Existe Mercado Socialista?
Por Beto Silva
Portanto,
a possibilidade de comprar e explorar a mercadoria força de trabalho é a
essência do capitalismo. Foi a transformação do trabalho em mercadoria
que potencializou a circulação mercantil dos demais produtos. O
predomínio da circulação de mercadorias em geral é o desdobramento da
transformação do próprio trabalho em mercadoria. É a existência do
mercado de trabalho – e não do mercado em geral – que caracteriza e
fundamenta o capitalismo.
Introdução
O objetivo
desse artigo é discutir o conceito de “mercado”. Uma definição precisa
desse conceito é importante tanto para a Economia Política latu sensu
como para o debate político contemporâneo, na medida em que o mercado
socialista é uma peça central na análise (e no julgamento) dos países
liderados por Partidos Comunistas, notadamente a China, mas também Cuba e
Vietnã. Ou seja, ao discutir a possibilidade do mercado numa sociedade
socialista, estamos também discutindo o próprio critério para avaliar as experiências socialistas.
Com base nas seções I e II de O Capital
(capítulos 01 a 04), argumenta-se que o mercado não é uma exclusividade
do sistema capitalista. Tenta-se mostrar que o que define o capitalismo
não é a existência de um mercado em geral, mas sim a existência de um
mercado muito particular, a saber, o mercado de trabalho. Em seguida,
baseado o livro Problemas Econômicos do Socialismo na URSS,
de Josef Stálin, é feita uma análise de como os princípios elaborados
Marx sobre o mercado e a circulação mercantil foram aplicados na União
Soviética. Destaca-se a possibilidade e os condicionantes em que a
circulação mercantil é útil ao socialismo. Finalmente, seguindo o artigo
do economista marxista Michal Kalecki, “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”,
é feita uma discussão da oportunidade de utilizar a bandeira da
abolição do desemprego como forma de evidenciar os limites das economias
capitalistas.
O Mercado como uma Relação
Historicamente,
a especialização decorrente da divisão social do trabalho impôs a
necessidade de trocas entre os produtores. Quanto mais os produtores se
especializavam na produção de bens específicos mais eles precisavam
negociar com outros produtores para adquirir os demais bens. “A divisão
social do trabalho torna tão unilateral seu trabalho quanto
multilaterais suas necessidades” (Marx, O Capital, cap. 3). Nessas
trocas, produtos diferentes, vale dizer, valores de uso diferentes, são comparados entre si: x unidades do produto A são trocadas por y unidades do produto B. Dessa forma, os produtos passam a ter um valor de troca,
isto é, têm seu valor expresso em termos de outros produtos e, mais
especificamente, têm seu valor expresso na forma geral e abstrata, o
dinheiro. É por meio desse processo que os produtos são transformados em
mercadoria. Portanto, o mercado
é a relação entre produtores através da qual são conhecidos os valores
de troca de seus respectivos produtos que se tornam, assim, mercadorias.
“Para
produzir mercadorias, ele [o produtor] não precisa apenas produzir
valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social […] Para
se tornar mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem
vai servir como valor de uso por meio da troca.” (O Capital , cap. 01)
“A
forma da troca direta de produtos é: x objeto de uso A = y objeto de
uso B. As coisas A e B não são aqui mercadorias antes da troca, mas
tornam-se tais por meio da mesma.” (O Capital, cap. 02)
Cabe ressaltar a ideia de mercado como uma relação e não como um local
geográfico, como geralmente é entendido. Sempre que uma mercadoria é
comprada ou vendida, tem-se um mercado, independentemente do local
físico específico em que essa transação ocorreu.
É importante destacar também que, para essa definição, não foi preciso evocar o conceito de capital. É
curioso notar que assim também o é na obra de Marx. Enquanto as
definições de valor, valor de troca, mercadoria, etc, são tratados nos
capítulos um a três, a definição de capital só é introduzida no capítulo
quatro. Isso acontece porque a existência de mercadorias – e do mercado
– é uma condição necessária prévia para
o surgimento do capital e do capitalismo. De fato, Marx é literal sobre
a precedência histórica da produção de mercadorias em relação ao
capital:
“Produção
de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias – o comércio –
formam os pressupostos históricos a partir dos quais o capital emerge.”
(Marx, O Capital, cap. 4)
Uma mercadoria sui generis
Assim, é
menos controversa a ideia de existência de um mercado pré-capitalista.
