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quinta-feira, 2 de julho de 2020

Um excelente exercício com e sobre conceitos. Muito embora refira exemplos dos anos setenta do século passado, o principal (o filosófico) não perdeu atualidade.

A Questão do Fascismo

Por Agustín Cueva, traduzido por Fernando Savella a partir da versão publicada originalmente em Revista Mexicana de Sociología, Vol. 39, No. 2 .Apr. – Jun., 1977, pp. 469-480. 
Quanto ao outro aspecto definidor do fascismo, ou seja, o fato de que a ditadura terrorista do capital monopolista se exerce fundamentalmente contra a classe operária, também parece difícil de impugnar. Em primeiro lugar, um conjunto de fatos políticos que saltam à vista. Tanto o golpe de Estado de Banzer em 1971 como o de Pinochet dois anos mais tarde, foram a culminação de ações contrarrevolucionárias dirigidas centralmente contra forças proletárias que através de processos políticos diversos conseguiram articular alternativas socialistas.

Desvinculados de um universo teórico que lhes confira um sentido inequívoco, os conceitos acabam se parecendo muito com esses albergues da juventude europeia onde não se encontra nada além do que trouxe consigo. Nesse caso, os conceitos são usados arbitrariamente e qualquer discussão a seu respeito desemboca no vazio do nominalismo. Mas vamos supor que ninguém trata em termos tão rudimentares um problema crucial como o das brutais ditaduras que assolam boa parte do nosso continente, e que o tema é sempre abordado a partir de um marco teórico, ao menos de maneira subjacente, que deve ser explicitado com a finalidade de apontar diretamente a atual controvérsia em torno do fascismo. 
Se colocamos o problema numa ótica weberiana, por exemplo, teremos que proceder na construção de um tipo ideal a partir dos elementos mais significativos de uma situação histórica que na nossa “cultura” recebeu o nome de “fascista”, criando assim um modelo heurístico que servirá para avaliar outras situações que aparentemente apresentam características similares. Mas tendo em conta que esses elementos “significativos” não são selecionados de acordo com um critério distintivo do que é realmente essencial e o que não é – dado que tal hierarquia não existe objetivamente para Weber – mas sim com critérios em última instância subjetivos (“culturais”) como aqueles aos quais a sociologia compreensiva se refere. No melhor dos casos, por este caminho se chegará na elaboração de um conceito “típico ideal” bem descritivo do fascismo, baseado em quatro, seis, oito, ou por que não vinte ou trinta características provenientes de qualquer instância, forma ou aspecto da situação histórica que serve de referência empírica. Não é por outro motivo que com este “método” se chega quase sempre à mesma “conclusão”, que para Weber – mais coerente que seus discípulos – estava mais para uma premissa teórica: a de que os fatos históricos constituem constelações causais fatalmente singulares e por isso, irrepetíveis. Isso faz com que, na condição de aceitar de início certa concepção da história, o resto se torna evidente por si só: o Chile dos anos setenta “obviamente” não é a Alemanha dos anos trinta, a fênix não é mais que um mito. 
Se colocamos a questão numa perspectiva de análise marxista, ela toma termos radicalmente distintos. Não se trata mais de construir modelos “culturalmente” significativos e nem de trabalhar com categorias puramente descritivas, mas sim de operar uma distinção qualitativa entre o que é objetivamente essencial e aquilo que não é, de acordo com a teoria materialista e dialética e mediante a aplicação de suas categorias mais adequadas à natureza do fenômeno que se busca analisar. O que interesse no caso de regimes como os do Cone Sul da América Latina é, então, conhecer sua essência, e não por mero capricho intelectual, mas porque esse conhecimento é de vital importância para a ação política. Se tal essência coincide com a conceptualização marxista já existente sobre o fascismo, é conveniente chamar as coisas pelo seu nome: o contrário não passa de um ato de taxonomia que inclusive nos priva de um termo que é ao mesmo tempo uma consigna de aglutinação e luta. 
