A dinâmica das formas: derivação e conformação em Alysson Mascaro
Não basta que a classe trabalhadora tome o poder estatal e crie normas melhores, em prol dos trabalhadores. Na realidade, o direito e o Estado são, ao mesmo tempo, produtos e constituintes das relações capitalistas. A partir de Mascaro, fica patente que a emancipação humana se dá ao largo do direito e do Estado.
Por Victor Silveira Garcia Ferreira.
De acordo com a classificação didática
formulada pelo jusfilósofo Alysson Mascaro, a filosofia do direito
contemporânea pode ser arregimentada em três grandes eixos,
dimensionados com base em referenciais e horizontes gerais. O primeiro
deles é o juspositivismo, que se assenta na legitimação do
direito positivo e das instituições políticas e jurídicas liberais. O
segundo caminho filosófico é representado pelo não juspositivismo,
calcado em uma visão realista, que identifica o fenômeno jurídico não
na manifestação da normatividade estatal, mas sobretudo nas relações de
poder, subjacentes ao “direito posto”. O terceiro grande quadrante, por
sua vez, é intitulado crítico, pelo fato de ser erigido pelo marxismo.1
Este último eixo tem o mérito de aprofundar o entendimento das
estruturas de poder e, ainda, identificar suas determinações materiais,
situando as relações jurídicas na totalidade social.
Dentre as vertentes apresentadas, o juspositivismo, principalmente em sua faceta estrita ou reducionista,
constitui o caminho filosófico mais reproduzido no âmbito das
instituições. Por razões históricas e estruturais, o ambiente jurídico é
atravessado pela perspectiva teórica institucionalista e conservadora,
de tal sorte que os juristas, em geral, se convertem em operadores
técnicos, indiferentes às contradições sociais.
Assim, prevalece a concepção de que o direito seria “uma esfera autônoma, imediatamente dada e limitada pelas normas estatais” (Estado e forma política,
p. 278). Por ser o direito reduzido às normas estatais, a ciência
jurídica não se estrutura para ocupar-se do “ser”, mas tão somente das
conexões do “dever-ser”. Desse modo, as normas jurídicas são
consideradas o fundamento do direito e, por conseguinte, passam a ser
tratadas de forma recortada da realidade social. Essa visão reducionista
e desprovida de respaldo histórico enseja a compreensão de que o Estado
e o direito são inexoráveis a qualquer sociabilidade.
O pensamento de Alysson Mascaro, na esteira do marxismo, infirma os postulados teóricos dominantes. Sua leitura filosófica crítica inverte a lógica analítica do juspositivismo,
uma vez que identifica a materialidade do direito em relações sociais
específicas, situadas em um “ser” histórico. O direito e o Estado deixam
de ser tomados de modo institucional e, então, passam a ser
compreendidos a partir das formas sociais do capitalismo. Nesse
diapasão, a reflexão de Mascaro acerca das formas inova a filosofia e as
ciências sociais contemporâneas com duas grandes contribuições: a
dinâmica entre as formas sociais (derivação)2 e a relação, também dinâmica, entre elas (conformação).
Capitalismo e formas sociais: derivação
No modo de produção capitalista, as
interações sociais assumem formas relacionais específicas, diferentes
daquelas que caracterizaram as formações sociais pretéritas (escravismo e
feudalismo, por exemplo). A específica forma de sociabilidade do
capital é determinada por abstrações relacionais impositivas, que
constringem os sujeitos de modo independente da vontade individual,
grupal ou de classe. Isso significa que há certas balizas necessárias,
historicamente determinadas, que constituem as relações sociais,
erigindo princípios de socialização, chamados de “formas sociais”. Estas
advêm de relações sociais históricas e consolidam, objetivamente, modos
relacionais fundamentais à sua própria reprodução. Assim, as formas
sociais determinam a percepção e os comportamentos gerais dos
indivíduos, os quais, por sua vez, reiteram os vínculos necessários à
reprodução do capitalismo.
A forma social nuclear do capitalismo é a
forma-mercadoria. Conforme esclarece Mascaro, “tudo e todos valem num
processo de trocas, tornando-se, pois, mercadoria” (Estado e forma política,
p. 18). A forma-mercadoria é constituída pela generalização das trocas e
da noção de equivalência. Todas as coisas se transformam em bens
passíveis de troca, de tal sorte que aquela forma social passa a
configurar a totalidade das relações sociais, forjando um circuito total
de transações.
