Qual é a diferença entre Hegel e Marx?
Durante meus estudos acerca de lógica
em Hegel cheguei até os textos de Andy Blunden que me abriram um novo
horizonte teórico; a forma como ele trata temas complexos e, também, por
ser da área de ciências exatas como eu, me aproximaram bastante da sua
linguagem e pensamento. No mais, resolvi traduzir este texto em
específico pois creio que seja uma leitura de introdução à Hegel
interessante para quem já atua em movimentos sociais e luta
objetivamente por mudanças aqui no Brasil.
Referente à tradução, algumas citações e
referências foram traduzidas, por conveniência semântica, diretamente do
texto original, porém grande parte das citações foram extraídas de
publicações de língua portuguesa traduzidas direto do alemão, também
adicionei notas de rodapé, indicando referências e explicando termos.
Gostaria de agradecer ao Andy por me oferecer todo suporte necessário para a tradução desse material.
* Andy Blunden é doutor pela University
College London e Membro do Marxists Internet Archive Collective. João
Narciso é estudante de Sistemas de Informação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Nesse texto extraí parte do material de
meu livro recente “Hegel para Movimentos Sociais” para revisitar a
controversa relação entre Marx e Hegel. Aqui baseio minhas observações
sobre o que Marx escreveu referente à filosofia, metodologia e política e
não o que ele próprio disse sobre sua relação com Hegel, que geralmente
é polêmico e enganoso. Também não levei em conta o que Engels disse no
período de popularização das ideias de Marx para os socialistas do
século XIX.
A principal diferença entre Hegel e Marx é a época em que eles viveram
A diferença filosófica entre Hegel e Marx
é um assunto que tem sido calorosamente debatido por mais de um século.
As diferenças entre as abordagens filosóficas de Hegel e Marx serão
tratados em detalhes mais adiante, mas a diferença essencial entre Marx e
Hegel é o tempo e contexto em que viveram.
Dadas as peculiaridades econômicas,
sociais e culturais da Alemanha nos tempos de Hegel, havia alguma base
para Hegel acreditar que seria através da filosofia que a Alemanha
poderia se modernizar. Hoje, isso está claramente exposto como uma
posição “idealista” – por acreditar que uma transformação econômica,
social e cultural poderia ser alcançada através de uma revolução
filosófica, e não o contrário. Contudo, isso não invalida a posição que
Hegel tomou em sua época. Após a morte de Hegel em 1831, seus alunos
tomaram conclusões revolucionárias implícitas na sua filosofia. O
Hegelianismo dividiu a academia enquanto seus alunos popularizavam seus
ensinamentos e traduziam-no para a linguagem da política – ou mais
corretamente, traduziam a política para a linguagem da filosofia
hegeliana. Em 1841, o governo prussiano se mexeu para “expurgar a
semente de dragão do panteísmo hegeliano” (Bunsens Berufungsschreiben an Schelling)
das mentes da juventude prussiana. O recém-nomeado Ministro da Cultura
mobilizou Friedrich Schelling (o último representante sobrevivente do
idealismo alemão e agora um conservador) para vir a Berlim e fazer esse
trabalho. Sua palestra em dezembro de 1841 contou com a participação de
Engels, Bakunin, Kierkegaard e notáveis intelectuais de toda a Europa,
mas evidentemente não conseguiram reprimir a expansão de ideias radicais
e a agitação revolucionária que adotava a filosofia hegeliana. É um
fato notável que quase todos os revolucionários dos séculos XIX e XX
eram leitores de Hegel; hegelianos da segunda ou terceira geração
filosófica que foram influenciados por outras figuras da filosofia alemã
da época – Kant, Fichte e Schelling, mas acima de tudo Hegel – seja na
forma de marxismo ou de outra corrente filosófica crítica. Portanto,
Hegel não estava totalmente enganado em sua crença no poder da filosofia
na política.
Quando Marx renunciou ao cargo de redator do Rheinische Zeitung
em 1843, a França foi abalada por uma série de revoltas da classe
trabalhadora e Paris fervilhava de fermento revolucionário, a classe
trabalhadora inglesa construiu o primeiro partido de trabalhadores
organizados da história (a National Charter Association) e
estavam desafiando a burguesia na Grã-Bretanha, e enquanto isso uma
classe trabalhadora industrial estava surgindo na Alemanha. Era óbvio
que a mudança chegaria à Europa através da luta política da classe
trabalhadora industrial. O desenvolvimento capitalista estava acabando
com todas as antigas relações e seria a classe trabalhadora industrial
que viria a liderar essa transformação. Além disso, os líderes do
movimento trabalhista não estavam apenas exigindo inclusão, reforma ou
substituição do governo vigente, mas sim esmagar o Estado. Isso era algo inimaginável nos dias de Hegel.
Refletindo, veremos que todas as
diferenças políticas e filosóficas entre Marx e Hegel surgem das
mudanças ocorridas na Europa no intervalo entre os últimos anos de Hegel
e a entrada de Marx em atividades políticas radicais. Isso começou com o
primeiro levante proletário em Paris no ano de 1831, ano da morte de
Hegel, quando Marx tinha apenas 12 anos.
As diferenças entre Marx e Hegel são de
dois tipos. Em primeiro lugar, há as diferenças políticas e, em segundo
lugar, suas diferenças filosóficas. As diferenças políticas entre Marx e
Hegel são mostradas em sua polêmica crítica à Hegel em Crítica da Filosofia do Direito (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie).
Ao avaliar seus comentários, deve-se levar em conta que Marx ainda não
havia formulado sua própria visão política e filosófica. Nos 40 anos
seguintes, as visões de Marx se tornaram mais distintas.
As diferenças teóricas de Marx com Hegel
devem ser divididas a partir de um estudo de sua análise socioeconômica e
não pode se basear nas próprias declarações de Marx sobre sua relação
com Hegel, uma vez que são polêmicas e de natureza não confiáveis. Para
ressaltar as diferenças filosóficas entre esses dois autores, irei
descrever as reais diferenças entre materialismo e idealismo, um
problema muito mais multifacetado do que geralmente se imagina. Por fim,
irei examinar Marx e Hegel no contexto de uma abordagem filosófica e
metodológica mais estendida, com o propósito de tornar possível elaborar
uma posição que se baseie nos pontos fortes de ambos e que seja
apropriada para os nossos tempos.
Estado: Jovem Marx vs. Hegel
Na primavera de 1843, o jovem Karl Marx
fez anotações críticas sobre a seção Estado [1] em Princípios da
Filosofia do Direito de Hegel (embora ele faça referência a seções
anteriores no seu comentário), abandonando o trabalho com desgosto na
página 313, [2] enquanto Hegel parte em especulações sobre o curso da
História Mundial. Nesse ponto de sua vida, Marx leu Hegel como um
Feuerbachiano – isto é, criticando Hegel por inverter a relação
sujeito-predicado, e muito dos seus comentários sobre as formas
idealistas de argumento e expressão em Hegel são bastante ridículos e
cansativos. Marx considerou quase tudo o que Hegel disse como uma
racionalização do status quo. As críticas que ele fez que merecem
atenção especial são as seguintes:
Marx observa como, no esquema de Hegel, o
Estado reforça a hierarquia e o privilégio já existente na sociedade
civil e ainda que existe uma “sociedade civil” dentro do serviço
público:
As corporações são o
materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das
corporações. A corporação é a burocracia da sociedade civil; a
burocracia é a corporação do Estado. Por isso, na realidade, ela se
defronta, na condição de “sociedade civil do Estado”, com o “Estado da
sociedade civil”, com as corporações. Lá onde a “burocracia” é um novo
princípio, onde o interesse universal do Estado começa a se tornar para
si um interesse “a parte” e, com isso, “real”, ela luta contra as
corporações com toda consequência, luta contra a existência de seus
pressupostos. Em contrapartida, tão logo a vida real do Estado desperta e
a sociedade civil se liberta das corporações a partir de um impulso
racional, a burocracia procura restaurá-las, pois, desde o momento em
que cai o ‘Estado da sociedade civil’, cai também a ‘sociedade civil do
Estado’ (MARX, 2010, p. 65).
Esta passagem é seguida por uma crítica
prolongada ao burocratismo e a hierarquia, sobre o qual Hegel confia na
racionalidade do Estado – o funcionário público “é como um martelo vis-à-vis
com os que estão abaixo e como uma bigorna em relação aos que estão
acima” e seu cargo é de fato substancial e também seu ganha pão.