Ao falar de fascismo sem dúvida aludimos a um fenômeno da superestrutura política-estatal, ou seja, daquela instância em que o econômico se “concentra” através da luta de classes. O Estado, dizia Marx, é “o índice das lutas práticas da humanidade”, índice que como sabemos se cristaliza em estruturas de dominação de uma classe sobre outra ou outras. Quem exerce o domínio sobre quem e de que maneira o faz são, portanto, as perguntas essenciais na esfera do político. 
Tratando-se do fascismo, a tradição marxista – pelo menos desde Dimitrov – parece concordar em responder a essas perguntas de uma maneira muito precisa: o fascismo é a ditadura terrorista que os setores mais reacionários do capital monopolista exercem primordialmente sobre a classe operária, em situações de crise ou quando, por quaisquer outras circunstâncias, sentem seu sistema de dominação ameaçado. No conceito de fascismo existe, assim, um certo número de elementos essenciais que convém destacar:
  1. Se trata não somente de uma ditadura burguesa, mas sim de uma ditadura em que o setor monopolista tem o predomínio omnímodo, inclusive sobre os setores burgueses não monopolistas.
  2. Essa ditadura adquire um caráter terrorista até o ponto de produzir uma mudança qualitativa na forma de dominação e consequentemente na forma do Estado, operando uma ruptura radical com as formas democrático-burguesas.
  3. Essa forma de dominação se exerce fundamentalmente contra a classe operária, que a burguesia identifica como seu inimigo principal. 
  4. Tal ditadura aparece como o “remédio infalível onde o capitalismo atravessa uma crise e teme seu colapso” (Togliatti). 
E os demais elementos que às vezes são mencionados como constitutivos do fascismo, tais como o partido de massas, o suporte pequeno-burguês ou a ideologia nacional-chauvinista? No momento vamos nos limitar a reafirmar que o essencial não está nesses elementos, dado que eles constituem simples meios destinados a “escorar” o fundamental. “Como advertiu Dimitrov – escreve Rodney Arismendi – não é a existência ou inexistência de um partido de massas o que define primordialmente o fascismo, mas sim sua natureza de classe e a transformação qualitativa que impõe às formas do Estado” [1]. O mesmo Arismendi nos lembra que nos casos da Finlândia, Bulgária e Iugoslávia o fascismo foi implantado sem uma base de massas, apoiado exclusivamente no aparato militar do Estado. Convém precisar, ainda, que o fascismo não é de forma alguma uma ditadura da pequena burguesia. E quanto a certos elementos ideológicos concretos que usualmente são apontados como característicos do fenômeno, é evidente que se tratam de materiais históricos mutáveis mas que sempre se articulam sobre um eixo que lhes confere uma identidade essencial, reflexo da estrutura básico do fascismo: me refiro ao anticomunismo raivoso. 
Definindo assim o fenômeno fascista, perguntamos se o mesmo existe ou não em países como os do Cone Sul da América Latina. Comecemos apontando que o fato de que Chile, Uruguai, Argentina e Brasil não serem países imperialistas, mas ao contrário países submetidos à dominação imperialista, não determina que ali não possam ocorrer processos de fascistização; na verdade, a penetração profunda do capital transnacional nessas economias é o ponto de referência fundamental para a compreensão de tais processos. Se agora podemos falar com propriedade de fascismo – seguramente pela primeira vez na história do subcontinente – é justamente porque através dessa penetração as condições econômicas necessárias para que tal fenômeno pudesse ocorrer amadureceram. 
A América Latina já não é, na década de sessenta, uma simples área semicolonial na qual o capital imperialista está presente de maneira quase exclusiva nos setores primário-exportadores; se trata agora de uma região em processo de industrialização “dependente”, ou seja, de um espaço econômico permeado até a medula por um capital transnacional que penetrou até no seio de nosso mercado interno. Por mais imprecisas que tenham sido as observações de alguns autores sobre a década passada no sentido de que o imperialismo não seria para nós um fator exclusivamente externo mas também interno, não deixam de revelar certa consciência de uma transformação tão importante como a que acabamos de apontar. 