A estruturação da sociabilidade pela
forma-mercadoria é regida pela forma-valor, a qual opera a produção e as
trocas mercantis. A mercadoria somente se constitui como tal porque é
trocada por um equivalente. Mas, antes, as trocas somente se consumam
porque há, entre coisas distintas, um dado de igualdade genérica, qual
seja, o valor. A sociabilidade em apreço não se estrutura pela troca de
utilidades (“valores de uso”), mas sim pelo valor de troca: as coisas
não valem pelo que são, mas por aquilo pelo qual são trocadas. São,
destarte, os parâmetros do valor que permitem a equivalência entre
mercadorias e as relações de troca. O valor é o elemento comum, que
estabelece uma relação de grandeza entre coisas diferentes. Mas de onde
surge o valor?
A substância do valor é dada a partir do
momento em que o trabalho se torna “abstrato”. Com a subsunção real do
trabalho ao capital, os ofícios deixam de depender exclusivamente de
caprichos, habilidades, capacidades artesanais e conhecimentos
diferenciados do trabalhador. O processo de trabalho, apropriado pelo
capital, torna-se operacional e regrado por métricas produtivas (com
base no tempo), fazendo dos operários uma geleia de trabalho homogênea,
plenamente substituível em cada ramificação da divisão social do
trabalho. O trabalhador, assim, deixa de ser valorado com base em suas
qualidades intrínsecas e converte-se em mero dispêndio de força
produtiva, tornando-se abstrato (indiferenciado). E, desprovido dos
meios de produção, é compelido a vender sua energia indiferenciada para o
capital, retroalimentando a produção3.
Nesse movimento, o próprio trabalho generaliza-se como mercadoria, dado
que se torna algo impessoal e trocado por dinheiro: “em vez de valer
por si, vale na troca” (p. 21). Vale ressaltar, porém, que a força de
trabalho representa uma mercadoria peculiar, na medida em que é a única
capaz de produzir valor superior àquele recebido a título de valor de
troca (salário). Aliás, é justamente esse mais-valor que constitui a
fonte de acumulação e reprodução do capital.
Quando o trabalho se torna mercadoria, as
diversas coisas por ele produzidas também assim se constituem, uma vez
que passam a apresentar um ponto de igualdade que as tornam
intercambiáveis: o fato de serem produtos do trabalho abstrato
(substância do valor). Mas o que determina a noção de equivalência –
igualdade entre coisas diferentes – é grandeza do valor, dada pelo tempo
de trabalho abstrato socialmente necessário à produção da mercadoria.
É, destarte, o trabalho sob condições de produção capitalistas que
constitui a substância formadora de valor, o qual se apresenta sempre de
modo relacional, possibilitando equivalências quando as mercadorias
confrontadas apresentarem a mesma grandeza. Nos termos afirmados por
Karl Marx:
“O valor de uma mercadoria está para o
valor de qualquer outra mercadoria assim como o tempo de trabalho
[socialmente] necessário para a produção de uma está para o tempo de
trabalho [socialmente] necessário para a produção de outra. ‘Como
valores, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo
de trabalho cristalizado’.”
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, p. 163.
Por conseguinte, o valor não constitui
uma qualidade ínsita às mercadorias, “porque somente se estabelece na
equivalência de todas as mercadorias entre si, o que só é possível com a
genérica valoração do trabalho” (Estado e forma política,
p. 21). Com a universalização do trabalho abstrato, a forma-mercadoria
atinge seu ápice, determinando todas as relações sociais.4 Assim, todas as coisas e pessoas assumem um valor de troca, que passa a ser referenciado pela forma-dinheiro.
A determinação da forma-mercadoria erige
um modelo de circulação e troca fundado na equivalência. As transações
mercantis somente se consumam quando há igualdade quantitativa entre os
valores das mercadorias confrontadas, bem como igualdade qualitativa
entre os seus possuidores. Em outras palavras, a troca condiciona-se ao
intercâmbio de “coisas” da mesma grandeza, realizada por sujeitos que se
reconhecem como “guardiões de mercadorias”, cuja vontade reside na
materialização do valor de troca.