Tudo bem, exceto que Hegel estabelece
educação direta em pensamento e conduta ética contra o mecanismo de
conhecimento e trabalho burocrático! O homem dentro do funcionário
público supostamente deve proteger o funcionário público contra si
mesmo. Em outras palavras, Marx considera que a crença de Hegel no papel
progressivo da função pública é uma ilusão idealista – todas as formas
de burocracia e hierarquia levam à opressão.
Marx critica o papel mediador que Hegel atribui aos Estados:
Os estamentos protegem o
Estado da turba inorgânica apenas por meio da desorganização dessa
turba. Mas os estamentos devem, ao mesmo tempo, fazer a mediação de tal
forma que os interesses particulares das comunas, corporações e dos
indivíduos não se isolem. Ao contrário, eles fazem a mediação: 1)
transigindo com o interesse do Estado, 2) sendo eles mesmos o isolamento
político desses interesses particulares; esse isolamento como ato
político, já que, por meio dos estamentos, esses interesses isolados
alcançam o grau de interesse universal. Finalmente, os estamentos devem
fazer a mediação contra o isolamento do poder soberano como um extremo
(que, assim, apareceria como simples poder dominante e como arbítrio).
Isto está correto na medida em que o princípio do poder soberano (o
arbítrio) é limitado pelos estamentos, ou, ao menos, pode mover-se
apenas dentro de entraves, e enquanto os próprios estamentos se tornam
membros e cúmplices do poder soberano (MARX, 2010, p. 86).
Marx afirma que esse arranjo visa impedir
que as pessoas formem uma vontade organizada, em vez de dar ao povo um
meio de expressar essa vontade de participação, o governo transforma o
partido político de um instrumento para a representação do povo em um
meio para controle pelo Estado.
Marx rejeita com desprezo a “dedução” de
Hegel de primogenitura e monarquia: “Hegel realizou a proeza de
desenvolver, a partir da Ideia absoluta, os pares por nascimento, o bem
hereditário etc. etc., este sustentáculo do trono e da sociedade” (p.
94) e rejeita ainda a demissão de Hegel de uma “constituição
representativa”, isto é, sufrágio universal. Ao considerar as mediações
complexas que Hegel cria entre os vários direitos civis, Marx comenta
exasperado:
O príncipe deveria, por
conseguinte, fazer-se, no poder legislativo, de termo médio entre o
poder governamental e o elemento estamental; porém, o poder
governamental é justamente o termo médio entre ele e a sociedade
estamental, e esta é o termo médio entre ele e a sociedade civil! Como
deveria ele mediar aqueles de quem ele tem necessidade, como seu termo
médio, para não ser um extremo unilateral? Aqui se evidencia todo o
absurdo desses extremos, que desempenham alternadamente ora o papel de
extremos, ora o de termo médio. São cabeças de Jano, que ora se mostram
de frente, ora de costas, e que de frente têm um caráter diverso do de
costas. Aquilo que se determina primeiramente como termo médio entre
dois extremos comporta-se, então, ele mesmo, como extremo, e um dos dois
extremos, que através daquele era mediado com o outro, mostra-se,
agora, como extremo (porque em sua distinção com o outro extremo) entre o
seu extremo e o seu termo médio. É uma complementação recíproca. Tal
como um homem que se encontra entre dois litigantes e, então, um destes,
por sua vez, coloca-se entre o intermediário e o outro litigante. É a
história do homem e da mulher que brigavam e do médico que queria servir
de conciliador entre eles, com o que, então, a mulher devia se colocar
entre o médico e o marido e, este, entre a mulher e o médico (MARX,
2010, p. 104).
No decorrer de uma longa crítica contra a obsessão de Hegel pela mediação, Marx diz:
Extremos reais não
podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos
reais. Mas eles não precisam, também, de qualquer mediação, pois eles
são seres opostos. Não têm nada em comum entre si, não demandam um ao
outro, não se completam. Um não tem em seu seio a nostalgia, a
necessidade, a antecipação do outro (MARX, 2010, p. 105).
É claro que isso não pode ser comparado
às visões posteriores de Marx sobre a burguesia e o proletariado, mas
seu significado político é claro: a dominação do proletariado pela
burguesia não precisa ser mediada, mas derrubada, e o Estado não é de
fato um mediador, mas um instrumento de opressão.
Hegel e Marx sobre o sufrágio universal
Hegel defende consistentemente formas de
representação altamente mediadas e contra o sufrágio universal. Marx
responde apontando que as críticas válidas de Hegel estão evitando a
questão principal:
A questão sobre como a
sociedade civil deve tomar parte no poder legislativo, que ela ingresse
nele por meio de deputados, ou que “todos singularmente” participem de
forma direta, é ela mesma uma questão no interior da abstração do Estado
político, ou no interior do Estado político abstrato; é uma questão
política abstrata. (MARX, 2010, p. 131).
E:
Não se trata, aqui, de
determinar se a sociedade civil deve exercer o poder legislativo por
meio de deputados ou todos singularmente, mas se trata, sim, da extensão
e da máxima generalização possível da eleição, tanto do sufrágio ativo
como do sufrágio passivo. Esse é o ponto propriamente controverso da
reforma política, tanto na França quanto na Inglaterra. (MARX, 2010, p.
134).
Marx não oferece soluções para esse
problema, mas faz uma crítica prolongada à Hegel, que traz à tona as
contradições inerentes à sua construção de políticas representativas. Em
outros lugares, Marx ressalta que na França o sufrágio universal havia
sido usado contra a classe trabalhadora urbana, utilizando o peso do
campesinato, enquanto na Grã-Bretanha o sufrágio universal era a demanda
central da classe trabalhadora emergente. Sem enfrentar os problemas
levantados por Marx, Hegel elabora um poderoso argumento contra o
sufrágio universal.
Ainda a propósito da
eleição por grande número de indivíduos, pode observar-se que, nos
grandes Estados, necessariamente se dará a indiferença pelo sufrágio,
que terá um aspecto insignificante para a massa e, embora se apresente o
direito de voto como algo de muito elevado, os eleitores não
comparecerão ao escrutínio. Tal instituição é assim contrária aos fins a
que visa e a eleição cai nas mãos das minorias, dos partidos, portanto
de um interesse particular contingente que é, precisamente, o que devia
ser neutralizado (HEGEL, 1997, p. 286).
Marx não teve a resposta para esse
problema com antecedência e teve que esperar a própria classe
trabalhadora mostrar o seu caminho na Comuna de Paris. Segundo Hegel, os
deputados do Legislativo têm a ver com os vários ramos da sociedade, e o
eleitorado não deve ser visto como uma multidão de átomos (HEGEL, 1997,
p. 279). Os deputados devem representar os vários grupos reais da
sociedade e tratá-los com igualdade. O sufrágio universal, pelo
contrário, exige que todos os indivíduos votem em particular, como um
átomo isolado. Hegel pressagia uma preferência no movimento dos
trabalhadores, observou Marx, para que os delegados ao legislativo sejam
selecionados a partir de organizações reais do local de trabalho ou da
comunidade local, como os soviéticos.
Hegel acreditava que o público deveria
ser educado em assuntos nacionais, e ele vê as assembleias dos Estados
como o meio de conseguir isso, enquanto a discussão política “ao lado do
fogo com sua esposa e seus amigos” nunca pode ser melhor do que
“construir castelos para o céu” [3]. A participação em assembleias é
essencial para a educação política, e isso só pode ser alcançado nos
órgãos mediadores entre as associações da sociedade civil e a
legislatura.
“Opinião pública” é o nome dado aos
“indivíduos… por terem e expressarem seus próprios julgamentos, opiniões
e recomendações particulares sobre assuntos de Estado”. A opinião
pública é, portanto, “um repositório de necessidades genuínas e
tendências corretas para a vida comum”, mas “infectada por todos os
acidentes de opinião, por sua ignorância e perversidade, por seus erros e
falsidade de julgamento”, e Hegel cita Goethe: “as massas são mãos
respeitáveis na luta, mas mãos infelizes no julgamento”.
Em sua preferência pela democracia
participativa mediada por partidos políticos e organizações baseadas no
trabalho, Hegel está próximo das posições do socialismo democrático
moderno.
Você, Marx e Hegel no Estado
A Filosofia do Direito de Hegel
contém erros, no entanto é um projeto exemplar em sua intenção e método.