De toda forma, o controle dos setores chave da indústria latino-americana pelo capital imperialista é um fato que não deixa lugar para dúvidas desde mais de uma década e meia, assim como o controle que esse capital estabeleceu na esfera financeira. Em torno desses novos pontos de desenvolvimento do capital monopolista, ao quais se adicionaria naturalmente o grande comércio e os complexos agro-industriais de instalação mais recente, foi se criando uma camada burguesa monopolista nativa e, com ela, o elemento interno decisivo para a conformação de um bloco monopolista estrangeiro-local (“transnacional” no fundo) que, junto com as cúpulas burocráticas militares e civis vinculadas não apenas política como também economicamente a ele, constituiu o eixo social de uma dominação eventualmente fascista, ou seja, capaz de fascistizar-se quando as circunstâncias históricas o requerem. 
Já não se trata, então, daquelas situações complexas de transição ao capitalismo que engendraram os regimes absolutistas do passado (regimes “oligárquicos”), expressão do domínio tripartite dos “junkers” locais, a burguesia “compradora” e os interesses imperialistas; tampouco é a questão das antigas situações de “enclave”, que no plano político deram origem às tiranias semi-coloniais; por fim, já não estamos frente às crises de hegemonia ocasionadas por fissuras no seio do bloco oligárquico-burguês-imperial (com ou sem a ação de movimentos de massa de perfis de classe difusos), crises que deram lugar às ditaduras militares tradicionais. Pelo menos esse não é o caso de países como Chile, Uruguai, Brasil ou Argentina, mesmo que em situações como as da Bolívia, Nicarágua ou do Haiti os processos de fascistização se apresentem intimamente entrelaçados com elementos de ditadura militar tradicional no primeiro caso, ou de tirania semi-coloniais nos dois últimos. 
Convém insistir que, sobretudo no caso dos processos mais avançados de fascistização, o predomínio do bloco monopolista se expressa pelo rápido deslocamento do eixo central do poder das camadas burguesas nacionais (ou seja, pré-monopolistas) assim como dos setores latifundiários tradicionais. Isso é fácil de comprovar em um modelo como o brasileiro por exemplo, apenas examinando o desenvolvimento industrial e agrícola de 1964 para cá. O processo de violenta centralização e concentração de capitais no primeiro setor é bastante conhecido, então não precisamos nos estender no tema; quanto à evolução no campo, podemos apenas assinalar que estudos recentes demonstram que frente ao auge dos complexos agro-industriais de propriedade monopolista, existem outros proprietários com fazendas de mais de 300 hectares que recebem uma renda anual equivalente a apenas metade do que corresponderia ao salário mínimo regional. “O novo aspecto que emerge dessas investigações – escreve Alberto Passos Guimarães – é o de que a pobreza rural deixou de ser uma peculiaridade exclusiva da massa de camponeses e assalariados, pois já alcança uma parcela importante de agricultores empresários, não pequenos.” [2]. 
Nada disso significa, no entanto, que os remanescentes da burguesia nacional ou dos latifundiários tradicionais (e falo de “remanescentes” porque seus estratos de ponta são refuncionalizados e incorporados ao bloco monopolistas) acabem imediata e totalmente excluídos de certos níveis de poder uma vez que o fascismo se instaura. O temor do socialismo ou da simples reforma agrária democrática pode convertê-los inclusive em sólidos pontos de apoio do processo de fascistização, mas trata-se de um fato que seus interesses e projetos de classe estão longe de serem hegemônicos. Basta lembrar que a política econômica dos regimes fascistas persegue uma eliminação impiedosa dos níveis empresariais “internacionalmente não competitivos” para compreender o destino desses setores que podem apenas sobreviver vegetativamente em áreas da economia que não interessam de maneira direta ao capital monopolista ou submetendo-se cada vez mais ao seu domínio. A dominação omnímoda deste último parece então inquestionável e por esse lado há base mais do que suficiente para qualificar de fascistas as ditaduras do Cone Sul. 
