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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Uma boa exposição. Simples, clara, oportuníssima.

Existe Mercado Socialista?

Por Beto Silva
Portanto, a possibilidade de comprar e explorar a mercadoria força de trabalho é a essência do capitalismo. Foi a transformação do trabalho em mercadoria que potencializou a circulação mercantil dos demais produtos. O predomínio da circulação de mercadorias em geral é o desdobramento da transformação do próprio trabalho em mercadoria.  É a existência do mercado de trabalho – e não do mercado em geral – que caracteriza e fundamenta o capitalismo.

Introdução
O objetivo desse artigo é discutir o conceito de “mercado”. Uma definição precisa desse conceito é importante tanto para a Economia Política latu sensu como para o debate político contemporâneo, na medida em que o mercado socialista é uma peça central na análise (e no julgamento) dos países liderados por Partidos Comunistas, notadamente a China, mas também Cuba e Vietnã. Ou seja, ao discutir a possibilidade do mercado numa sociedade socialista, estamos também discutindo o próprio critério para avaliar as experiências socialistas. 
Com base nas seções I e II de O Capital (capítulos 01 a 04), argumenta-se que o mercado não é uma exclusividade do sistema capitalista. Tenta-se mostrar que o que define o capitalismo não é a existência de um mercado em geral, mas sim a existência de um mercado muito particular, a saber, o mercado de trabalho. Em seguida, baseado o livro Problemas Econômicos do Socialismo na URSS, de Josef Stálin, é feita uma análise de como os princípios elaborados Marx sobre o mercado e a circulação mercantil foram aplicados na União Soviética. Destaca-se a possibilidade e os condicionantes em que a circulação mercantil é útil ao socialismo. Finalmente, seguindo o artigo do economista marxista Michal Kalecki, “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”, é feita uma discussão da oportunidade de utilizar a bandeira da abolição do desemprego como forma de evidenciar os limites das economias capitalistas.
O Mercado como uma Relação
Historicamente, a especialização decorrente da divisão social do trabalho impôs a necessidade de trocas entre os produtores. Quanto mais os produtores se especializavam na produção de bens específicos mais eles precisavam negociar com outros produtores para adquirir os demais bens. “A divisão social do trabalho torna tão unilateral seu trabalho quanto multilaterais suas necessidades” (Marx, O Capital, cap. 3). Nessas trocas, produtos diferentes, vale dizer, valores de uso diferentes, são comparados entre si: x unidades do produto A são trocadas por y unidades do produto B. Dessa forma, os produtos passam a ter um valor de troca, isto é, têm seu valor expresso em termos de outros produtos e, mais especificamente, têm seu valor expresso na forma geral e abstrata, o dinheiro. É por meio desse processo que os produtos são transformados em mercadoria. Portanto, o mercado é a relação entre produtores através da qual são conhecidos os valores de troca de seus respectivos produtos que se tornam, assim, mercadorias.
“Para produzir mercadorias, ele [o produtor] não precisa apenas produzir valor de uso, mas valor de uso para outros, valor de uso social […] Para se tornar mercadoria, é preciso que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca.” (O Capital , cap. 01)
“A forma da troca direta de produtos é: x objeto de uso A = y objeto de uso B. As coisas A e B não são aqui mercadorias antes da troca, mas tornam-se tais por meio da mesma.” (O Capital, cap. 02)
Cabe ressaltar a ideia de mercado como uma relação e não como um local geográfico, como geralmente é entendido. Sempre que uma mercadoria é comprada ou vendida, tem-se um mercado, independentemente do local físico específico em que essa transação ocorreu.
É importante destacar também que, para essa definição, não foi preciso evocar o conceito de capital. É curioso notar que assim também o é na obra de Marx. Enquanto as definições de valor, valor de troca, mercadoria, etc, são tratados nos capítulos um a três, a definição de capital só é introduzida no capítulo quatro. Isso acontece porque a existência de mercadorias – e do mercado – é uma condição necessária prévia para o surgimento do capital e do capitalismo. De fato, Marx é literal sobre a precedência histórica da produção de mercadorias em relação ao capital:
“Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias – o comércio – formam os pressupostos históricos a partir dos quais o capital emerge.” (Marx, O Capital, cap. 4)
Uma mercadoria sui generis