A reconstrução crítico-lógica do Estado de Hegel foi concebida como um
elemento de um programa de reforma, dirigido contra a monarquia absoluta
reacionária que governava a Prússia na época, e que, como tratado
filosófico, teria um significado duradouro. É uma reconstrução
crítico-lógica assim que qualquer revolucionário deveria estar
interessado em fazer atualmente.
Muita coisa mudou desde que o livro foi
escrito em 1821. Em particular, o principal eixo da luta de classes não é
mais aquele entre a aristocracia fundiária e a burguesia urbana (embora
a contradição entre as comunidades rurais e urbanas persista), mas
entre uma classe trabalhadora globalizada, agora amplamente fragmentada
pelos processos modernos de trabalho e estratégias anti-sindicais do
governo, e uma burguesia que desfruta de uma concentração de riqueza
anteriormente inimaginável.
Considerando que Hegel podia ver o Estado
como uma arena de luta pelo domínio na sociedade civil, hoje muitos de
nós consideramos que a classe dominante na sociedade civil (agora a
burguesia) utiliza o Estado como um instrumento para a supressão de
organizações e de revoltas espontâneas contra a exploração capitalista. O
terreno já estava mudando quando Hegel morreu em 1831, e agora faz mais
de 135 anos desde a morte de Marx, e a natureza do processo de trabalho
e, portanto, da classe trabalhadora também mudou drasticamente.
A ideia fundamental do livro, como
apresentada no Prefácio, permanece, em minha opinião, totalmente
convincente – precisamos entender o que é racional no Estado político
existente, isto é, historicamente necessário e, portanto nesse sentido,
progressivo, e entender o que no Estado existente é irracional e merece
perecer.
Vamos analisar alguns dos principais erros de Hegel.
A misoginia de Hegel
A “dedução” altamente misógina sobre o
lugar das mulheres na sociedade é um indicador do perigo de considerar
natural qualquer fenômeno social e de ignorar os protestos daqueles que
estão sofrendo injustiça. Todos os fenômenos sociais e históricos são
construídos pela atividade humana e podem ser feitos de outra maneira
que não são. Tudo é como é por razões inteligíveis, sociais, culturais
ou políticas. No momento em que Marx escrevia seus trabalhos maduros,
graças à luta das primeiras feministas e de pesquisas antropológicas,
estava bem estabelecido que as diferenças de gênero eram sociais e Marx
entendeu o que Hegel deveria ter entendido, mas não o fez.
O fracasso de Hegel em enxergar a contradição no valor de troca
Hegel estava plenamente ciente das
crescentes contradições geradas pelo mercado, mas enquanto Marx foi
capaz de revelar as raízes dessas contradições na forma de valor da
mercadoria, Hegel parou de analisar a contradição que sua própria
análise expôs.
Hegel já havia derivado o conceito de
“valor” na seção sobre propriedade, e especificamente na seção Uso, de
modo que o valor foi tomado ingenuamente como uma medida da utilidade de
uma mercadoria. Embora ele visse o valor de um produto como condicional
à capacidade de trocá-lo, o valor não é quantitativamente determinado
na seção sobre troca. Da mesma forma, nesta seção, Hegel diz que é o
trabalho que confere valor aos produtos da Natureza e que “são produtos
do esforço humano que o homem consome”; portanto, o valor é condicionado
pelo fato de que o objeto é um produto do trabalho. Mas ele ainda vê a
medida do valor como determinada exclusivamente pela utilidade. Hegel
reconheceu o sistema de Necessidades e Trabalho como um processo de
abstração e medida reais, mas não utilizou o que foi desenvolvido nessa
parte de sua Lógica para revelar a dinâmica da sociedade burguesa. Marx
sim.
A superficialidade do tratamento de valor
econômico por Hegel foi criticada por Marx. As contradições da
sociedade burguesa que gerava desigualdade cada vez maior encaravam
Hegel de frente, mas tudo o que Hegel podia fazer era descrevê-las e
lamentar. Marx levou tempo para mostrar como essas patologias estavam
enraizadas no conceito de valor. O Movimento de Libertação das Mulheres
precisou de pelo menos uma década e de milhares de obras de escritoras
feministas para expor as raízes sociais da opressão das mulheres. A
crítica da economia política foi o trabalho da vida de Marx e ele
escreveu levando em consideração o contexto do capitalismo na
Grã-Bretanha e o poderoso movimento de trabalhadores industriais que se
alastrava por toda a Europa. A resolução crítica de problemas como a
opressão das mulheres ou a exploração do trabalho assalariado não são
tarefas que podem ser feitas de maneira indireta através das reflexões
de um único escritor. A verdadeira conquista de Hegel foi sua lógica, e é
esse trabalho que realmente está de certa forma suportando seu
tratamento relativamente superficial de muitos dos problemas que
surgiram em Princípios da Filosofia do Direito. Hegel está
plenamente consciente do efeito expansivo e revolucionário da economia
de mercado (essencialmente pelos processos de trabalho burguês) sobre o
Estado e a vida social como um todo, mas ele aceitou a crença dos
economistas políticos de que, no mercado, a “busca por satisfação
pessoal se transforma em uma contribuição para a satisfação das
necessidades do outro”. A participação na sociedade civil desenvolve o
hábito do trabalho e promove uma gama infinita de habilidades e uma
crescente compreensão de “como o mundo funciona”. Mas a divisão do
trabalho torna o trabalho de cada indivíduo cada vez menos complexo e
torna as pessoas cada vez mais dependentes uma das outras.
“A abstração da
produção leva a mecanizar cada vez mais o trabalho e, por fim, é
possível que o homem seja excluído e a máquina o substitua” (HEGEL,
1997, p. 178).
Hegel explorou várias soluções para esse
crescente problema social – filantropia, uma renda universal básica
garantida pelo Estado, esquemas de criação de empregos e particularmente
emigração para as colônias, mas rejeitou de imediato a opção de
propriedade comum dos meios de produção. Hegel não percebeu que, quando
os meios de produção têm caráter inteiramente social, o papel
emancipatório básico da propriedade privada não pode ser estendido – da
propriedade do corpo, dos objetos pessoais e domésticos e das
ferramentas do comércio – aos meios sociais de produção em si. Hegel
provou que o ar e a água não podem ser propriedade privada, mas falhou
em utilizar a mesma lógica para ver que os meios de produção industrial
também não podem.
Sufrágio universal e democracia participativa
A demanda por sufrágio universal era um
daqueles direitos que vinham crescendo no solo da sociedade moderna,
pelo menos desde a Revolução Inglesa da década de 1640, mas que, como a
demanda pela emancipação das mulheres e a demanda por liberdade da
exploração do trabalho assalariado, foi taxada por Hegel como “construir
castelos para o céu”, ou seja, utópico. Contudo, certamente sabemos
agora que essas demandas são as precursoras das grandes lutas sociais
que estariam por vir. Hegel não percebeu que as aspirações utópicas não
são meramente “castelos no céu” que surgem em conversas à beira do fogo,
mas o produto de processos sócio-históricos reais e precursores do que
estaria por vir. O ‘direito de voto’ é entendido como um direito que se
estende a todas as pessoas, como Direito Abstrato, mas que claramente
faz parte do Estado e não do Direito Abstrato ou da Sociedade Civil. Ao
contrário dos tipos de “direitos” pelos quais a Sociedade Civil é
responsável, não é um “direito individual” – que depende das
circunstâncias e exigências econômicas de uma pessoa, mas um “direito
humano”. Levando em conta a estrutura de Princípios da Filosofia do Direito,
isso é uma contradição em termos. Apesar de todas as críticas feitas
por Hegel ao sufrágio universal, críticas que foram amplamente
compartilhadas pelos marxistas e, caso possa acreditar nas pesquisas de
opinião compartilhadas hoje em dia, pela maioria dos próprios eleitores,
é impossível conceber uma ‘república socialista democrática ‘(ou o que
você quiser chamar o tipo de Estado a que aspira) que não inclui, como
marcador de cidadania – um direito universal de voto. Não importa que o
sufrágio universal seja usado, juntamente com a propriedade privada dos
meios de comunicação e meios de produção, como um meio de manipular as
massas e perpetuar os sistemas de exploração. Como Marx (1848) colocou
no Manifesto Comunista: “o primeiro passo para revolução proletária é
elevar a classe trabalhadora à posição de classe dominante, para assim
vencer a batalha pela democracia”. Se você não pode vencer uma eleição
geral, certamente não pode tomar o poder de Estado, muito menos
organizar a expropriação de capital. Hegel nos mostrou como o papel
político da Coroa se afasta do Chefe do Executivo e do Comandante em
Chefe, para um oficial clerical que assina documentos oficiais nas
cerimônias, um símbolo vivo sem função social, à medida que o Estado se
torna mais maduro e estável e o nível cultural das massas aumenta. Nesta
concepção do desaparecimento do papel da Coroa para um papel puramente
simbólico, Hegel pressupõe a concepção de Marx do desaparecimento do
próprio Estado, ao mesmo tempo em que afirma que o Estado é “a marcha de
Deus na Terra”. A mesma noção se aplica a todas as instituições do
Estado. O sufrágio universal não pode ser abolido (exceto para instaurar
despotismo), mas deve ser transcendido.