Quanto ao outro aspecto definidor do fascismo, ou seja, o fato de que a ditadura terrorista do capital monopolista se exerce fundamentalmente contra a classe operária, também parece difícil de impugnar. Em primeiro lugar, um conjunto de fatos políticos que saltam à vista. Tanto o golpe de Estado de Banzer em 1971 como o de Pinochet dois anos mais tarde, foram a culminação de ações contrarrevolucionárias dirigidas centralmente contra forças proletárias que através de processos políticos diversos conseguiram articular alternativas socialistas. Nesse sentido torna-se paradoxal, para dizer o mínimo, que alguns estudiosos destaquem o aspecto contrarrevolucionário desses regimes, para acabar negando seu caráter fascista. É provável que sua motivação gire em torno da ideia de que os processos em questão eram na verdade “reformistas” e não socialistas, mas então como explicar o fato de que os golpes mencionados se deram com a finalidade explícita de “salvar a pátria do comunismo”?
O próprio golpe de 1964 no Brasil foi mais anticomunista do que “anti-populista” (por mais que certas interpretações interessadas distorçam esse caráter) e o golpe de Bordaberry no Uruguai foi iniciado com uma inequívoca repressão massiva da classe operária (até então a repressão se exercia, e muito duramente, contra movimentos revolucionários de outra camada social). O caso argentino é um tanto mais complexo e por isso alguns setores de esquerda receiam em qualificar a situação atual de fascista; mas aqui também é notório que a instauração da ditadura de Videla não foi apenas uma reação contra o desmoronamento do governo da senhora Martínez, mas também uma resposta repressiva às reivindicações operárias e sobretudo às tentativas de autonomização política dessa classe. É interessante destacar, por outro lado, que em todos os casos mencionados o sistema inteiro havia entrado em uma fase crítica que – ao menos na opinião dos interessados em defendê-lo – o colocava na beira do colapso. 
Mas não são apenas esses aspectos políticos que têm continuidade com a repressão constante de toda atividade operária autônoma, seja sindical ou partidária, mas também a questão econômica que revela com claridade o caráter fundamentalmente anti-operário de tais regimes. O balanço a esse respeito é bem fácil de ser feito, atendo-se ainda aos próprios dados oficiais: desde que se instalaram regimes fascistas no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina o proletariado desses países sofreu uma pauperização absoluta que está em média na ordem dos 50% [3]. O processo é tão brutal e escancarado que se pode formular a função do fascismo nesse terreno em termos inequívocos: se trata de produzir a mão de obra mais barata possível em benefício do capital monopolista por métodos terroristas. É legítimo afirmar inclusive que o fascismo é o elo político necessário para a rápida fusão do capital monopolista com o multinacional sobre a base da criação de uma nova “vantagem comparativa” (justamente a mão de obra barata) que constitui o “atrativo” substancial que a burguesia local pode oferecer então ao seu maior sócio. É em todo caso o meio pelo qual a grande burguesia tenta sair de seu atoleiro histórico, não apenas se aliando, mas desta vez fundindo-se com um capital transnacional que, por sua vez, está mais ávido do que nunca por super benefícios, agora que a taxa de lucro sofreu uma severa queda a nível mundial como efeito da crise. 
Enfim, parece difícil questionar o caráter terrorista generalizado que as ditaduras do Cone Sul assumiram para cumprir seus propósitos. Se trata de um terror “moderno”, institucionalizado e sistemático, que sem dúvida marca uma transformação radical no funcionamento da superestrutura estatal. “A supressão total das liberdades democráticas, como a liberdade de organização, de imprensa, de reunião, o direito à greve, o sufrágio universal direto, etc., como também a proibição de criar organizações autônomas de massas”, todos esses elementos que Togliatti assinalava como característicos do fascismo italiano encontramos sem dúvidas nos países latino-americanos fascistizados [4].