Assim, é menos controversa a ideia de existência de um mercado pré-capitalista. Ou seja, antes de existir o capitalismo, já existia mercado e mercadorias (embora a produção visando a venda mercantil não fosse predominante). O salto qualitativo para o capitalismo ocorre quando passa a existir uma mercadoria muito específica. Essa mercadoria é a força de trabalho. Só quando a força de trabalho passa a ser comprada e vendida como uma mercadoria é que estão dadas as condições históricas e materiais para o surgimento do capital e do capitalismo.
Por condições históricas, entende-se o momento da evolução das relações sociais em que, após o sistema escravagista e do servilismo feudal, passa a existir homens e mulheres “livres”. As aspas não necessárias porque essa liberdade de homens e mulheres, os trabalhadores, não se refere necessariamente a uma melhora em suas condições de vida e existência mas à possibilidade legal/social de vender sua força de trabalho, não possuindo eles outros meios de subsistência que não seja a venda desta força de trabalho.
O papel crucial do surgimento da força de trabalho como mercadoria é porque ela é uma mercadoria sui generis. Por um lado, ela é trocada, como toda mercadoria, por valores equivalentes. Ou seja, o trabalhador assalariado livre troca sua força de trabalho por um salário que deveria satisfazer suas necessidades e de sua família. 
Por outro lado, a força de trabalho é uma mercadoria que cria valor ao ser utilizada. Ao contrário das demais mercadorias que se desgastam com o uso, a mercadoria força de trabalho, na medida em que é usada em um processo produtivo, cria valor. Dessa forma, a mercadoria produzida terá um valor maior do que o que foi despendido pelo capitalista com a compra de meios de produção e com a própria força de trabalho. Esse acréscimo de valor, a mais-valia, é inteiramente apropriado pelo capitalista. Esse é o momento em que o valor se transforma em capital.
“O valor originalmente adiantado não se limita, assim, a conserva-se na circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa grandeza um mais valor ou se valoriza. E esse movimento o transforma em capital.”
[…]
“Para poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação, uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho, ou força de trabalho.” (Marx, O Capital, cap. 4)
Portanto, a possibilidade de comprar e explorar a mercadoria força de trabalho é a essência do capitalismo. Foi a transformação do trabalho em mercadoria que potencializou a circulação mercantil dos demais produtos. O predomínio da circulação de mercadorias em geral é o desdobramento da transformação do próprio trabalho em mercadoria.  É a existência do mercado de trabalho – e não do mercado em geral – que caracteriza e fundamenta o capitalismo.
A Circulação Mercantil no Socialismo
No começo dos anos 1950, o Partido Comunista da URSS decidiu elaborar um Manual de Economia Política para orientar os novos quadros que chegavam ao partido, muitos dos quais nascidos após a Revolução de 1917. Depois de receber as primeiras versões do Manual, Stalin redigiu observações, críticas e sugestões de melhorias. Esses textos foram reunidos no livro “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS”.
Já no início da obra, discutindo a questão dos kolkhozes, o líder soviético faz a seguinte pergunta: “Deveria o proletariado tomar o poder e, logo depois, destruir a produção mercantil?”. Essa pergunta é respondida negativamente, porque tal política seria inaceitável para os camponeses e, sem o apoio do campo, a revolução seria derrotada. Em seguida, retoma-se a argumentação teórica desenvolvida por Marx: 
“Não se pode identificar a produção mercantil com a produção capitalista … a produção mercantil leva ao capitalismo apenas se existir propriedade privada sobre os meios de produção, se a força de trabalho aparecer no mercado como uma mercadoria que pode ser comprada e explorada pelo capitalista no processo de produção, se consequentemente viger no país o sistema de exploração dos operários assalariados pelos capitalistas … sem isso não há produção capitalista … a produção mercantil é mais antiga que a produção capitalista … por que a produção mercantil não pode servir também, por certo período, à nossa sociedade socialista sem leva-la ao capitalismo?” (Stalin, Problemas… p. 12 e 13)
“Não será a lei do valor a lei econômica fundamental do capitalismo? Não. A lei do valor é, antes de tudo uma lei da produção mercantil. Existiu antes do capitalismo e continua existindo, assim como a produção mercantil, depois da derrocada do capitalismo, como ocorre, por exemplo, em nosso país, embora com uma esfera de ação limitada.” (Stálin, Problemas… p. 34)