Em que sentido Hegel era um idealista?
Quase todo tratamento da relação
Marx-Hegel depende de uma caracterização do materialismo versus
idealismo. Isso pode ser enganoso, porque nem o idealismo nem o
materialismo podem ser adequadamente definidos ao longo de um único
eixo, muito menos no mesmo eixo.
(a) Hegel se descreveu como um idealista
Hegel foi o produto final do movimento
filosófico conhecido como “idealismo alemão”, que surgiu na Alemanha em
resposta à filosofia crítica de Immanuel Kant. Kant pretendia resolver o
impasse entre o empirismo britânico e o racionalismo francês. Essas
correntes filosóficas foram impulsionadas por problemas que surgiram do
rápido desenvolvimento das ciências naturais desde Galileu,
principalmente a natureza da realidade e as fontes e limites do
conhecimento humano da Natureza. Kant havia proposto que algo existia
“em si”, mas os seres humanos poderiam ter conhecimento apenas dos
fenômenos, isto é, aparências, enquanto a natureza da coisa em si mesma
permaneceu além da experiência e incognoscível. A abordagem de Kant
gerou muitos dualismos e contradições preocupantes, e os idealistas
alemães tentaram resolver essas contradições concentrando-se em formas
de conhecimento, em vez de especular sobre a natureza de uma realidade
fora da prática humana, que era a preservação dos materialistas. Hegel
coloca desta maneira:
A proposição de que o
finito é ideal constitui idealismo. O idealismo da filosofia consiste em
nada além de reconhecer que o finito não tem um verdadeiro ser. Toda
filosofia é essencialmente um idealismo ou, pelo menos, tem idealismo
para seu princípio, e a questão então é apenas até que ponto esse
princípio é realmente realizado. Uma filosofia que atribuísse um ser
verdadeiro, último e absoluto à existência finita como tal, não
mereceria o nome de filosofia; os princípios das filosofias antigas ou
modernas, água ou matéria ou átomos são pensamentos, universais,
entidades ideais, não coisas que se apresentam imediatamente para nós,…
de fato, o que é, é apenas um todo concreto do qual os momentos são
inseparáveis (HEGEL in Ciência da Lógica).
Portanto, os materialistas arquetípicos
eram os atomistas gregos antigos – tudo, inclusive vida humana, foi o
resultado de interações entre átomos. O materialismo moderno, que surgiu
depois de Hegel, tem um conceito mais amplo da realidade material que
inclui as relações sociais, mas os materialistas anteriores tendiam a
ser cegos para a formação social do conhecimento e da consciência. Foram
os idealistas, em particular Hegel, que descobriram o caráter social da
consciência e do conhecimento, não os materialistas. No entanto, os
idealistas não fizeram formas de praticar explicitamente o objeto de
seus sistemas; em vez disso, tomaram as “sombras” da atividade real –
categorias lógicas, conceitos, ideias etc., como assunto justificando
sua descrição de “idealistas”. Uma leitura crítica de Hegel mostrará, no
entanto, que o conteúdo dessas formas ideais é uma forma de atividade.
Nem todas as formas de idealismo são
iguais. Em particular, Hegel distingue entre idealistas subjetivos como o
bispo Berkeley e idealistas objetivos, como ele e Schelling. Ou seja,
para Hegel, as formas de pensamento não eram quimeras que existiam
apenas dentro de sua cabeça, mas existiam objetivamente, na atividade e
na cultura material, independentemente de qualquer indivíduo, e que os
indivíduos adquiriram no curso de suas atividades.
b) Hegel enfatizou o lado ativo ao invés de contemplação passiva
A primeira expressão do marxismo – a tese
1 das teses de Marx sobre Feuerbach – é referindo-se a Hegel em
particular quando se fala em “idealismo”:
O defeito fundamental
de todo materialismo anterior – inclusive o de Feuerbach – está em que
só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto
ou da percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática,
não de modo subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido
pelo idealismo, em oposição ao materialismo, mas apenas de modo
abstrato, já que o idealismo, naturalmente, não conhece a atividade
real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente
diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade
humana como uma atividade objetiva… (MARX, 1982, s.p).
Os idealistas não apenas viam a percepção
como um processo ativo, mas também viam a interpretação da experiência
de alguém, como você concebeu e reagiu a uma situação, como um processo
ativo. O contraste com a atitude materialista em relação à formação
social dos seres humanos é apresentado na “Tese 3”:
A teoria materialista
de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que,
portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e
de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas
precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado.
Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das
quais se sobrepõe à sociedade… (MARX, 1982, s.p).
Por outro lado, vemos que Marx criticou
os filósofos por meramente interpretar o mundo em vez de tentar mudá-lo,
em parte porque “o idealismo não conhece a atividade real e sensitiva
como tal”, preocupando-se mais com conceitos do que com atividades – as
sombras do que com a própria atividade real. Assim, Marx nos apresenta a
contradição de que são os idealistas que se basearam na luta para mudar
a realidade como fonte de conhecimento da realidade, em vez de
contemplar passivamente a realidade como os materialistas. Mas, como
todos os filósofos profissionais, eles apenas “interpretaram” o mundo,
em vez de agir para mudá-lo.
No geral, as teses de Marx sobre Feuerbach são uma defesa do idealismo de Hegel.
(c) Hegel levou a elite social a ser a agente da mudança
Tendo testemunhado uma mudança social na
Grã-Bretanha graças à industrialização e na França graças à guilhotina,
Hegel esperava uma revolução menos traumática e caótica na Alemanha, que
seria liderada pelos professores da elite social – filósofos, monarcas
esclarecidos e um serviço público meritocrático, em vez da destruição
cega causada por turbas e proprietários de fábricas. Embora apoiasse o
direito dos escravos e das nações oprimidas de expulsar seus opressores,
ele queria que sua Alemanha natal atingisse a modernidade através da
perfeição de um Estado que garantiria as liberdades de seus cidadãos.
Ele via os Estados como garantidores da liberdade, não como instrumentos
de opressão e se opunha resolutamente a métodos destrutivos e
revolucionários para alcançar o progresso social. Ele considerava os
pobres e a classe trabalhadora incapazes de serem agentes do progresso
social que não fosse o da educação gradual – sua miséria era um problema
social que só poderia ser resolvido com a intervenção de uma elite
iluminada.
Quando um processo de trabalho é
aprimorado, é graças ao supervisor que cria o método ou a melhoria está
implícita no próprio processo de trabalho, para que possamos creditar
aos trabalhadores e não ao supervisor a melhoria? Quando um problema
social é resolvido com a aprovação de uma nova lei, creditamos aos
parlamentares que aprovaram a nova lei ou a demanda por mudanças geradas
pelo sofrimento? Chegamos a um mundo melhor por (pelo menos algumas)
pessoas formando uma imagem desse mundo melhor e depois lutando por ele,
ou o mundo melhor surge de contradições inerentes ao atual estado de
coisas que levam as pessoas a agirem independentemente de não poderem
prever o resultado? Chamamos de “idealistas” essas pessoas que pensam
que a classe social cujo negócio são planos e ideias é o agente da
mudança, ao invés das massas que representam essas ideias. Chamamos de
“materialistas” essas pessoas que vêem a mudança social surgindo
diretamente das condições de vida, tendo as pessoas comuns como seus
agentes (geralmente) inconscientes. Mas lembre-se da Tese 5 citada
acima: se, como materialistas, vemos as pessoas como produtos de suas
condições sociais, então as reduzimos a objetos passivos de mudança,
deixando a consciência da mudança para a intelligentsia ou o
Partido. Hegel e os idealistas erraram o lado da mudança, de cima para
baixo, mas o foco exclusivo na mudança de baixo é igualmente equivocado,
porque faz das pessoas objetos passivos das forças estruturais fora de
seu controle.
d) Hegel acreditava que as instituições tendem a ser fiéis ao seu conceito
Qualquer pessoa reconhecerá que, ao longo
dos anos, os automóveis concordaram melhor com seu conceito do que
antes, transportando passageiros para o destino desejado em conforto sem
quebrar; da mesma forma, as máquinas de lavar tornaram-se cada vez mais
propensas a lavar suas roupas e não destruí-las desde que foram
inventadas pela primeira vez em 1908. Hegel acreditava que essa ideia,
que foi chamada de “essencialismo normativo”, se aplica tanto a
instituições sociais quanto a artefatos úteis e é crucial para sua
filosofia social. Embora os Estados se originem na violência, segundo
Hegel, o conceito de Estado é Liberdade – liberdade do crime, fome e
ataques externos, liberdade para o desenvolvimento pessoal e o gozo da
cultura. Ou seja, um conceito que vale a pena, uma vez criado, tenderá a
se realizar de formas cada vez mais perfeitas e só entrará em crise
quando seu conceito não fizer mais sentido. Nesse sentido, Hegel vê a
lógica das ideias e conceitos como a força motriz da história. Marx
respondeu:
A História não faz
nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de
luta”. Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o
homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o
homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma
pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que
persegue seus objetivos (MARX, 2003, p. 111).