Até um apologista tão conhecido das ditaduras do Cone Sul como Mariano Grondona reconhece que elas expressam o advento de uma forma estatal qualitativamente diferente da democrático-burguesa. Grondona, é claro, não admite que se tratem de Estados fascistizados, mas prefere equipará-los com o absolutismo que a Europa conheceu na fase de transição ao capitalismo; de um ponto de vista marxista torna-se difícil imaginar que Pinochet ou Geisel estejam cumprindo tarefas históricas similares às de Luís XIV [5]. 
O desmantelamento do Estado democrático-burguês e sua substituição por uma forma fascista não tem, já dizemos, porque se revestir aqui com as mesmas modalidades concretas que teve na Europa, onde ainda variaram de país para país. E nem sequer é necessário que o processo seja estritamente uniforme em todos os países fascistizados da América Latina. Sabemos bem que Geisel mantém uma caricatura de parlamento quando convém, fechando-o e abrindo-o à vontade, e que os fascistas uruguaios colocam uma marionete civil na cabeça do governo, enquanto Pinochet prefere prescindir desse tipo de rodeios. São singularidades nascidas da peculiaridade de cada desenvolvimento nacional, de cada equilíbrio ou desequilíbrio de forças, e nesse nível devem ser entendidas e avaliadas em sua relevância ou irrelevância na luta política; de toda forma, importa ter-se em conta que, enquanto simples modalidades que são, podem apontar unicamente a possibilidade ou impossibilidade de certos movimentos táticos, mas nunca fundar uma estratégia. Esta tem que se basear em uma compreensão, ou seja, no reconhecimento de que a lógica que rege o funcionamento da superestrutura política em seu conjunto não é outra que a imposta pela ditadura terrorista do capital monopolista. 
Dentro da unidade que o fascismo constitui obviamente há margem para a diversidade, e por mais uma razão que não podemos esquecer:o desenvolvimento dialético da história, determinado pela luta de classes, faz com que nunca existam estruturas “quimicamente” puras, cristalizadas de uma vez por todas. Se trata de processos em que diversos elementos se combinam de maneira complexa, produzindo rupturas de ordem qualitativa sem as quais seria impossível falar mesmo de distintas formas de Estado, mas abrindo ao mesmo tempo um rol de gradações e matizes. Portanto, podem haver graus variados de fascistização em cada formação social, como efetivamente existem no Cone Sul. O Chile, por exemplo, parece apresentar no momento um grau de fascistização maior do que o do Brasil. 
Entre o plano do essencial-universal e o das singularidades concretas existe ainda um plano intermediário, o da particularidade, que a análise materialista não pode deixar de lado. No caso da América Latina essa particularidade é dada pelo fato de se tratar de países subdesenvolvidos e dependentes, com uma economia atrasada, deformada e que ocupa uma posição sempre subalterna no seio da constelação capitalista-imperialista mundial. 
 Disso se segue uma primeira característica do fascismo latino-americano que consiste na sua impossibilidade de conseguir uma base de apoio popular, ou seja, de sustentar-se em algum movimento de massas. Isso tem a ver sobretudo com o seguinte: os países dependentes não podem dispor de uma afluência de excedente proveniente do exterior que lhes permita expandir de maneira rápida e de forma relativamente homogênea sua economia, mas estão sujeitos a uma drenagem constante de excedentes. Nessas condições, ou sua economia cresce acentuando violentamente as desigualdades de todo tipo e desenvolvendo unicamente os pontos que interessam ao capital estrangeiro (o caso do Brasil), ou acabam na estagnação como seria o caso do Chile, Uruguai e Argentina atualmente. A diferença entre o primeiro caso e os três últimos é dado por dois fatores: a) o de que o Brasil adquiriu a condição de aliado privilegiado do imperialismo e b) que seu modelo conseguiu ser implementado antes do capitalismo mundial entrar em crise. A conjunção desses dois fatores permitiu o “milagre” (antes da crise), mas com um custo social bem conhecido que constitui a barreira estrutural que impediu o desenvolvimento de um fascismo com apoio de massas. É inútil pensar sequer na possibilidade de uma mobilização fascista de certos setores operários e camponeses quando essas duas classes em conjunto sofrem um processo de pauperização poucas vezes visto; também arriscada a mobilização num mesmo sentido das massas pequeno-burguesas quando o grosso destas sofrem os efeitos de um processo brusco de centralização de capitais em benefício dos monopólios estrangeiros. 