Se, no mercado, uma parte se apresentasse
como dominante ou hierarquicamente superior, as trocas seriam
suprimidas pelo domínio direto dos detentores do poder, prejudicando a
própria circulação de bens. O capitalismo não se estrutura a partir da
subjugação do trabalho e de seus produtos pela força ou pela tradição,
como se apresentavam as sociedades precedentes. Pelo contrário, a
acumulação operada pela forma-mercadoria exige relações de trocas entre
agentes que tomam forma de sujeitos de direito.5
Para que o trabalho se torne mercadoria e
seja vendido em troca de salário, capitalistas e trabalhadores devem
reconhecer-se, reciprocamente, como iguais e livres, dotados de
autonomia da vontade. Tal equivalência intersubjetiva forja a
subjetividade jurídica, possibilitando a vinculação mediante contrato,
por meio do qual se constituem as relações de produção.6
São, pois, os vínculos de compra e venda, realizados entre sujeitos de
direito, que permitem a exploração do trabalho assalariado e a
universalização da produção de mercadorias. A organização da
desigualdade opera justamente nos termos da igualdade formal e da
liberdade. Além disso, os liames jurídicos estruturam os circuitos
generalizados de troca de bens, pelos quais se acumulam os valores
concebidos pelo trabalhador no processo produtivo.
A forma-jurídica, destarte, deriva da
forma-mercadoria, uma vez que as trocas mercantis exigem que os agentes
transacionadores se convertam em sujeitos de direito (proprietários de
mercadorias, iguais e livres), aptos para contratar, assumindo
obrigações recíprocas7.
A subjetividade jurídica não constitui um instituto criado por normas
legais. Na realidade, trata-se de uma relação social engendrada pela
dinâmica do capitalismo. Nesse contexto, os indivíduos são interpelados
em sujeitos de direito e, por meio desta forma relacional, se submetem à
propriedade privada e aos específicos contornos dessa sociabilidade.
Por isso, Mascaro pontua que a sujeição se dá pelo direito.
Afinal, é por meio da forma-jurídica que o trabalhador se vende aos
detentores dos meios de produção para ser explorado. Ademais, é pelo direito
que uma parcela ínfima da população é reconhecida como dona legítima do
capital e da riqueza, enquanto a propriedade da maioria dos seres
humanos se restringe à sua força de trabalho.
Vale ressaltar que a igualdade e a
liberdade que permeiam as relações jurídicas de troca tornam-se o
substrato da ideologia burguesa, ocultando as características de classe
(desigualdades reais) e as constrições que operam sobre o trabalhador.
Não obstante, a forma-mercadoria e a
forma-jurídica não são suficientes para estruturar e reproduzir a
sociabilidade. A acumulação mediante exploração do trabalho assalariado,
a propriedade privada dos meios de produção e a circulação de
mercadorias requisitam a constituição de uma forma-política específica,
terceira perante as relações de produção e circulação.
No feudalismo e no escravismo, os poderes
político e econômico concentravam-se nas mãos da mesma classe, grupo ou
indivíduo. Os senhores feudais e de escravos, respectivamente,
determinavam as relações sociais de modo direto, controlando-as por meio
de seus caprichos. Para aqueles modos de produção, não se fazia
necessária a existência de um aparato político terceiro para assegurar
as interações sociais. O domínio e a exploração se materializavam sem
quaisquer intermediações.
No capitalismo, todavia, o poder político
se consolida em uma esfera distinta daquela reservada ao poder
econômico. Afinal, se a classe economicamente dominante fosse, também,
detentora imediata do poder político, o produto do trabalho seria
apreendido por meio da posse bruta ou da força, desfigurando os
pressupostos das trocas, que dariam lugar a relações de servidão ou
escravidão. A forma-política do capital, instaurada como Estado, deriva
da forma-mercadoria e, então, amolda-se aos modos relacionais por ela
delineados, consolidando específicas balizas políticas de socialização.
Na dinâmica relacional da mercadoria, é
preciso que um aparato terceiro, situado em uma esfera de poder alheia,
assegure os vínculos sociais, a propriedade privada e a concorrência
entre burgueses e trabalhadores e entre frações do capital. Além disso, a
existência da forma-política estatal oportuniza a constituição de um
mercado nacional, a realização de políticas infraestruturais em setores
estratégicos (muitas vezes não lucrativos), a repressão aos setores
sociais indesejados, o estabelecimento de relações diplomáticas
internacionais – que permitem a circulação de capitais etc. Garantindo a
intermediação universal das mercadorias e as condições mediatas para a
reprodução do capital, o Estado possibilita a existência da própria
sociabilidade capitalista (Alysson Mascaro, “Formas sociais, derivação e conformação”, Revista Debates, p. 11).