Marx aqui está expressando uma posição
materialista, na qual as pessoas não devem ser vistas como cativas de
ideias, mas como atores reais. Mas se Marx não deve ser acusado de
voluntarismo, devemos levar em conta seu aforismo:
Os homens fazem a sua
própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade,
pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é
feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A
tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o
cérebro dos vivos (MARX, 2011, p. 25).
O que é “transmitido do passado” – as
instituições, símbolos e crenças, as normas construídas por um povo ao
longo dos séculos – se desenrola de uma maneira habilmente descrita por
Hegel com sua filosofia dialética idealista. Mas como as pessoas fazem
uso dessas condições nem sempre é lógico; as pessoas nem sempre fazem o
que têm que fazer, por assim dizer, por isso a insistência de Marx de
que a realização de uma ideia é uma questão de luta é uma importante
correção à visão idealista da história que se desenrola de acordo com
princípios racionais e inteligíveis. No entanto, permanece o fato de que
o idealismo de Hegel é um poderoso princípio do desenvolvimento
histórico e, historicamente, sempre foram os idealistas que enfatizaram a
ação humana na mudança social.
(e) Hegel minimiza o efeito das relações mundanas nas instituições
Como discutido acima, em sua Filosofia do Direito,
Hegel às vezes é incrivelmente ingênuo: ele pensa que o serviço público
é uma meritocracia que serve ao bem público, e nem sequer considera que
os funcionários públicos se cuidem como todos os outros; não lhe parece
importante a forma como os juízes são nomeados ou de que classe social
são designados, porque é o conceito deles de aplicar a lei a casos
individuais, e não mais seu próprio interesse de classe ou agenda
política; o fato de o monarca constitucional, como o proprietário
tradicional da terra, ser uma pessoa extremamente rica, não causa a
Hegel muita expectativa de que seu julgamento possa ser prejudicado por
sua riqueza. Marx ridiculariza esse idealismo, comentando ironicamente:
“O homem dentro do funcionário público deve proteger o funcionário
público contra si mesmo” (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
1843), observando que uma “sociedade civil” necessariamente opera dentro
do serviço público.
Hegel parece pensar que os funcionários
irão agir de acordo com a descrição de seu trabalho; Marx não acredita
nisso. Todo mundo sabe que a estrutura de remuneração determina as ações
de um funcionário com muito mais eficácia do que a declaração de missão
da organização. Nos EUA, todos parecem aceitar que os juízes da Suprema
Corte agem de acordo com sua própria agenda política e que se pode
confiar nos tribunais inferiores para discriminar os afro-americanos. No
entanto, na maioria dos países desenvolvidos, apesar do fato de os
juízes serem sempre selecionados da parte mais privilegiada da
sociedade, a lei geralmente se desenvolve e é aplicada de maneira
racional, digna de ser escrita nos livros de direito, em vez de ser uma
expressão nua de preconceito de classe. Além disso, quando são tomadas
decisões que são expressões de preconceito de classe, há indignação
pública, apelos e pressão política, e mesmo que demore séculos, há algum
mérito no aforismo: “A verdade sairá.” À longo prazo, o idealismo de
Hegel, nesse sentido, costuma ter mais mérito do que um materialismo
cínico sugere.
f) Hegel superestimou a razão especulativa em relação ao próprio processo social
Hegel publicou pela primeira vez sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas
em 1817. Neste trabalho monumental, ele pretendia prefigurar (entre
outras coisas), em linhas gerais, todo o desenvolvimento da ciência
natural. Contudo, a ciência natural não progrediu ao escrever
enciclopédias cada vez mais perfeitas e abrangentes; em vez disso,
indivíduos e grupos se esquivavam de problemas estritamente definidos, o
tempo todo sem qualquer visão sofisticada do todo e, gradualmente, ao
longo das décadas, os fios separados cada vez mais entraram em contato
um com o outro e, com o tempo, através de um processo aparentemente
objetivo, visões científicas gerais viáveis começaram a surgir. Cada
linha de pesquisa foi influenciada pelas descobertas, teorias, técnicas e
ferramentas produzidas pelos outros; o escopo, a complexidade e a
interconectividade da atividade humana se desenvolviam cada vez mais,
lançando novas ideias, novas técnicas, novas teorias, novas formas de
experimento, infinitas novas possibilidades, muito além da capacidade de
uma única mente planejar ou prever. Todo insight, toda descoberta, é o produto de uma mente humana, mas o processo como um todo é um gigantesco processo social em todo o mundo.
A cada momento, a mais recente descoberta
resultante do desdobramento interminável da prática humana é
inteligível à luz do que foi antes, do que já foi descoberto. Mas quem
pode dizer qual será a próxima descoberta? Quando Marx escreveu o Manifesto Comunista,
deixou muitas questões por resolver. Uma delas era a questão de saber
se o movimento dos trabalhadores poderia tomar o poder e como eles
usariam esse poder. Marx não tentou resolver isso com antecedência. Ele
teve que esperar até que a Comuna de Paris demonstrasse o que o
movimento operário faria. Ele então alterou o Manifesto de acordo –
acrescentando ao Prefácio de 1872 ao Manifesto as palavras:
“Uma coisa foi provada especialmente pela Comuna”, que “a classe
trabalhadora não pode simplesmente se apossar do maquinário estatal já
pronto e usá-lo para seus próprios propósitos”.
Da mesma forma, ao escrever O Capital,
Marx tomou como ponto de partida não o conceito de valor como tal, mas a
forma social mais simples na qual o valor foi manifestado, a troca de
mercadorias. Morando na Inglaterra, na época o país capitalista mais
avançado, foi possível observar o desdobramento da relação de valor da
prática de troca de mercadorias. Um “conceito de valor” era observável
nos escritos dos economistas políticos, mas a troca de mercadorias é um
ato real que pode ser testemunhado e apreendido visceralmente por
qualquer pessoa. Ele poderia tornar o desenvolvimento do capital
inteligível por meio de sua análise da troca, mas ele fez apenas
previsões mais gerais e qualificadas de onde ele se dirigia, com base em
sua visão clara de onde estava no momento. Mas ele não podia prever as
sucessivas transformações do capital que fluíram pela economia após sua
morte, e Marx sabia disso. Mas compare a análise de Marx com a análise
ingênua do valor de Hegel mencionada acima. Como idealista, Hegel
acreditava falsamente que a lógica lhe permitiria prever o que ainda
estava fora da experiência social. Dado que ele estava escrevendo em
1817, antes do experimento de Michelson-Morley, do microscópio e das
descobertas de Darwin e do surgimento da investigação científica natural
durante o século 19, é óbvio para nós que o projeto da Enciclopédia era
insustentável. Somente o próprio processo social como um todo pode dar
certo e revelar o conteúdo real de um conceito; essa percepção está
disponível para o teórico na medida em que ele pode observar e tornar
inteligível o que existe ou já está, pelo menos, no processo de
desenvolvimento. Esta é a diferença entre Idealismo e Materialismo em
termos de método.
Virando Hegel de cabeça para baixo
O aforismo de Marx é válido: “Meu método
dialético não é apenas diferente do hegeliano, mas é o seu oposto
direto… Com ele, ele está de pé sobre sua cabeça. Ele deve ser virado
para cima novamente” [4].