No casos do Chile, Uruguai e Argentina a questão é mais clara ainda. Limitamo-nos a adicionar que até as camadas médias experimentaram aqui um empobrecimento e uma “marginalização” que provavelmente são as mais graves de sua história. Seu nível de vida decresceu bruscamente e as demissões massivas de funcionários públicos contribuíram na criação de uma legião de desempregados.
Nessas circunstâncias não há nada de estranho que a “linha de massas” do fascismo tenha sido – ali onde ocorreu – de curta duração. Ocorreu no Chile, por exemplo, no momento em que a grande burguesia enfrentou o governo da Unidade Popular mobilizando em sua oposição vastos setores da pequena-burguesia e certos estratos das camadas médias: porém, tais mobilizações terminaram no próprio 11 de setembro de 1973, sem que se tentasse sequer construir um partido fascista sobre a base desses movimentos sociais. Mesmo sendo um fator chave no processo de desestabilização do governo Allende, não poderiam se converter em um sólido suporte orgânico do regime que se instaurou depois já que seus interesses e perspectivas estavam condenadas a entrar em colisão com a política pró-monopolista que é a medula do fascismo. Enquanto escrevo estas linhas, a imprensa cobre um conflito aberto do sindicato dos caminhoneiros e da associação médica contra a ditadura chilena, por conta da penúria econômica a que foram conduzidos os membros dessas duas organizações que paradoxalmente constituíram os aríetes “populares” mais eficazes da luta anti-allendista [6]. 
Outra característica particular do fascismo latino-americano consiste na sua impossibilidade de implementar uma política de tipo nacionalista, dada a nossa configuração dependente. No plano objetivo isso se torna impensável dado que o capital monopolista dominante é justamente estrangeiro e não pode desenvolver uma política contra si mesmo. Já no plano subjetivo, também não é fácil agitar bandeiras nacionalistas para mobilizar as massas pela simples razão de que nos países dependentes se corre os risco de adquirir uma base de projeções anti-imperialistas.
O elemento nacional-chauvinista do fascismo alemão ou japonês se assentava sobre um elemento objetivo constituído pela possibilidade real de expansão do capital monopolista nativo para além de suas fronteiras nacionais; nada disso pode ocorrer no caso do fascismo latino-americano que é em si mesmo o resultado de um movimento inverso, ou seja, da penetração do capital estrangeiro nos nossos espaços nacionais. Torna-se quase ridículo imaginar Chile, Uruguai, Bolívia e até a Argentina convertidos em países imperialistas por conta da política fascista, e mesmo o “sub-imperialismo” brasileiro deve ser analisado com a devida atenção. Em primeiro lugar parece equivocado examinar o movimento do capitalismo no Brasil como se fosse realmente autônomo ou independente do movimento do capital internacional que predomina nessa formação social. O intervencionismo “brasileiro”, patente na vida política boliviana, uruguaia e chilena (para não falar da intervenção armada na República Dominicana em 1965), é algo muito distante de corresponder a um alongamento do capital nativo; em essência não é outra coisa que um reflexo mediado da expansão do capital transnacional. Para afirmar o contrário, seria necessário demonstrar previamente que o capital originário do Brasil se engajou numa luta com o capital imperialista de outras nacionalidades pela conquista de mercados e o asseguramento de fontes de matérias primas, o que é falso; para que isso acontecesse, seria necessário começar por se tornar independente no próprio seio de sua formação social, coisa que pelo menos até hoje não ocorreu. 
