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sábado, 25 de julho de 2020

A dinâmica das formas: derivação e conformação em Alysson Mascaro

Não basta que a classe trabalhadora tome o poder estatal e crie normas melhores, em prol dos trabalhadores. Na realidade, o direito e o Estado são, ao mesmo tempo, produtos e constituintes das relações capitalistas. A partir de Mascaro, fica patente que a emancipação humana se dá ao largo do direito e do Estado.

Alysson Leandro Mascaro (Foto: Artur Renzo).

Por Victor Silveira Garcia Ferreira.

De acordo com a classificação didática formulada pelo jusfilósofo Alysson Mascaro, a filosofia do direito contemporânea pode ser arregimentada em três grandes eixos, dimensionados com base em referenciais e horizontes gerais. O primeiro deles é o juspositivismo, que se assenta na legitimação do direito positivo e das instituições políticas e jurídicas liberais. O segundo caminho filosófico é representado pelo não juspositivismo, calcado em uma visão realista, que identifica o fenômeno jurídico não na manifestação da normatividade estatal, mas sobretudo nas relações de poder, subjacentes ao “direito posto”. O terceiro grande quadrante, por sua vez, é intitulado crítico, pelo fato de ser erigido pelo marxismo.1 Este último eixo tem o mérito de aprofundar o entendimento das estruturas de poder e, ainda, identificar suas determinações materiais, situando as relações jurídicas na totalidade social.

Dentre as vertentes apresentadas, o juspositivismo, principalmente em sua faceta estrita ou reducionista, constitui o caminho filosófico mais reproduzido no âmbito das instituições. Por razões históricas e estruturais, o ambiente jurídico é atravessado pela perspectiva teórica institucionalista e conservadora, de tal sorte que os juristas, em geral, se convertem em operadores técnicos, indiferentes às contradições sociais.
Assim, prevalece a concepção de que o direito seria “uma esfera autônoma, imediatamente dada e limitada pelas normas estatais” (Estado e forma política, p. 278). Por ser o direito reduzido às normas estatais, a ciência jurídica não se estrutura para ocupar-se do “ser”, mas tão somente das conexões do “dever-ser”. Desse modo, as normas jurídicas são consideradas o fundamento do direito e, por conseguinte, passam a ser tratadas de forma recortada da realidade social. Essa visão reducionista e desprovida de respaldo histórico enseja a compreensão de que o Estado e o direito são inexoráveis a qualquer sociabilidade.
O pensamento de Alysson Mascaro, na esteira do marxismo, infirma os postulados teóricos dominantes. Sua leitura filosófica crítica inverte a lógica analítica do juspositivismo, uma vez que identifica a materialidade do direito em relações sociais específicas, situadas em um “ser” histórico. O direito e o Estado deixam de ser tomados de modo institucional e, então, passam a ser compreendidos a partir das formas sociais do capitalismo. Nesse diapasão, a reflexão de Mascaro acerca das formas inova a filosofia e as ciências sociais contemporâneas com duas grandes contribuições: a dinâmica entre as formas sociais (derivação)2 e a relação, também dinâmica, entre elas (conformação).