Ou seja, antes de existir o capitalismo, já existia mercado e
mercadorias (embora a produção visando a venda mercantil não fosse
predominante). O salto qualitativo para o capitalismo ocorre quando
passa a existir uma mercadoria muito específica. Essa mercadoria é a
força de trabalho. Só quando a força de trabalho passa a ser comprada e
vendida como uma mercadoria é que estão dadas as condições históricas e
materiais para o surgimento do capital e do capitalismo.
Por
condições históricas, entende-se o momento da evolução das relações
sociais em que, após o sistema escravagista e do servilismo feudal,
passa a existir homens e mulheres “livres”. As aspas não necessárias
porque essa liberdade de homens e mulheres, os trabalhadores, não se
refere necessariamente a uma melhora em suas condições de vida e
existência mas à possibilidade legal/social de vender sua força de
trabalho, não possuindo eles outros meios de subsistência que não seja a
venda desta força de trabalho.
O papel crucial do surgimento da força de trabalho como mercadoria é porque ela é uma mercadoria sui generis.
Por um lado, ela é trocada, como toda mercadoria, por valores
equivalentes. Ou seja, o trabalhador assalariado livre troca sua força
de trabalho por um salário que deveria satisfazer suas necessidades e de
sua família.
Por outro
lado, a força de trabalho é uma mercadoria que cria valor ao ser
utilizada. Ao contrário das demais mercadorias que se desgastam com o
uso, a mercadoria força de trabalho, na medida em que é usada em um
processo produtivo, cria valor. Dessa forma, a mercadoria produzida terá
um valor maior do que o que foi despendido pelo capitalista com a
compra de meios de produção e com a própria força de trabalho. Esse
acréscimo de valor, a mais-valia, é inteiramente apropriado pelo
capitalista. Esse é o momento em que o valor se transforma em capital.
“O
valor originalmente adiantado não se limita, assim, a conserva-se na
circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa
grandeza um mais valor ou se valoriza. E esse movimento o transforma em
capital.”
[…]
“Para
poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de
dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da
esfera da circulação, uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse
a característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo
fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de
valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria
específica: a capacidade de trabalho, ou força de trabalho.” (Marx, O Capital, cap. 4)
Portanto, a
possibilidade de comprar e explorar a mercadoria força de trabalho é a
essência do capitalismo. Foi a transformação do trabalho em mercadoria
que potencializou a circulação mercantil dos demais produtos. O
predomínio da circulação de mercadorias em geral é o desdobramento da
transformação do próprio trabalho em mercadoria. É a existência do
mercado de trabalho – e não do mercado em geral – que caracteriza e
fundamenta o capitalismo.
A Circulação Mercantil no Socialismo
No começo
dos anos 1950, o Partido Comunista da URSS decidiu elaborar um Manual de
Economia Política para orientar os novos quadros que chegavam ao
partido, muitos dos quais nascidos após a Revolução de 1917. Depois de
receber as primeiras versões do Manual, Stalin redigiu observações,
críticas e sugestões de melhorias. Esses textos foram reunidos no livro
“Problemas Econômicos do Socialismo na URSS”.
Já no
início da obra, discutindo a questão dos kolkhozes, o líder soviético
faz a seguinte pergunta: “Deveria o proletariado tomar o poder e, logo
depois, destruir a produção mercantil?”. Essa pergunta é respondida
negativamente, porque tal política seria inaceitável para os camponeses
e, sem o apoio do campo, a revolução seria derrotada. Em seguida,
retoma-se a argumentação teórica desenvolvida por Marx:
“Não se pode identificar a produção mercantil com a produção capitalista … a produção mercantil leva ao capitalismo apenas se existir propriedade privada sobre os meios de produção, se a
força de trabalho aparecer no mercado como uma mercadoria que pode ser
comprada e explorada pelo capitalista no processo de produção, se consequentemente
viger no país o sistema de exploração dos operários assalariados pelos
capitalistas … sem isso não há produção capitalista … a produção
mercantil é mais antiga que a produção capitalista … por que a produção
mercantil não pode servir também, por certo período, à nossa sociedade
socialista sem leva-la ao capitalismo?” (Stalin, Problemas… p. 12 e 13)
“Não
será a lei do valor a lei econômica fundamental do capitalismo? Não. A
lei do valor é, antes de tudo uma lei da produção mercantil. Existiu
antes do capitalismo e continua existindo, assim como a produção
mercantil, depois da derrocada do capitalismo, como ocorre, por exemplo,
em nosso país, embora com uma esfera de ação limitada.” (Stálin,
Problemas… p. 34)
Como foi
mostrado na seção anterior, a caracterização do capitalismo não se dá
pela existência de mercadorias em geral, mas por uma mercadoria
especial, a força de trabalho. Quanto à produção e circulação das demais
mercadorias, a experiência soviética indica que ela pode ser útil à
construção do socialismo desde que seja transitória e não desempenhe um
papel regulador, especialmente na produção e circulação dos meios de
produção. Este papel regulador, por sua vez, é uma atribuição do Poder
Soviético, garantida pela
“existência
da propriedade social sobre os meios de produção, pela ação da lei do
desenvolvimento harmonioso da economia e, por conseguinte, […] pelos
nossos planos anuais e quinquenais, que são o reflexo aproximado das
exigências dessa lei.” (Stálin, Problemas…, p. 21)
Assim,
Stálin critica o desvio “à esquerda” que seria propor a eliminação
imediata da circulação mercantil. Ao mesmo tempo, fecha as portas para o
desvio direitista enfatizando que o papel do mercado é transitório,
limitado e subordinado.