Mas, sem explicação, é um pouco inútil
para a compreensão, muito menos para usar a dialética de Marx. Primeiro,
considere esta crítica que Marx apontou para Hegel:
O todo como um todo de
pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante
que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é
diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-mental. O
sujeito real, como antes, continua a existir em sua autonomia fora da
cabeça; isso, claro, enquanto a cabeça se comportar apenas de forma
especulativa, apenas teoricamente. Por isso, também no método teórico o
sujeito, a sociedade, tem de estar continuamente presente como
pressuposto da representação (MARX, 2011, pg. 79).
O “sujeito real” é prática social. Uma
forma de prática social não pode ser observada e tornada inteligível por
um teórico até que ela venha a existir. O progresso do conhecimento tem
a aparência de uma realização do pensamento, mas, na verdade, é o
verdadeiro progresso da prática social, subsequentemente “refletido” nas
teorias dos filósofos sucessivos. (A intervenção prática na prática
social, em vez de na “reflexão”, oferece um escopo mais amplo para a
compreensão de um fenômeno natural ou social.) Agora isso está implícito
nos conselhos de Hegel no Prefácio de Princípios da Filosofia do Direito
sobre a coruja de Minerva voando somente ao entardecer, mas Marx leva a
sério esse conselho, enquanto Hegel estava muito inclinado a acreditar
que a elite intelectual da sociedade (inclusive ele próprio) poderia
usar a lógica especulativa para teorizar antes do desenvolvimento real. O
idealismo de Hegel também se reflete no fato de que Hegel sempre
procurou a elite intelectual e social para resolver problemas sociais e
considerou as massas como uma força mais ou menos destrutiva da
Natureza, enquanto Marx, por outro lado, considerava os trabalhadores o
veículo de progresso social. Essa orientação para a “terra” e não para
as “estrelas” é como eu interpreto “virando Hegel para cima novamente”.
Conceitos são formas de atividade e o
“Espírito” de Hegel pode ser interpretado como atividade humana. O
parágrafo de Marx que acabamos de citar mostra que Marx assumiu a mesma
posição. Há muita coisa nos escritos de Hegel que torna difícil
acreditar que também não via dessa maneira, mas o que quer que estivesse
em sua mente, ele sempre escrevia como se fossem as entidades
espirituais que eram o componente principal e a ação humana meramente
derivada. De fato, todo o seu estilo de escrita pode ser descrito como
“idealista”. No entanto, ideias e atividades são inseparáveis e qualquer
teoria que se baseia em uma e não na outra é insustentável. A maneira
como gostaria de explicar a relação entre Marx e Hegel é mediar a
relação entre eles com a “Ciência romântica” de Goethe.
Goethe, Hegel e Marx.
Durante sua Jornada Italiana (1787/1862) e
em correspondência com seu amigo Johann Gottfried Herder, o grande
naturalista e poeta Johann Wolfgang von Goethe, chegou ao conceito de Urphänomen
observando a variação das plantas em diferentes altitudes e latitudes.
Cada planta, ele acreditava, era uma realização de acordo com as
condições, de uma forma subjacente que ele chamava de Urpflanze.
Essa ideia foi inspirada no Schwerpunkt de Herder – o “ponto forte” de
um povo, sua experiência ou indústria definidora, que (nas palavras de
Marx) “é uma iluminação geral que banha todas as outras cores e modifica
sua particularidade”. O Urphänomen era o exemplo particular
mais simples de um processo ou organismo complexo que exibia as
características essenciais do todo. Assim, em um exemplo simples,
sensitivamente percebido, alguém poderia entender o todo como uma Gestalt e esse Urphänomen
forneceria o ponto de partida para toda uma ciência. Hegel e Goethe
morreram pouco antes dos microscópios desenvolverem energia suficiente
para revelar a microestrutura de plantas e animais e do descobrimento da
célula. Goethe nunca poderia imaginar o que o microscópio revelaria,
mas o Urphänomen antecipou a célula, que, juntamente com a evolução pela seleção natural, lançou as bases da biologia moderna.
Hegel creditou explicitamente a Goethe
essa descoberta como inspiração para seu próprio método, que começa no
Conceito Abstrato, o conceito mais simples, a “célula germinativa” que
fornece à ciência seu ponto de partida, dado a ela de fora da própria
ciência. Para Hegel, esse “Ur-conceito” não poderia ser o produto da
intuição intelectual como era para o “empirismo delicado” de Goethe,
mas, pelo contrário, era um produto de pensamento crítico. Hegel
construiu seu sistema inteiro a partir dessa ideia do desenvolvimento
lógico de uma ciência concreta a partir de um simples abstrato “Urconcept”
(esse é termo é meu, não o de Hegel). Hegel descreveu esse método na
seção intitulada “Cognição” em Ciência da Lógica. Para Marx, o ponto de
partida não era um conceito abstrato, mas uma forma elementar de prática
social, uma Urpraxis. Vamos ver como isso funcionou com a obra da vida de Marx: O Capital.
O Capital de Marx e A Lógica de Hegel
Em seu primeiro rascunho de uma crítica da economia política, Grundrisse,
na passagem “Método da Economia Política”, Marx se comprometeu a
pesquisar o programa modelado na lógica de Hegel, e em 1859 ele havia
decidido trocar de mercadorias como a “Urpraxis” da economia política burguesa, e realizou essa ideia na conclusão do Volume I de O Capital (1996/1867). Antes de traçar esse desenvolvimento em O Capital, vamos traçar a jornada filosófica de Marx até sua apropriação crítica da Lógica de Hegel exibida em O Capital.
Atividade e Conceitos
Nas primeiras palavras que pertencem a
suas visões maduras, Marx critica o materialismo filosófico por aceitar o
ponto de vista da ciência natural: o de um observador contemplando um
objeto existente de forma independente. Os objetos existem, distintos do
pensamento; no entanto, é apenas graças à atividade “prática-crítica”
que o objeto é percebido e reconstruído no pensamento. Marx insistiu que
nem o pensamento abstrato nem a percepção sensorial formam o objeto da
ciência, mas a atividade. Por “atividade” (ou “prática” ou “prática
social”) entende-se não uma manifestação externa de pensamentos
internos, mas um todo do qual o pensamento e o comportamento podem ser
abstraídos. Mas uma forma de prática social pode existir por séculos
antes de alguém formular um conceito adequado dela, e da mesma forma,
conceitos utópicos podem existir sem qualquer base real na vida social.
Assim, Marx substituiu explicitamente os sistemas de prática social,
formações sociais, por Gestalten des Bewußtseins (Formações de consciência) de Hegel, atividades reais e não suas sombras.
No primeiro Prefácio a O Capital
(1867), Marx pergunta por que, mais de 2.000 anos desde que Aristóteles
ficou intrigado com o conceito de valor de troca, foi apenas no século
XIX que o segredo da formação do valor de troca e suas ramificações
foram divulgados. Segundo Hegel, o crescente entendimento de categorias
econômicas como valor de troca foi resultado do trabalho teórico de
economistas políticos que desenvolveram cientificamente o conteúdo dos
conceitos da economia política. A maioria das pessoas entenderia o
progresso das ciências naturais da mesma maneira: como um longo trem de
solução de problemas, cada um baseado nas soluções daqueles que estão
diante deles. Mas isso não se levanta, não é? É idealista. A atividade
humana se desenvolve à sua maneira; gradualmente, ao longo de milênios,
todos os aspectos do conceito de valor de troca foram atualizados como
relações reais, em última análise, na forma de dinheiro e capital. Na
sociedade burguesa moderna, o conceito de valor de troca alcançou seu
desenvolvimento final, e o teórico precisa apenas refletir sobre o que
está diante de seus olhos, através do desenvolvimento da atividade em si
– a ciência se apropria de conceitos que já se ‘desenvolveram’ na vida
prática.
Para entender a ideia de Hegel, os
conceitos devem ser entendidos como formas de atividade em primeiro
lugar, não como produto de teóricos. Os teóricos só podem estudar o que
pode ser encontrado na atividade prática, implícita ou potencialmente.
Se não explicitamente. Portanto, mesmo que Hegel tenha perdido isso de
vista e tomado equivocadamente o progresso social como obra de teóricos,
sua lógica mantém sua validade, desde que os conceitos sejam
interpretados como formas de atividade prática e apenas derivadamente
como formas de pensamento subjetivas ou figuras de lógica categórica.
O Método da Economia Política
Em Grundrisse, Marx explicou a história de qualquer ciência como sendo composta de duas fases, como segue:
Parece ser correto
começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e,
portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população,
que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo.
Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A
população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes
das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra
vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho
assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço
etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o
valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela
população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de
uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada
vez mais simples; do concreto
e então:
representado [chegaria]
a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse
chegado às determinações mais simples.
Daí teria de dar início
à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população,
mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma
rica totalidade de muitas determinações e relações… O concreto é
concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto,
unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento
como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida,
não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o
ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a
representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na
segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por
meio do pensamento (MARX, 2011, p. 76).
Esta passagem descreve a estrutura da
lógica de Hegel. O ponto de partida de uma ciência é a massa de medições
abstraídas do fluxo de relatórios econômicos. Esta fase está
representada na Doutrina do Ser de Hegel, uma fase de observação e
medição que precede a reflexão científica como tal. A jornada começa
quando essas medidas são analisadas, refletidas e elaboradas em padrões e
leis, além de uma descrição teórica dos dados. Esta primeira fase do
desenvolvimento de uma ciência (“A primeira via foi a que tomou
historicamente a Economia em sua gênese” (p.77),) está completa quando
chega à “determinação mais simples”, a entidade singular que exibe as
relações essenciais de todo o processo. Essa primeira fase é realizada
na história da ciência por meio de críticas imanentes aos conceitos
abstraídos do Ser, e é representada por Hegel na Doutrina da Essência. A
segunda fase é reconstruir o todo, agora não como uma concepção
caótica, mas como um todo sistemático, um todo que exibe de forma
desenvolvida as características essenciais com as quais estamos
familiarizados na unidade a partir da qual iniciamos a reconstrução.
Esta segunda fase – dialética sistemática (“manifestamente o método
cientificamente correto”. p. 77) é representada por Hegel na Doutrina do
Conceito. Para Marx, esse Urphänomen não seria um fenômeno ou
um conceito, mas uma interação observável na prática social, um ato
social familiar que podemos entender visceralmente, uma Urpraxis.
No caso da economia política, isso seria um ato de troca de
mercadorias. Em cada etapa da reconstrução, os conceitos logicamente
derivados da Urpraxis são validados por sua existência objetiva
na prática social. A reconstrução concreta resultante (que na Lógica
Hegel representou como ‘Espírito’) difere dos dados com os quais a
análise começou (‘Ser’) porque é um todo sistemático e não uma mera
sucessão de qualidades abstratas. Marx realizou esse plano de trabalho,
sua própria parte na história da economia política, através de muitos
anos de crítica imanente às teorias rivais da economia política, seguida
por uma reconstrução sistemática da sociedade burguesa no Capital.
A Mercadoria
No primeiro Prefácio de O Capital, onde Marx está falando sobre o problema do valor na economia política, ele diz:
Não obstante, o
espírito humano tem procurado elucidá-la em vão há mais de 2 mil anos,
ao mesmo tempo que obteve êxito, ainda que aproximado, na análise de
formas muito mais complexas e plenas de conteúdo. Por quê? Porque é mais
fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula que o compõe. Além
disso, na análise das formas econômicas não podemos nos servir de
microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração [Abstraktionskraft]
deve substituir-se a ambos. Para a sociedade burguesa, porém, a
forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da
mercadoria, constitui a forma econômica celular. (MARX, 1982, p. 112).
O uso de Marx da metáfora da “célula” não pode deixar de nos lembrar o Urphänomen
de Goethe, que a ciência da biologia realizou na célula. O primeiro
capítulo é dedicado a uma exposição da relação mercadoria. Marx deriva
os conceitos de valor nos três primeiros capítulos do Capital,
desdobrando-se da troca de mercadorias, os conceitos de Qualidade,
Quantidade e Medida, paralelamente ao primeiro livro da Lógica de Hegel.
Começando com o conceito abstrato de mercadoria e, a partir daí,
desenvolvendo uma concepção concreta de valor na sociedade burguesa,
Marx seguiu a estrutura que Hegel usou em todos os livros da
Enciclopédia. Em particular, Marx partiu da descoberta de que a relação
mercadoria é a unidade de duas ações independentes representadas por
duas formas de valor: o valor de uso da mercadoria implicada no consumo
do objeto (sua qualidade social) e o valor de troca da mercadoria
implicado na produção do objeto e realizado no mercado (sua quantidade
social). A homologia entre as categorias da Ontologia de Hegel e os
primeiros capítulos do Capital reflete o fato de que o dinheiro vem
realizando o trabalho de reduzir todos os produtos do trabalho humano a
uma única medida, realizando o trabalho da lógica, mas como um processo
real, ao invés de um exercício intelectual. Dada a natureza social da
lógica categórica de Hegel, é de se esperar que as categorias da lógica
tenham uma existência real nos processos sociais correspondentes. No
entanto, não aceito a sugestão de Chris Arthur (2015), de que essa
homologia é resultado do estudo de Hegel dos economistas políticos
britânicos. Foi o filósofo soviético Ilyenkov quem destacou esse
processo de abstração objetiva em seus trabalhos sobre O Capital
(1982/1960) e o ideal (1977), que é a base dessa homologia. A própria
crítica de Hegel à economia política acabou sendo bastante tediosa.
Unidade e Célula Germinativa
Pode parecer estranho começar com troca
de mercadorias. Embora, como Marx diz no começo do Capital: “A riqueza
daquelas sociedades nas quais o modo de produção capitalista prevalece,
apresenta-se como “uma imensa acumulação de mercadorias”, a troca de
mercadorias é uma ocorrência rara na sociedade burguesa moderna;
geralmente compramos e vendemos mercadorias. A terceira seção do
capítulo 1 mostra a gênese histórica da troca desde sua primeira
aparição nas trocas entre os povos tribais, levando ao uso do ouro como
um equivalente universal e, posteriormente, à emissão de papel-moeda
pelos Estados. Dessa maneira, ele mostrou que o dinheiro é
essencialmente uma mercadoria e que o trabalho assalariado é uma
mercadoria comprada e vendida no mercado de trabalho e usada pelos
compradores capitalistas.
Isso mostra um dos aspectos da Urpraxis que chamei a atenção acima. A Urpraxis surge de problemas em um nível mais baixo de desenvolvimento. Mas com a formação da Gestalt auto-reprodutiva que ela gera, a própria Urpraxis passa por uma série de transformações.
A Praxis é a “forma social mais simples”
Em suas notas sobre Adolph Wagner, Marx diz: “De prime abord [desde
o princípio], não parto de ‘conceitos’, portanto, tampouco do ‘conceito
de valor’ parto da forma social mais simples em que o produto do
trabalho se apresenta na sociedade atual, e essa é a ‘mercadoria’”
(MARX, 2017, p. 265).
É o mesmo que quando Hegel toma a
propriedade privada como a forma social mais simples de Liberdade e
torna o ponto de partida em Filosofia do Direito. Assim como a
propriedade privada leva ao Estado, a troca de mercadorias leva ao
capital, mas em ambos os casos o livro não começa com um conceito de seu
objeto, mas de sua substância subjacente. A mercadoria é uma forma de
valor, mas ‘valor’ é intangível, nem ‘geométrico, físico, químico ou
qualquer outra propriedade natural das mercadorias – é uma qualidade
supra-sensível de uma mercadoria. O valor é, de fato, uma relação social
mediada por artefatos que, portanto, só pode ser apreendida
conceitualmente. No entanto, a mercadoria é uma forma de valor que,
graças à experiência cotidiana, pode ser apreendida visceralmente. Isso
significa que a crítica do conceito de mercadoria trabalha sobre
relações que podem ser apreendidas visceralmente por leitores e
escritores. Ao começar com a (conceito de) mercadoria, Marx mobiliza a
compreensão visceral dos produtos pelos leitores e como ele nos leva a
cada relação sucessiva. Enquanto essa relação existir na prática social,
a intuição do escritor não só é validada pela existência dessa relação,
mas também permite que o leitor compreenda e verifique com segurança a
exposição lógica. A decisão de Marx de começar não com o “valor”, mas
com a “mercadoria” ilustra a dívida de Marx com o “empirismo delicado”
de Goethe, e é crucial para sua implementação práxica da lógica de
Hegel. Não estou ciente de nenhuma evidência de que Marx soubesse sobre
os Urphänomen de Goethe, e muito menos de se apropriar dela.
