Por António Guerreiro
In, Público
As cidades inviáveis
Enquanto
a especulação turística não retoma o seu curso “normal”, fundado num
mercado necessariamente transnacional, experimentemos vaguear pela
Lisboa antiga e vê-la como nunca antes a tínhamos visto: exibindo ao
mesmo tempo o décor resultante das operações velozes de restauração e
reabilitação ocorridas nos últimos anos (“La forme d’une ville change plus vite, hélas!, que le coeur d’um mortel”:
quantas vezes nos sentimos tentados a citar Baudelaire?) e os vestígios
das camadas sucessivas de velhice, ruína e sujidade, mostrando que toda
a cidade histórica é um palimpsesto.
Na
verdade, o novo décor — podemos agora verificar — não apagou
completamente das paredes, dos recantos e das pedras, os vestígios
antigos e sujos. A cidade conformada ao “estilo clean” (que na
verdade é apenas uma imagem parecida com uma cidade), configurando-se
como um ecrã de representação, hiperpovoada de estabelecimentos de food & beverage,
surge agora, esvaziada de turistas, como um espectáculo decadente. Esse
vazio torna muito mais notável um outro que já conhecíamos bem, o dos
habitantes pobres e com a patine do tempo e do lugar incrustada
no corpo, mas que o décor nos induzia a ignorar, a não ser em momentos
de consciência histórica e de pensamento que sabe identificar muito bem o
que significa a neutralização do espaço urbano, na sua dimensão pública
e política.
Vaguear
e redescobrir esta cidade de que tínhamos sido expropriados pode
proporcionar momentos jubilantes de uma fruição que não é apenas
estética (pelo contrário, até nos faz desprezar toda a estetização). De
repente, a cidade já não é um espectáculo indiscreto, exibicionista,
quase obsceno, mas projecta-se sobre um fundo que não é imediatamente
visível: o tempo, a história, a memória. Em suma; tudo aquilo que foi
branqueado como se branqueia o dinheiro sujo. Mas este prazer
reconquistado, sabemos muito bem, é egoísta e cínico: eleva-se sobre uma
tragédia inaudita que se abateu sobre muita gente: a massa de
empregados precários, de agentes de uma economia informal, de pequenos
proprietários, de promotores privados de alojamento local que muitas
vezes passaram a viver fora da cidade ou em casa de família para
retirarem rendimento vital das suas próprias casas. É bem conhecida esta
lei implacável: quanto mais a cidade se enche de turistas, mais se
esvazia de habitantes.
Lisboa não é, evidentemente, um caso exemplar deste choque que, de um dia para o outro, inverteu o sentido do desastre: do overtourism
passou-se ao problema do não-turismo. Como pode uma cidade como Roma
prescindir dos 40 milhões de turistas que todos os anos a visitam? E
Veneza, que tinha começado a aplicar medidas que restringiam a entrada
de visitantes como medida última de salvação, anseia agora pela vinda
dos “bárbaros”.
Quem
acha que um dos efeitos da pandemia será a quebra do circuito perverso
que liga o turismo à morte da cidade está certamente enganado: todos os
esforços se vão concentrar para que tudo volte à antiga normalidade,
ninguém sabe como é possível uma vida urbana “normal”, como é possível
manter a cidade, sem o regresso ao estado em que vivíamos. Sem os fluxos
do turismo internacional não há o carburante que alimenta os processos
de valor — no sentido de enriquecimento capitalista — da cidade. Ou
então temos de imaginar uma outra forma de vida, outro regime político,
outra economia. Mas isso só pode acontecer sob a forma de um desastre
colossal que torne impossível qualquer processo de restauração, de
“recuperação”. Enquanto esse processo depender de dinheiro, este nunca
irá faltar. Hoje é uma bazuca, amanhã será uma bomba atómica, se for
preciso.
Os franceses têm duas palavras que nós traduzimos com uma única, “cidade”: as palavras ville e cité. Rousseau, no seu “contrato social”, escreveu: “Muitos tomam uma ville por uma cité e um burguês por um cidadão. Não sabem que as casas fazem a ville, mas os cidadãos fazem a cité”.
Como traduzir esta frase sem deixar as duas palavras nucleares como
estão no original? Tal pergunta equivale a esta: como manter hoje um
pensamento urbano que seja intrinsecamente político?
Agora, que se anuncia a difusão do teletrabalho, as cidades só vão servir para a flânerie turística. O capitalismo as inventou, o capitalismo as extingue.
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