Isso não quer dizer que a camada de capital monopolista nativo não intervenha como sócio menor em certas aventuras expansivas ou que a própria ditadura brasileira não alimente a ilusão de converter o Brasil em uma potência imperialista ainda que de segunda ordem, o que deu origem a certa dose de “nacionalismo”. Isso quer dizer, simplesmente, que um e outro se chocam com a barreira objetiva de ter chegado tarde à repartição do mundo. Nada mais ilustrativo a esse respeito do que o projeto falido de ocupar pelo menos o lugar do declinante império português na África no momento preciso em que sua derrubada, longe de facilitar a realização desse projeto, permitiu na verdade que as antigas colônias seguissem a via socialista. 
O fascismo latino-americano é, em todo caso, a alternativa política mais eficaz para a desnacionalização de nossas economias, como prova o próprio “milagre” brasileiro. Nos países que se fascistizaram posteriormente, na década de setenta, esse processo supõe inclusive o desmantelamento do antigo setor capitalista de Estado, cuja privatização é sinônimo de desnacionalização. Junto disso, o Estado nacional acaba por perder todo o grau de autonomia frente ao capital estrangeiro e acaba desarmado no terreno ideológico por mais que certos teóricos tentem fugir da situação falando de um “nacionalismo de fins” (último) que teria substituído um “nacionalismo de meios” anterior. Frases como essa escondem é o processo real de substituição do velho capitalismo de Estado, muitas vezes anti-monopolista e nacionalista, por uma nova situação de capitalismo monopolista de Estado no qual a força brutal do fascismo militar se junta ao capital monopolista estrangeiro e a camada monopolista local “transnacionalizada” para levar a cabo um processo simultâneo de espoliação das classes populares e de desnacionalização da economia latino-americana. Com isso, o fascismo acaba por operar não somente uma transformação qualitativa na forma da dominação política, mas também uma transformação de mesma ordem no papel econômico do Estado. Culminação de um processo anterior de monopolização do processo produtivo, o Estado fascistizado torna-se a trincheira mais eficaz de constituição plena da fase capitalista monopolista de Estado com as modalidades específicas que esta tem que assumir nos países dependentes. 
Incapaz de pôr em marcha um processo de desenvolvimento auto-sustentado, internamente coerente e com reais possibilidades de expansão, o fascismo latino-americano está distante de resolver a crise das sociedades que subjuga. Tampouco pode estabelecer nelas uma verdadeira hegemonia da classe que expressa, se por hegemonia entendemos o fato de aparecer frente às massas como encarnação dos interesses da nação. Faltando um “consenso”, esse fascismo se sustenta basicamente em um aparato militar que deve ocupar de fora, em uma operação de “guerra interna”, todos os pontos estratégicos da sociedade civil, começando pelos chamados “aparatos ideológicos de Estado”. Sua força é, então, uma força militar; sua debilidade uma debilidade civil.
Não podemos cair, ainda assim, na ilusão de pensar que se trata de uma fragilidade dos regimes fascistizados que podem ser derrubados com a primeira investida das massas. Em si mesmo o terror não é pouca coisa e é pior ainda quando os corpos armados que o exercem são um prolongamento do aparato imperialista mundial de repressão. Também não podemos subestimar a capacidade do capital monopolista em incorporar a seu projeto as “cúpulas” da burocracia civil e as camadas de gerentes e administradores de seu vasto aparato produtivo, constituindo em torno deles uma rede importante de interesses locais. Por fim, o fato de que o fascismo local não seja capaz de construir um amplo “consenso” não quer dizer que é incapaz de exercer um terrorismo ideológico generalizado, incrementando assim toda sorte de temores, desamparos e vacilações. Se não dispusessem desses vastos recursos econômicos, políticos e ideológicos, os regimes em questão já teriam sido derrubados como castelos de cartas. 