Sendo assim, o capitalismo estrutura,
necessariamente, um poder político estranho aos agentes concorrenciais. A
nomenclatura desse aparato, o nível de participação popular que ele
comporta, seu modo de organização, sua forma de governo e demais
peculiaridades, no entanto, são fatores contingentes. Fato é que, a
instância estatal é burguesa não pelo conteúdo de suas ações, mas em
razão de sua forma, derivada das relações de produção capitalistas.
Assim como é equivocado dizer que houve forma-política estatal em modos
de produção pretéritos, também não se revela adequado afirmar que a
captura do Estado pela esquerda faz dele um ente socialista. O Estado
surge no capitalismo e a ele se restringe, de tal sorte que seus talhes
atendem especificamente à valorização do valor.
A forma-política estatal se materializa
em instituições políticas concretas. Através desse processo, muitos
organismos são criados e, outros, reaproveitados de sociedades
anteriores. Mas o fato de haver instituições que existiram em tempos
remotos não significa que o Estado tenha sido criado a partir delas. Na
realidade, aquelas configurações políticas são readequadas às formas
sociais capitalistas, por meio de um “entrelaçamento estrutural”. Nesse
sentido, conforme exemplifica o filósofo Alysson Mascaro, o atual Senado
não corresponde ao Senado romano em termos materiais, funcionais e
estruturais. Embora tenha ocorrido o fenômeno do reaproveitamento, a
instituição moderna se constitui com fulcro em específicas formas de
reprodução (Estado e forma política, p. 32.).
Ademais, a relação entre forma-política e
sua corporificação em instituições não é lógica e tampouco realizada de
modo funcional. Tal dinâmica apresenta-se de modo factual e
contraditório, uma vez que é atravessada pela luta de classes e pelos
antagonismos entre grupos, frações de classe e indivíduos. É por isso
que não há como apontar para um arranjo institucional padrão que
corresponda à forma-política estatal. A depender da disposição das
classes, instituições democráticas podem ser estabelecidas, por exemplo.
Entretanto, crises de acumulação ou mudanças na condensação de forças
sociais podem erigir regimes ditatoriais e fascistas. Aliás, pode ser
que as próprias instituições, em certas ocasiões históricas, tornem-se
disfuncionais à valorização do valor, gerando crises. Enfim, a
concretude das formas se dá no terreno da história, no qual os
interesses das classes e grupos se chocam.
A despeito de ser forma social burguesa, o
Estado se materializa em instituições e aparelhos relativamente
autônomos. Isso significa que, embora jungido ao modo de produção
capitalista, do qual é derivado e dependente, o Estado apresenta um
espaço de poder no qual diferentes grupos e classes podem articular seus
projetos e promover câmbios intermediários. De qualquer modo, ainda que
segmentos de esquerda assumam o poder político, a condução estatal
estará fadada a prezar pelo crescimento do capital, pois é o aumento da
arrecadação tributária, pela majoração da acumulação, que concede base
orçamentária para políticas reformistas.
Capitalismo e formas sociais: conformação
A forma-jurídica e a forma-política não
são equivalentes e tampouco constituem monumentos que atuam de forma
autônoma. Também não se pode afirmar que uma daquelas formas crie a
outra. Embora singulares, elas possuem uma relação íntima, já que
derivam da mesma fonte (forma-mercadoria) e representam pilares que se
implicam na estruturação da sociedade capitalista.
Da categoria determinante das relações
capitalistas derivam, ao mesmo tempo, tanto a subjetividade jurídica dos
representantes das mercadorias, quanto um poder estatal a princípio
estranho aos agentes econômicos. Posteriormente ao estabelecimento pleno
das relações políticas e jurídicas do capitalismo, o Estado tende a
regulá-las, por meio de contornos normativos (“normas jurídicas”), o que
dá origem à legalidade.
