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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Uma magnífica crónica de António Guerreiro

Por António Guerreiro
In, Público
As cidades inviáveis  
Enquanto a especulação turística não retoma o seu curso “normal”, fundado num mercado necessariamente transnacional, experimentemos vaguear pela Lisboa antiga e vê-la como nunca antes a tínhamos visto: exibindo ao mesmo tempo o décor resultante das operações velozes de restauração e reabilitação ocorridas nos últimos anos (“La forme d’une ville change plus vite, hélas!, que le coeur d’um mortel”: quantas vezes nos sentimos tentados a citar Baudelaire?) e os vestígios das camadas sucessivas de velhice, ruína e sujidade, mostrando que toda a cidade histórica é um palimpsesto.
Na verdade, o novo décor — podemos agora verificar — não apagou completamente das paredes, dos recantos e das pedras, os vestígios antigos e sujos. A cidade conformada ao “estilo clean” (que na verdade é apenas uma imagem parecida com uma cidade), configurando-se como um ecrã de representação, hiperpovoada de estabelecimentos de food & beverage, surge agora, esvaziada de turistas, como um espectáculo decadente. Esse vazio torna muito mais notável um outro que já conhecíamos bem, o dos habitantes pobres e com a patine do tempo e do lugar incrustada no corpo, mas que o décor nos induzia a ignorar, a não ser em momentos de consciência histórica e de pensamento que sabe identificar muito bem o que significa a neutralização do espaço urbano, na sua dimensão pública e política.
Vaguear e redescobrir esta cidade de que tínhamos sido expropriados pode proporcionar momentos jubilantes de uma fruição que não é apenas estética (pelo contrário, até nos faz desprezar toda a estetização). De repente, a cidade já não é um espectáculo indiscreto, exibicionista, quase obsceno, mas projecta-se sobre um fundo que não é imediatamente visível: o tempo, a história, a memória. Em suma; tudo aquilo que foi branqueado como se branqueia o dinheiro sujo. Mas este prazer reconquistado, sabemos muito bem, é egoísta e cínico: eleva-se sobre uma tragédia inaudita que se abateu sobre muita gente: a massa de empregados precários, de agentes de uma economia informal, de pequenos proprietários, de promotores privados de alojamento local que muitas vezes passaram a viver fora da cidade ou em casa de família para retirarem rendimento vital das suas próprias casas. É bem conhecida esta lei implacável: quanto mais a cidade se enche de turistas, mais se esvazia de habitantes.
Lisboa não é, evidentemente, um caso exemplar deste choque que, de um dia para o outro, inverteu o sentido do desastre: do overtourism passou-se ao problema do não-turismo. Como pode uma cidade como Roma prescindir dos 40 milhões de turistas que todos os anos a visitam? E Veneza, que tinha começado a aplicar medidas que restringiam a entrada de visitantes como medida última de salvação, anseia agora pela vinda dos “bárbaros”.
Quem acha que um dos efeitos da pandemia será a quebra do circuito perverso que liga o turismo à morte da cidade está certamente enganado: todos os esforços se vão concentrar para que tudo volte à antiga normalidade, ninguém sabe como é possível uma vida urbana “normal”, como é possível manter a cidade, sem o regresso ao estado em que vivíamos. Sem os fluxos do turismo internacional não há o carburante que alimenta os processos de valor — no sentido de enriquecimento capitalista — da cidade. Ou então temos de imaginar uma outra forma de vida, outro regime político, outra economia. Mas isso só pode acontecer sob a forma de um desastre colossal que torne impossível qualquer processo de restauração, de “recuperação”. Enquanto esse processo depender de dinheiro, este nunca irá faltar. Hoje é uma bazuca, amanhã será uma bomba atómica, se for preciso.
Os franceses têm duas palavras que nós traduzimos com uma única, “cidade”: as palavras ville e cité. Rousseau, no seu “contrato social”, escreveu: “Muitos tomam uma ville por uma cité e um burguês por um cidadão. Não sabem que as casas fazem a ville, mas os cidadãos fazem a cité”. Como traduzir esta frase sem deixar as duas palavras nucleares como estão no original? Tal pergunta equivale a esta: como manter hoje um pensamento urbano que seja intrinsecamente político?
Agora, que se anuncia a difusão do teletrabalho, as cidades só vão servir para a flânerie turística. O capitalismo as inventou, o capitalismo as extingue.


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