Carlos Fiolhais 18/06/2020 03:25
“Somos nós, seres
humanos, quem inventou os números, e, como tal, também somos nós
quem decide como os usamos”, defende a autora na obra. Sanne Blauw
(n.1986) explora neste livro “falácias escondidas nos números que tanto
gostamos de citar e analisar”Ao contrário da vox populi, os números enganam. Há por aí muita gente a enganar-nos com os números. Muitos números divulgados pelos media são manipulados, de acordo com os interesses das pessoas que estão por detrás. Como Blauw esclarece, os números precisam de palavras: fazem parte de discursos. Diz, logo no início, que “este não é um livro anti-números. Os números, tal como as palavras, não têm culpa, são inocentes. São as pessoas por detrás dos números que cometem os erros.” A questão não é apenas dos emissores, mas também e principalmente dos receptores, “porque nos deixamos seduzir e iludir.” Este livro visa evitar a ilusão, para o que são úteis as seis questões de verificação com que encerra a obra, à frente das quais estão: “Quem me apresenta o número? Que sentimento me desperta?”
Blauw refere várias vezes, com encómio, um livro que é um clássico sobre estatística. Intitula-se Como Mentir com a Estatística e é seu autor um sagaz jornalista norte-americano, Darrell Huff, que antes tinha escrito sobre temas tão díspares como a fotografia, as profissões de futuro e os cães. O certo é que se tornou “o maior bestseller de todos os tempos*” (*na área da estatística). Passado meio século, uma das melhores revistas de estatística dedicou-lhe um número especial, numa homenagem da ciência ao jornalismo. Propus esse livro para a colecção Ciência Aberta da Gradiva, onde saiu em 2013, com muitos anos de atraso relativamente ao original (que é de 1954), mas um bom livro mais vale tarde do que nunca. Huff abre com a famosa frase de Benjamin Disraeli, primeiro-ministro do Reino Unido no século XIX, sobre a estatística: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras enormes e estatísticas.” Junto mais duas, de autores anónimos, de meu reportório: “O estatístico usa a estatística como um bêbedo usa um candeeiro: mais para suporte do que para iluminação” e “A estatística é como o bikini: o que mostra é sugestivo, mas o que esconde é essencial” (há versão masculina).
São inúmeros os exemplos do mau uso de estatísticas, designadamente o absurdo que é, por vezes, a redução de uma realidade complexa a um só número: já foi dito que a estatística é a disciplina que prova que o ser humano tem, em média, um testículo. Blauw comunica-nos o engano das médias através de uma pergunta: Como é que os passageiros de um autocarro podem, em média, ficar milionários de repente? Resposta: Basta que Bill Gates entre nele.
O Poder dos Números ilustra, com vários exemplos, o uso e abuso da estatística, salientando tanto as suas vantagens como os seus perigos. Conta-nos que a inglesa Florence Nightingale, a fundadora da enfermagem no século XIX, que assistiu muitos combatentes da Guerra da Crimeia, foi pioneira na apresentação visual de dados estatísticos. Conseguiu com infografias passar úteis mensagens sobre saúde pública. E conta-nos também a história do médico escocês Archie Cochrane, este no século XX, que defendeu a medicina baseada na evidência científica e que hoje dá o nome a uma instituição que faz metanálises. Cochrane, feito prisioneiro de guerra pelos alemães em 1941 na Grécia, tratou milhares de companheiros de infortúnio, enquanto reflectia sobre as estatísticas da medicina.
Blauw discute a utilização dos números na questão racial: o que significa dizer que os negros têm um QI inferior ao dos brancos? Basicamente nada. Aliás as próprias noções de negro e branco são discutíveis, uma vez que, com base na genética, não se deve falar de raças. O biólogo norte-americano Stephen Jay Gould abordou a questão no seu livro A Falsa Medida do Homem (a tradutora, que fez um bom trabalho, não reparou que este livro está traduzido em português: Quasi Edições, 2004). O QI mede o quê? Já alguém disse que medirá a inteligência se e só se esta for definida como
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