Assim, a forma-política e a
forma-jurídica se ajustam mutuamente, em uma relação de “conformação” ou
“derivação secundária”. Por meio de tal fenômeno, a subjetividade
jurídica passa a ser chancelada pelo Estado, que lhe dá delineamentos
normativos específicos. Por exemplo, criam-se condições para a validade
do negócio jurídico; estabelece-se a capacidade civil, pela qual somente
a partir de determinada faixa etária pode-se firmar contratos
livremente; elaboram-se regras consumeristas etc. Da mesma forma, o
Estado passa a nortear suas atividades pelas regras jurídicas, sendo,
inclusive, tomado como sujeito de direito no plano das contratações
administrativas e internacionais (“Formas sociais, derivação e conformação”, Revista Debates, p. 14).
Historicamente, a emergência do “Estado
de direito” foi notada a partir do momento em que as relações sociais se
tornaram, em geral, jurídicas. Antes disso, era possível vislumbrar uma
forma-estatal em consolidação, mas desempenhando funções políticas
parcialmente alheias à forma jurídica incipiente, conforme se verificou
na Europa absolutista e no período da escravidão brasileira. Mas, a
partir do momento em que a mercadoria se universaliza, o Estado e o
direito tendem a acoplar-se tecnicamente, em um processo de adaptação.
Portanto, as formas política e jurídica
derivam da forma-mercadoria e, posteriormente, conformam-se mutuamente.
Nesse processo de conformação, os núcleos daquelas formas sociais são
necessariamente resguardados, uma vez que constituem estruturas
necessárias à reprodução do capital. De acordo com Mascaro, “a
conformação opera na quantidade da política e do direito, nunca na
qualidade de estatal ou jurídico” (Estado e forma política, p. 46).
O Estado, por exemplo, pode limitar a
relação jurídica de trabalho, instituindo normas específicas; mas jamais
poderá negar a própria subjetividade jurídica, pela qual trabalhadores e
capitalistas se vinculam com fulcro em sua liberdade e igualdade
formal. Dessa forma, é possível que o aparato político restrinja o
alcance da autonomia da vontade, mas não se revela possível, por
intermédio dele, suprimir a própria relação assalariada, dada pelo
núcleo da forma-jurídica. Caso contrário, o Estado atentaria contra a
reprodução do capitalismo e, por conseguinte, comprometeria a sua
própria existência. Nos mesmos termos, o jurídico não avança a ponto de
abolir o político, pois a supressão do Estado, o “intermediador
terceiro”, consubstanciaria uma anarquia capitalista autodestrutiva,
ineficaz à reprodução do tecido social. É por isso que os diversos
arranjos políticos que o capitalismo forjou durante a história (liberal,
ditatorial, exceção, fascista) ampliaram ou reduziram drasticamente os
direitos subjetivos e o alcance do Estado, mas em nenhum momento
violaram a forma-jurídica e a forma-política.
Com efeito, a visão de Mascaro refuta a lógica juspositivista,
segundo a qual a Constituição representa a norma mais importante e
basilar do ordenamento jurídico. Isso porque, é a subjetividade jurídica
e as relações privadas que asseguram a integridade da forma-mercadoria
e, portanto, da própria forma-política estatal. Dessa forma, são os
contornos normativos do Direito Civil que constituem o epicentro do
direito burguês. Inclusive, diariamente os Estados infringem regras da
Constituição, mas assim não procedem em relação às diretrizes de seus
respectivos Códigos Civis (Estado e forma política, p. 48). O Direito Público, na verdade, é conformado a partir do (e com base no) núcleo privado de sociabilidade.
Considerações finais
A reflexão de Mascaro sobre a dinâmica
das formas sociais é um legado incontornável à teoria e à prática dos
nossos tempos. Seu pensamento jusfilosófico revela que a natureza do
direito e do Estado não é dada por instituições, mas pela sociabilidade
capitalista. O político e o jurídico são constituídos por relações
sociais materiais, derivadas da forma-mercadoria. São, pois, relações de
produção específicas que engendram, em última instância, aqueles
fenômenos sociais. Posteriormente, a forma-jurídica e a forma-política
se conformam, estabelecendo os horizontes normativos que consubstanciam o
“Estado de direito”.
Não é, portanto, o Estado que cria o
direito, valendo-se de normas jurídicas produzidas por atos de vontade
do legislador e em consonância com as conexões formais do ordenamento.