Portanto,
não apenas existe mercado no socialismo como ele pode ser útil nas
primeiras etapas da revolução. Entretanto, esse mercado é
qualitativamente diferente do mercado capitalista porque tem uma função
subordinada ao planejamento econômico e não se estende à força de
trabalho.
O Desemprego é a prova da inviabilidade do capitalismo
A
compreensão de que o mercado de trabalho é o elemento fundador e
definidor do capitalismo tem implicações práticas não apenas para os
países que já atingiram o socialismo, mas também para os países sob o
regime capitalista.
O
desemprego é o desdobramento necessário da existência do mercado de
trabalho. Portanto, a luta contra o desemprego vai ao encontro de uma
das principais reivindicações imediatas dos trabalhadores ao mesmo tempo
que evidencia os limites do capitalismo em atendê-la. A luta contra o
desemprego une, assim, a luta econômica cotidiana com a luta política
geral.
Essa
perspectiva é apresentada pelo economista polonês Michal Kalecki em seu
artigo “Aspectos Econômicos do Pleno Emprego”. Nele, Kalecki argumenta
que a permanência do desemprego não se dá por causas estritamente
econômicas, já que o correto manejo da política econômica pode garantir
empregos para todos os trabalhadores. No entanto, como vimos, políticas
que atuem sobre o mercado de trabalho abalam o principal alicerce do
regime capitalista. Essas políticas serão, portanto, duramente repelidas
pelos capitalistas.
“De
fato, sob um regime de pleno emprego permanente, as demissões perderiam
seu papel como medida disciplinar. A posição social do chefe seria
minada e a autoconfiança e a consciência de classe dos trabalhadores
aumentariam. Greves por aumentos de salário e melhorias nas condições de
trabalho criariam tensão política. É verdade que os lucros seriam
maiores sob um regime de pleno emprego […] mas ‘disciplina nas fábricas’
e ‘estabilidade política’ são mais apreciadas do que os lucros pelos
líderes empresariais. Seu instinto de classe diz-lhes que o pleno
emprego duradouro não é saudável do seu ponto de vista, e que o
desemprego é parte integrante do sistema capitalista “normal”. (Kalecki,
Aspectos…)
Dessa
forma, uma política de garantia de emprego expõe o antagonismo de
interesses entre os trabalhadores e a burguesia. Enfraquece a hegemonia
capitalista que se vê impedida de apresentar seus interesses como se
fossem interesses de toda a sociedade. Livre da ameaça do desemprego, os
trabalhadores teriam melhores condições materiais e morais para pensar
além de sua luta cotidiana pela subsistência. Olhariam para o futuro,
que não seria um horizonte distante e inatingível, mas sim uma
possibilidade real, cuja abolição do mercado de trabalho é uma base
palpável.
“Se
o capitalismo puder se ajustar ao pleno emprego, terá incorporado uma
reforma fundamental. Caso contrário, ele se mostrará como um sistema
ultrapassado que deve ser superado.” (Kalecki, Aspectos…)
Conclusão – No Socialismo não há desemprego
Embora o
capitalismo se apresente como uma “imensa coleção de mercadorias”, não é
a produção mercantil em geral que o define. Para a existência do
capital é necessária uma mercadoria específica, força de trabalho.
Existia mercado e mercadorias antes do capitalismo e haverá um mercado
socialista. Esse mercado socialista, transitório e controlado, pode,
inclusive, ser útil para a consolidação do socialismo. A compreensão
dessa questão é importante para evitar idealismos tanto na avaliação das
experiências socialistas atuais como para orientar o programa econômico
a ser apresentado pelos comunistas na situação da crise atual.
in LavraPalavra (com a devida vénia)
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