Se a debilidade “civil” do fascismo aponta seu calcanhar de Aquiles e abre a possibilidade de conformar em um prazo mais ou menos curto uma frente de massas capaz de derrotá-lo, sua força militar impõe a necessidade de criar uma verdadeira contra-força social dando à dita frente a maior amplitude, ou seja, convertendo-a no ponto de convergência das aspirações legítimas de todos os setores anti-fascistas que constituem a imensa maioria da população. Esse ponto de convergência não pode ser outro, em nossa concepção, do que aquele da luta pelo estabelecimento de uma democracia avançada que seja a fase mediadora entre a etapa de fascistização que estamos vivendo e a meta socialista que não demoraremos a alcançar. 
Parece-me desnecessário me estender sobre o conteúdo concreto da fase de democracia avançada, dado que suas linhas fundamentais já foram trazidas pelos partidos populares que são os porta-vozes autênticos de nossos povos e a garantia de que as transformações previstas sejam efetivamente levadas a cabo. Só quero, antes de terminar este breve ensaio, me referir a um ponto particular da controvérsia sobre o fascismo.
Não faz muito tempo alguém me perguntava por que muitos estudos sobre as ditaduras do Cone Sul coincidem em suas análises concretas do que ocorre ali em termos econômicos, políticos e ideológicos, mas diferem quanto à “caracterização” da situação como fascista ou não e, sobretudo, por que fazíamos desse assunto uma questão vital. Creio que a resposta só pode vir da constatação de que no marxismo não existem terminologias “puras” no sentido de carecerem de conotações políticas, ideológicas e até mesmo estritamente simbólicas. Assim como ao falar de feudalismo latino-americano, demonstra-se uma filiação mesmo que mínima ao chamado marxismo “tradicional”, ao empregar o termo fascismo não deixamos de nos inserir em certa perspectiva política e agitar certa bandeira. Destaquei “termo” para colocar em relevo que sem tal filiação ou essa inserção, conceitos como os mencionados igualmente poderiam ser expressos por uma palavra distinta, ou seja, com outro signo linguístico. Tecnicamente falando, nada impede que um significado (conceito) seja expresso através de qualquer significante.
O importante, para não cair no nominalismo puro, é ter consciência de que nenhuma estratégia e nenhuma tática podem surgir de tal ou qual palavra que empregamos, mas sim da análise que fazemos de uma situação determinada, conceptualizando-a adequadamente. Com isso quero dizer que não é porque denominamos como “ditadura gorila” ou algo do tipo que o regime terrorista que o capital monopolista estabeleceu contra o povo chileno vai mudar um centímetro de seu conteúdo fascista, nem vai alterar em nada a correlação de forças objetivas que deriva dessa situação. Seria mais ingênuo ainda supor que a substituição do termo fascismo por outro é o ato de magia que permite “queimar” etapas e saltar de imediato ao socialismo. Se o avanço da história dependesse de questões verbais, os grupos que há muito tempo as cultivam teriam conseguido pelo menos algum êxito em alguma parte do planeta. Tenho a impressão (talvez equivocada) de que isso não ocorreu e nem está prestes a ocorrer, enquanto por outro lado me parece possível constatar um poderoso crescimento da consciência antifascista em escala não apenas latino-americana, mas também mundial. Creio que os intelectuais progressistas podem contribuir análises e denúncias para o fortalecimento dessa consciência positiva e apoiar assim as lutas das organizações genuínas de massas. É um ponto de vista muito pessoal, mas me apego a ele com firme convicção. 
Notas:
[1] “Reflexiones sobre el momento actual de América Latina”, publicado no El día, México, em 7 e 8 de janeiro de 1977. 
[2] “O complexo agroindustrial no Brasil”, publicado no semanário brasileiro Opinião, 5 de novembro de 1976. 
[3] Cf. nosso artigo “Fascismo y economía en América Latina”, publicado pela revista Controversia, nº2, Guadalajara, fevereiro-abril de 1977. 
[4] “A propósito del fascismo”, em Escritos políticos, Ed. ERA, México, 1971. 
[5] Cf. os múltiplos editoriais a esse respeito que Grondona publicou na revista Visión em 1976. 
[6] Me refiro aos artigos publicados pelos diários mexicanos Excélsior, El dia e El sol na segunda semana de maio deste ano.

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