As relações jurídicas não são criações do “dever ser”. Afinal, não são
as categorias do pensamento que criam a realidade, e sim as formas
sociais, constituídas de modo histórico, relacional e social. São essas
formas, inclusive, que determinam a própria inteligibilidade dos
sujeitos. A legalidade, destarte, resulta da conformação entre
interações sociais já dadas no tecido social.
Sendo assim, não basta que a classe
trabalhadora tome o poder estatal e crie normas melhores, em prol dos
trabalhadores. Na realidade, o direito e o Estado são, ao mesmo tempo,
produtos e constituintes das relações capitalistas. Desse modo, não há
como depositar qualquer esperança de transformação social naqueles
arranjos, estruturados para reproduzir a acumulação mediante exploração
do trabalho assalariado. A partir de Mascaro, fica patente que a
emancipação humana se dá ao largo do direito e do Estado.
NOTAS
2 No que diz respeito à derivação, o professor Alysson Mascaro dialoga com a teoria da derivação do Estado, cujo principal expoente é o alemão Joachim Hirsch. Vale ressaltar que o debate a respeito da derivação do Estado foi sistematizado pelo professor e jusfilósofo Camilo Onoda Caldas. Ver Camilo Onoda Caldas, A teoria da derivação do Estado e do direito (São Paulo: Outras Expressões/Dobra, 2015).
3 “Ora, para que a forma mercadoria possa constituir o ponto de partida da investigação da estrutura econômica da sociedade capitalista, como ocorre na elaboração teórica de Marx, é preciso que esta forma tenha alcançado histórica e efetivamente o seu máximo desenvolvimento. Para que a forma mercadoria alcance o seu máximo desenvolvimento, é preciso que o trabalho abstrato tenha alcançado plena realidade, o que exige, por sua vez, que os trabalhadores tenham sido expropriados em massa dos meios de produção e que, com isso, sejam constrangidos a vender a sua força de trabalho como mercadoria para um pequeno número de detentores dos meios de produção. Neste preciso momento (que não é outro senão aquele em que a força de trabalho assume a forma mercadoria), a forma mercadoria mesma finalmente atinge a sua plena extensão. Só a partir daqui, a ‘riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar’.” Celso Naoto Kashiura Jr., Sujeito de direito e capitalismo. Tese de doutorado: Faculdade de Direito da USP. 2012, p 130.
4 “A abstração real que é a mercadoria se constitui, no processo de produção especificamente capitalista, como cristalização deste trabalho abstrato realizado na prática, isto é, como cristalização de um trabalho efetivamente abstrato. Mais do que a simples indiferença quanto às especificidades relativas ao valor de uso por conta da sobreposição do valor de troca na circulação mercantil, a produção especificamente capitalista gera, de modo dominante, mercadorias como consubstanciação de dispêndio efetivamente indiferente de energia do trabalhador por um certo tempo de trabalho, cujo sentido não é (senão mediatamente) produzir valores de uso, mas (precipuamente) atuar de modo muito determinado no processo de valorização do capital”. Celso Naoto Kashiura, cit., p. 134
5 Foi Evguiéni Pachukanis quem fundou a leitura do direito enquanto forma social de subjetividade jurídica. Ver Teoria geral do direito e marxismo (São Paulo, Boitempo, 2017).
6 Conforme alerta o professor Márcio Bilharinho Naves, a subjetividade jurídica não se constitui no âmbito da circulação simples de mercadorias, mas sim a partir da subsunção real do trabalho ao capital, quando a circulação passa a lastrear-se na produção tipicamente capitalista. Ver Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (São Paulo, Boitempo, 2001).
7 “Além dos direitos materiais e dos direitos subjetivos que lhes conformam, a forma jurídica se completa no processo judicial – este que é o suporte físico da forma jurídico-processual – precisamente quando a forma jurídica não é convalidada espontânea e naturalmente pelos sujeitos de direito. É a forma direito processual que operacionaliza a própria forma direito, seja quando esta última expressa diretamente o direito de propriedade, de liberdade ou de igualdade, isto é, quando corrobora a troca do dinheiro como equivalente universal do modo de produção capitalista, seja mesmo quando convalida quaisquer outros direitos materiais conjugados entre si.” Marcelo Gomes Franco Grillo, Direito processual e capitalismo, São Paulo, Outras Expressões, 2017.
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Victor Silveira Garcia Ferreira integra o grupo de pesquisa “Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica” (USP).
in Blog da Editorial Boitempo, Brasil, com a devida vénia
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