Capitalismo e formas sociais: derivação

No modo de produção capitalista, as interações sociais assumem formas relacionais específicas, diferentes daquelas que caracterizaram as formações sociais pretéritas (escravismo e feudalismo, por exemplo). A específica forma de sociabilidade do capital é determinada por abstrações relacionais impositivas, que constringem os sujeitos de modo independente da vontade individual, grupal ou de classe. Isso significa que há certas balizas necessárias, historicamente determinadas, que constituem as relações sociais, erigindo princípios de socialização, chamados de “formas sociais”. Estas advêm de relações sociais históricas e consolidam, objetivamente, modos relacionais fundamentais à sua própria reprodução. Assim, as formas sociais determinam a percepção e os comportamentos gerais dos indivíduos, os quais, por sua vez, reiteram os vínculos necessários à reprodução do capitalismo.
A forma social nuclear do capitalismo é a forma-mercadoria. Conforme esclarece Mascaro, “tudo e todos valem num processo de trocas, tornando-se, pois, mercadoria” (Estado e forma política, p. 18). A forma-mercadoria é constituída pela generalização das trocas e da noção de equivalência. Todas as coisas se transformam em bens passíveis de troca, de tal sorte que aquela forma social passa a configurar a totalidade das relações sociais, forjando um circuito total de transações.
A estruturação da sociabilidade pela forma-mercadoria é regida pela forma-valor, a qual opera a produção e as trocas mercantis. A mercadoria somente se constitui como tal porque é trocada por um equivalente. Mas, antes, as trocas somente se consumam porque há, entre coisas distintas, um dado de igualdade genérica, qual seja, o valor. A sociabilidade em apreço não se estrutura pela troca de utilidades (“valores de uso”), mas sim pelo valor de troca: as coisas não valem pelo que são, mas por aquilo pelo qual são trocadas. São, destarte, os parâmetros do valor que permitem a equivalência entre mercadorias e as relações de troca. O valor é o elemento comum, que estabelece uma relação de grandeza entre coisas diferentes. Mas de onde surge o valor?
A substância do valor é dada a partir do momento em que o trabalho se torna “abstrato”. Com a subsunção real do trabalho ao capital, os ofícios deixam de depender exclusivamente de caprichos, habilidades, capacidades artesanais e conhecimentos diferenciados do trabalhador. O processo de trabalho, apropriado pelo capital, torna-se operacional e regrado por métricas produtivas (com base no tempo), fazendo dos operários uma geleia de trabalho homogênea, plenamente substituível em cada ramificação da divisão social do trabalho. O trabalhador, assim, deixa de ser valorado com base em suas qualidades intrínsecas e converte-se em mero dispêndio de força produtiva, tornando-se abstrato (indiferenciado). E, desprovido dos meios de produção, é compelido a vender sua energia indiferenciada para o capital, retroalimentando a produção3. Nesse movimento, o próprio trabalho generaliza-se como mercadoria, dado que se torna algo impessoal e trocado por dinheiro: “em vez de valer por si, vale na troca” (p. 21). Vale ressaltar, porém, que a força de trabalho representa uma mercadoria peculiar, na medida em que é a única capaz de produzir valor superior àquele recebido a título de valor de troca (salário). Aliás, é justamente esse mais-valor que constitui a fonte de acumulação e reprodução do capital.
Quando o trabalho se torna mercadoria, as diversas coisas por ele produzidas também assim se constituem, uma vez que passam a apresentar um ponto de igualdade que as tornam intercambiáveis: o fato de serem produtos do trabalho abstrato (substância do valor). Mas o que determina a noção de equivalência – igualdade entre coisas diferentes – é grandeza do valor, dada pelo tempo de trabalho abstrato socialmente necessário à produção da mercadoria. É, destarte, o trabalho sob condições de produção capitalistas que constitui a substância formadora de valor, o qual se apresenta sempre de modo relacional, possibilitando equivalências quando as mercadorias confrontadas apresentarem a mesma grandeza. Nos termos afirmados por Karl Marx:
“O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra mercadoria assim como o tempo de trabalho [socialmente] necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho [socialmente] necessário para a produção de outra. ‘Como valores, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado’.”
Karl Marx, O capital: crítica da economia política, p. 163.
Por conseguinte, o valor não constitui uma qualidade ínsita às mercadorias, “porque somente se estabelece na equivalência de todas as mercadorias entre si, o que só é possível com a genérica valoração do trabalho” (Estado e forma política, p. 21). Com a universalização do trabalho abstrato, a forma-mercadoria atinge seu ápice, determinando todas as relações sociais.4 Assim, todas as coisas e pessoas assumem um valor de troca, que passa a ser referenciado pela forma-dinheiro.
A determinação da forma-mercadoria erige um modelo de circulação e troca fundado na equivalência. As transações mercantis somente se consumam quando há igualdade quantitativa entre os valores das mercadorias confrontadas, bem como igualdade qualitativa entre os seus possuidores. Em outras palavras, a troca condiciona-se ao intercâmbio de “coisas” da mesma grandeza, realizada por sujeitos que se reconhecem como “guardiões de mercadorias”, cuja vontade reside na materialização do valor de troca.
Se, no mercado, uma parte se apresentasse como dominante ou hierarquicamente superior, as trocas seriam suprimidas pelo domínio direto dos detentores do poder, prejudicando a própria circulação de bens. O capitalismo não se estrutura a partir da subjugação do trabalho e de seus produtos pela força ou pela tradição, como se apresentavam as sociedades precedentes. Pelo contrário, a acumulação operada pela forma-mercadoria exige relações de trocas entre agentes que tomam forma de sujeitos de direito.5
