionar de forma “crítica e revolucionária”? Como retirar o cerne racional de seu invólucro místico, ou seja, liberar a dialética da natureza apressada de suas sínteses, como se tal pressa não estivesse, de certa forma, inscrita no interior da estrutura lógico-formal da dialética? Pois, se não se trata de criticá-la no plano lógico, nem, por consequência, de criticá-la no plano ontológico, então como seria possível organizar uma auto-crítica da dialética que, de forma paradoxal, é a própria realização insurrecional da dialética?
Mesmo que tais questões sejam difíceis de responder, não só para Marx como para sua posteridade, elas mostram algo de decisivo na relação entre teoria e praxis dentro da experiência intelectual inaugurada por Marx, a saber, a praxis é uma realização insurrecional da teoria, de uma certa teoria que se realiza ao ser virada de cabeça para baixo. Podemos mesmo dizer que a praxis é a dialética em seu ponto insurrecional, o que nos deixa com uma questão maior, a saber, o que devemos entender por “dialética” neste contexto. Dialética é o mesmo movimento que encontramos em Hegel, que encontraremos em Adorno, em Lukàcs, que será criticado por Althusser, desprezado por filósofos tão diferentes entre si quanto Bertrand Russell e Gilles Deleuze, entre tantos outros? Responder esta pergunta será um dos objetivos centrais deste curso e o eixo que nos guiará no primeiro módulo de nosso curso.(...)
Universidade de São Paulo
Departamento de Filosofia
Reler Marx hoje
Curso de graduação ministrado no Primeiro Semestre de 2016
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Vladimir Safatle
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