Marx trabalhou em uma certa conjuntura cultural e histórica e se colocou
em uma posição social específica no desenrolar da crise social. Se
algum filósofo é a fonte próxima da virada filosófica de Marx para a
práxis, então seria o seguidor de Gottlob Fichte, Moses Hess
(1964/1843), com quem Marx estava trabalhando na época em que escreveu Teses sobre Feuerbach.
Além disso, muito do que Marx tinha a dizer sobre Hegel está longe de
ser complementar. A relação triádica entre esses três pensadores
holísticos, Goethe, Hegel e Marx, é real, apesar de Marx nunca ter
decidido fazer nenhum tipo de tríade. No século XIX, todos os alemães,
incluindo Hegel e Marx, foram criados à longa sombra de Goethe, cujo
impacto na cultura alemã não pode ser exagerado. No entanto, as ideias
científicas naturais de Goethe eram provavelmente as menos conhecidas e
foram amplamente desacreditadas em meados do século. Mas o impacto de
Goethe (que Marx listou ao lado de Dante e Shakespeare como seu poeta
favorito) é inegável. Goethe e Hegel eram unilaterais em seu método; o
desenvolvimento posterior da ciência e da cultura tornou possível que
Marx transcendesse o empirismo de Goethe e o idealismo de Hegel. Além
disso, ao fazer dos Urphänomen de sua ciência um ato real de
prática social, não uma prática social imaginada, mas cujas normas já
haviam sido produzidas pelo desenvolvimento da sociedade burguesa e
poderiam ser objeto de observação e intervenção, Marx virou a versão de
Hegel dos Urphänomen de dentro para fora, recuperando um elemento importante dos Urphänomen de Goethe.
Na visão de Marx, a sociedade burguesa
era essencialmente um mercado. Mas Marx não acreditava que ele pudesse
explicar tudo sobre o mundo moderno com base na relação de mercadorias. O
Estado e a vida familiar não eram (ainda) locais de mercado. Marx foi
atraído para a atividade política por sua indignação com a censura da
imprensa, a desigualdade, o privilégio aristocrático e o lento progresso
da reforma liberal na Alemanha, mas chegou a ver que não era a nobreza
ou o Estado que estava na raiz desses problemas sociais, mas o mercado.
Ao tomar uma troca de mercadorias como a unidade de análise (Vygotsky
1987/1934), ele escolheu uma unidade que já continha o que considerava
essencial para a sociedade burguesa. Assim, o todo complexo que Marx se
propôs a entender deveria ser tomado como apenas milhares e milhares de
trocas de mercadorias. O capital forneceu uma análise concreta de como a
produção de mercadorias leva à exploração do trabalho assalariado de um
lado e à acumulação de mais-valia do outro – mas ele não pretendia
fornecer uma análise do Estado e da história mundial. Hegel, por outro
lado, adotou a propriedade privada (em vez da troca de mercadorias) como
célula germinativa da Liberdade, como o ‘Urconcept‘, e alegou
desdobrar da propriedade privada a totalidade do Estado e da história
mundial. Os objetivos de Marx eram justamente mais modestos.
Mercadoria e Capital
O Capital é um livro sobre capital, não
simples produção de mercadorias. Na parte I do livro, os três primeiros
capítulos, Marx analisa a circulação de mercadorias e dinheiro, mas a
partir dessa análise ele demonstra o surgimento de uma nova relação, a
do capital, um novo tipo de mercadoria. M ‒ D ‒ M, (troca de mercadorias
mediada por dinheiro) é transformada em D ‒ M ‒ D ‘, produção de
mercadorias que mediam a acumulação de dinheiro. Assim, Marx deriva uma
nova unidade de análise “molar” [5], uma segunda Urpraxis – a
empresa capitalista ou unidade de capital, e marca o surgimento das
formas modernas de capital. A partir do capítulo 4, Marx desdobra a
partir deste segundo Urpraxis uma exposição dialética do movimento do capital. Esse tema na ciência holística, onde existe uma unidade micro ou Urphänomen
(célula, qualidade, mercadoria,…) e uma unidade molar (organismo,
conceito, capital,…) foi identificada pela primeira vez pelo teórico
soviético Leontyev. Na verdade, é a unidade molar que é o assunto do
estudo, a chave para a compreensão da qual está a micro unidade. Que
homologia existe entre a Parte II e os sucessivos capítulos de O Capital
e o Conceito de Lógica de Hegel? Muito pouca. A homologia muito geral
que pode ser encontrada surge da homologia entre os assuntos
(acumulação, competição). Pode-se argumentar que a formação de uma taxa
uniforme de lucro em uma economia, apesar de uma composição orgânica de
capital que varia de empresa para empresa, tem uma homologia com a
formação da Ideia a partir de conceitos abstratos na Ciência da Lógica
de Hegel. Mas, em qualquer caso, a homologia surge de paralelos no
próprio assunto, baseados no dinheiro como uma abstração real do
trabalho humano, não de Marx emulando Hegel. A estrutura do Capital não é
um espelho de nenhum trabalho de Hegel.
Os conceitos de economia política se
desenrolam de acordo com sua própria lógica, e seria um erro tentar
combinar conceito por conceito de O Capital com qualquer um dos livros
de Hegel.
Em resumo, existem duas fases na formação
de uma ciência (os dois volumes de A Ciência da Lógica de Hegel, os
dois processos descritos no “Método da economia política” de Marx);
primeiro, um período prolongado que leva ao ponto em que um teórico tem o
ponto de partida abstrato (Urphänomen) para a ciência
propriamente dita, e depois a concretização desse conceito abstrato no
desenvolvimento da ciência. Igualmente, existem duas fases na formação
de uma formação social como o capitalismo: primeiro, o prolongado
período da história que antecede o surgimento de sua célula germinativa,
seguido pela concretização e universalização desse conceito, implicando
a transformação de todas as outras relações na formação social.
Hegel não descobriu o Urphänomen
– ele o apropriou do poeta naturalista John Wolfgang von Goethe e o
transformou de dentro para fora. Isso forneceu o começo abstrato de sua
filosofia, e cada uma das ciências que ele trabalhou teve como ponto de
partida um conceito abstrato apropriado da ciência anterior. Essa foi a
mesma ideia que o comunista Marx se apropriou do filósofo idealista,
Hegel, e fez o ponto de partida para sua crítica ao capital.
Síntese
Para Marx e para Hegel, um conceito é uma
forma (normativa) de prática social, mas enquanto Hegel sofria da
ilusão de que um teórico poderia desdobrar de um ideal conceitual tudo o
que estava implícito nele, Marx sustentou consistentemente a visão de
que o desenvolvimento lógico tinha que seguir o desenvolvimento da
prática social em todas as etapas, tornando inteligível o que era dado
na prática social.
Observe que Marx adotou a mesma abordagem
em seu estudo do movimento dos trabalhadores em sua luta pelo poder do
Estado, alterando o Manifesto do Partido Comunista à luz das ações do
movimento dos trabalhadores na Comuna de Paris. Ele nunca construiu
castelos socialistas no ar. Mas, escrevendo no meio do século 19, Marx
havia material para trabalhar, material que não estava disponível para
Hegel no começo do século XIX.
Notas:
[1] Terceira seção.
[2] Capítulo “As assembleias de ordem”.
[3] Traduzido do inglês “building castles in the sky”, algo como criar sonhos, esperanças.
[4]Aqui, originalmente, o professor atribuiu a citação ao Grundrisse equivocadamente, visto que lhe informei sobre o erro o mesmo já foi corrigido no texto original.
[5] Unidade molar vem da química, onde
significa que a quantidade de uma substância que contém tantas moléculas
como 12 g de carbono-12, isto é, 6 × 1023 moléculas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO TRADUTOR
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Princípios da filosofia do direito. Tradução Orlando Vitorino. – São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Ciência
da Lógica: 1. A doutrina do ser. Tradução Christian G. Iber, Marloren L.
Miranda e Federico Orsini. – Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2016.
MARX, KARL. Obras Escolhidas de K. Marx/F. Engels – Tomo I. Tradução: Álvaro Pina
– Lisboa: Editorial Avante , 1982.
– Lisboa: Editorial Avante , 1982.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do
direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus;
[supervisão e notas Marcelo Backes] – [2. ed. revista] – São Paulo:
Boitempo, 2010.
MARX, Karl. O Capital – Livro 1: Crítica
da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital.
Tradução de Rubens Enderle – São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse. Tradução: Mario
Duayer (supervisão editorial e apresentação), Nélio Schneider, Alice
Helga Werner e Rudiger Hoffman.) – São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider – São Paulo: Boitempo, 2011.
in LavraPalavra
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