Como foi mostrado na seção anterior, a caracterização do capitalismo não se dá pela existência de mercadorias em geral, mas por uma mercadoria especial, a força de trabalho. Quanto à produção e circulação das demais mercadorias, a experiência soviética indica que ela pode ser útil à construção do socialismo desde que seja transitória e não desempenhe um papel regulador, especialmente na produção e circulação dos meios de produção. Este papel regulador, por sua vez, é uma atribuição do Poder Soviético, garantida pela
“existência da propriedade social sobre os meios de produção, pela ação da lei do desenvolvimento harmonioso da economia e, por conseguinte, […] pelos nossos planos anuais e quinquenais, que são o reflexo aproximado das exigências dessa lei.” (Stálin, Problemas…, p. 21)
Assim, Stálin critica o desvio “à esquerda” que seria propor a eliminação imediata da circulação mercantil. Ao mesmo tempo, fecha as portas para o desvio direitista enfatizando que o papel do mercado é transitório, limitado e subordinado.
Portanto, não apenas existe mercado no socialismo como ele pode ser útil nas primeiras etapas da revolução. Entretanto, esse mercado é qualitativamente diferente do mercado capitalista porque tem uma função subordinada ao planejamento econômico e não se estende à força de trabalho. 
O Desemprego é a prova da inviabilidade do capitalismo
A compreensão de que o mercado de trabalho é o elemento fundador e definidor do capitalismo tem implicações práticas não apenas para os países que já atingiram o socialismo, mas também para os países sob o regime capitalista.
O desemprego é o desdobramento necessário da existência do mercado de trabalho. Portanto, a luta contra o desemprego vai ao encontro de uma das principais reivindicações imediatas dos trabalhadores ao mesmo tempo que evidencia os limites do capitalismo em atendê-la. A luta contra o desemprego une, assim, a luta econômica cotidiana com a luta política geral.
Essa perspectiva é apresentada pelo economista polonês Michal Kalecki em seu artigo “Aspectos Econômicos do Pleno Emprego”. Nele, Kalecki argumenta que a permanência do desemprego não se dá por causas estritamente econômicas, já que o correto manejo da política econômica pode garantir empregos para todos os trabalhadores. No entanto, como vimos, políticas que atuem sobre o mercado de trabalho abalam o principal alicerce do regime capitalista. Essas políticas serão, portanto, duramente repelidas pelos capitalistas.
“De fato, sob um regime de pleno emprego permanente, as demissões perderiam seu papel como medida disciplinar. A posição social do chefe seria minada e a autoconfiança e a consciência de classe dos trabalhadores aumentariam. Greves por aumentos de salário e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política. É verdade que os lucros seriam maiores sob um regime de pleno emprego […] mas ‘disciplina nas fábricas’ e ‘estabilidade política’ são mais apreciadas do que os lucros pelos líderes empresariais. Seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego duradouro não é saudável do seu ponto de vista, e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista “normal”. (Kalecki, Aspectos…)
Dessa forma, uma política de garantia de emprego expõe o antagonismo de interesses entre os trabalhadores e a burguesia. Enfraquece a hegemonia capitalista que se vê impedida de apresentar seus interesses como se fossem interesses de toda a sociedade. Livre da ameaça do desemprego, os trabalhadores teriam melhores condições materiais e morais para pensar além de sua luta cotidiana pela subsistência. Olhariam para o futuro, que não seria um horizonte distante e inatingível, mas sim uma possibilidade real, cuja abolição do mercado de trabalho é uma base palpável.
“Se o capitalismo puder se ajustar ao pleno emprego, terá incorporado uma reforma fundamental. Caso contrário, ele se mostrará como um sistema ultrapassado que deve ser superado.” (Kalecki, Aspectos…)
Conclusão – No Socialismo não há desemprego
Embora o capitalismo se apresente como uma “imensa coleção de mercadorias”, não é a produção mercantil em geral que o define. Para a existência do capital é necessária uma mercadoria específica, força de trabalho. Existia mercado e mercadorias antes do capitalismo e haverá um mercado socialista. Esse mercado socialista, transitório e controlado, pode, inclusive, ser útil para a consolidação do socialismo. A compreensão dessa questão é importante para evitar idealismos tanto na avaliação das experiências socialistas atuais como para orientar o programa econômico a ser apresentado pelos comunistas na situação da crise atual.

in LavraPalavra (com a devida vénia)

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