Aventura na baía dos leitões
23.06.2020 às 16h11
Um bando de mercenários foi preso há dois meses ao tentar desembarcar nas costas da Venezuela, a coisa parecia um arremedo da saga do coronel Alcazar do Tintin, uma simples graçola, quando um deles veio reclamar direitos legais com papel passado em notário. A curiosidade é mesmo o contrato que os mercenários traziam no bolso
O
detalhe do caso foi reportado, ao que sei, pelo "Washington Post" e,
depois, replicado pela imprensa mundial, incluindo a portuguesa. E é
curioso: um bando de mercenários foi preso há dois meses ao tentar
desembarcar nas costas daquele país, a coisa parecia um arremedo da saga
do coronel Alcazar do Tintin, uma simples graçola, quando um deles veio
reclamar direitos legais com papel passado em notário. A curiosidade é
mesmo o contrato que os mercenários traziam no bolso.
O
grupo obedecia ao comando de um empresário norte-americano do ramo,
Jordan Goudreau, que veio dar explicações. Segundo a sua versão, a sua
empresa, a Silvercorp, foi abordada por representantes de Juan Guaidó, o
proclamado presidente interino da Venezuela, reconhecido pela
diplomacia dos Estados Unidos e pelos seus aliados, incluindo, com
diversos graus de devoção, algumas chancelarias europeias.
Esses
embaixadores pagaram-lhe para preparar uma operação militar: 800
soldados, sobretudo desertores do exército venezuelano e milícias de
extrema-direita, deveriam ser treinados para uma invasão a curto prazo.
A
empresa seria autorizada a usar sem riscos judiciais a força
necessária, como o assassinato de dirigentes políticos e a morte dos
militares oficialistas que resistissem, receberia um bom prémio de
centenas de milhões de dólares e, depois, mais dezasseis milhões por
cada mês no período de transição em que os seus serviços de segurança
fossem reclamados pelos clientes. Tudo escrito em oito páginas de
contrato e 41 de aditamentos, com as indicações detalhadas para a
operação.
Goudreau,
zangado porque os 800 voluntários não apareceram, ou os poucos que
vieram se preocupavam mais com diversão avulsa do que com o garbo
militar, escandalizado pelo naufrágio das lanchas dos comandos, que
foram recebidos e dizimados pelo inimigo, em vez de serem festejados
pela população, e, sobretudo, amofinado com a falta de pagamento,
revelou o contrato e lavrou o seu protesto.
A
assinatura era do braço direito de Guaidó, que viajou para os Estados
Unidos para concretizar o compromisso, assinado em outubro do ano
passado, e que não teve como desmentir o mercenário. É tudo verdade. É
mesmo estimável que, em tempos tão turbulentos, de gigantescas
conspirações e fake news, haja quem tenha o rigor processual de
contratualizar por escrito os assassinatos, a invasão militar e o regime
posterior, tudo para que as devidas autoridades comerciais possam
aferir o cumprimento das cláusulas, a ser necessário. Só que falhou
tudo, nem exército, nem dinheiro.
Trump,
que, ao que revela Bolton no seu livro hoje publicado, acha que a
Venezuela é parte dos EUA, veio no domingo mostrar algum arrependimento
sobre a sua aposta em Guaidó. Não é para menos, o homem tem fracassado
em todos os seus intentos de tomar o poder: parece que faltam as
manifestações; quando tentou levantar os quartéis ficou sozinho a tirar
selfies em frente ao portão; e o seu peso institucional depende mais do
sequestro da direita histórica venezuelana do que de propostas
realizáveis.
Não
sei o que dirá o governo português, que procedeu com aquela matreirice
de reconhecer Guaidó como presidente mas de manter o embaixador oficial e
de, para todos os efeitos, tratar com Maduro de todos os assuntos de
Estado. A Espanha já se pôs a milhas desse jogo. E a crise daquele país
continua a agravar-se. Pobre Venezuela, tão destruída e tão cobiçada.
in Expresso
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