Para que o trabalho se torne mercadoria e seja vendido em troca de salário, capitalistas e trabalhadores devem reconhecer-se, reciprocamente, como iguais e livres, dotados de autonomia da vontade. Tal equivalência intersubjetiva forja a subjetividade jurídica, possibilitando a vinculação mediante contrato, por meio do qual se constituem as relações de produção.6 São, pois, os vínculos de compra e venda, realizados entre sujeitos de direito, que permitem a exploração do trabalho assalariado e a universalização da produção de mercadorias. A organização da desigualdade opera justamente nos termos da igualdade formal e da liberdade. Além disso, os liames jurídicos estruturam os circuitos generalizados de troca de bens, pelos quais se acumulam os valores concebidos pelo trabalhador no processo produtivo.
A forma-jurídica, destarte, deriva da forma-mercadoria, uma vez que as trocas mercantis exigem que os agentes transacionadores se convertam em sujeitos de direito (proprietários de mercadorias, iguais e livres), aptos para contratar, assumindo obrigações recíprocas7. A subjetividade jurídica não constitui um instituto criado por normas legais. Na realidade, trata-se de uma relação social engendrada pela dinâmica do capitalismo. Nesse contexto, os indivíduos são interpelados em sujeitos de direito e, por meio desta forma relacional, se submetem à propriedade privada e aos específicos contornos dessa sociabilidade. Por isso, Mascaro pontua que a sujeição se dá pelo direito. Afinal, é por meio da forma-jurídica que o trabalhador se vende aos detentores dos meios de produção para ser explorado. Ademais, é pelo direito que uma parcela ínfima da população é reconhecida como dona legítima do capital e da riqueza, enquanto a propriedade da maioria dos seres humanos se restringe à sua força de trabalho.
Vale ressaltar que a igualdade e a liberdade que permeiam as relações jurídicas de troca tornam-se o substrato da ideologia burguesa, ocultando as características de classe (desigualdades reais) e as constrições que operam sobre o trabalhador.
Não obstante, a forma-mercadoria e a forma-jurídica não são suficientes para estruturar e reproduzir a sociabilidade. A acumulação mediante exploração do trabalho assalariado, a propriedade privada dos meios de produção e a circulação de mercadorias requisitam a constituição de uma forma-política específica, terceira perante as relações de produção e circulação.
No feudalismo e no escravismo, os poderes político e econômico concentravam-se nas mãos da mesma classe, grupo ou indivíduo. Os senhores feudais e de escravos, respectivamente, determinavam as relações sociais de modo direto, controlando-as por meio de seus caprichos. Para aqueles modos de produção, não se fazia necessária a existência de um aparato político terceiro para assegurar as interações sociais. O domínio e a exploração se materializavam sem quaisquer intermediações.
No capitalismo, todavia, o poder político se consolida em uma esfera distinta daquela reservada ao poder econômico. Afinal, se a classe economicamente dominante fosse, também, detentora imediata do poder político, o produto do trabalho seria apreendido por meio da posse bruta ou da força, desfigurando os pressupostos das trocas, que dariam lugar a relações de servidão ou escravidão. A forma-política do capital, instaurada como Estado, deriva da forma-mercadoria e, então, amolda-se aos modos relacionais por ela delineados, consolidando específicas balizas políticas de socialização.
Na dinâmica relacional da mercadoria, é preciso que um aparato terceiro, situado em uma esfera de poder alheia, assegure os vínculos sociais, a propriedade privada e a concorrência entre burgueses e trabalhadores e entre frações do capital. Além disso, a existência da forma-política estatal oportuniza a constituição de um mercado nacional, a realização de políticas infraestruturais em setores estratégicos (muitas vezes não lucrativos), a repressão aos setores sociais indesejados, o estabelecimento de relações diplomáticas internacionais – que permitem a circulação de capitais etc. Garantindo a intermediação universal das mercadorias e as condições mediatas para a reprodução do capital, o Estado possibilita a existência da própria sociabilidade capitalista (Alysson Mascaro, “Formas sociais, derivação e conformação”, Revista Debates, p. 11).
Sendo assim, o capitalismo estrutura, necessariamente, um poder político estranho aos agentes concorrenciais. A nomenclatura desse aparato, o nível de participação popular que ele comporta, seu modo de organização, sua forma de governo e demais peculiaridades, no entanto, são fatores contingentes. Fato é que, a instância estatal é burguesa não pelo conteúdo de suas ações, mas em razão de sua forma, derivada das relações de produção capitalistas. Assim como é equivocado dizer que houve forma-política estatal em modos de produção pretéritos, também não se revela adequado afirmar que a captura do Estado pela esquerda faz dele um ente socialista. O Estado surge no capitalismo e a ele se restringe, de tal sorte que seus talhes atendem especificamente à valorização do valor.
A forma-política estatal se materializa em instituições políticas concretas. Através desse processo, muitos organismos são criados e, outros, reaproveitados de sociedades anteriores. Mas o fato de haver instituições que existiram em tempos remotos não significa que o Estado tenha sido criado a partir delas. Na realidade, aquelas configurações políticas são readequadas às formas sociais capitalistas, por meio de um “entrelaçamento estrutural”. Nesse sentido, conforme exemplifica o filósofo Alysson Mascaro, o atual Senado não corresponde ao Senado romano em termos materiais, funcionais e estruturais. Embora tenha ocorrido o fenômeno do reaproveitamento, a instituição moderna se constitui com fulcro em específicas formas de reprodução (Estado e forma política, p. 32.).
Ademais, a relação entre forma-política e sua corporificação em instituições não é lógica e tampouco realizada de modo funcional. Tal dinâmica apresenta-se de modo factual e contraditório, uma vez que é atravessada pela luta de classes e pelos antagonismos entre grupos, frações de classe e indivíduos. É por isso que não há como apontar para um arranjo institucional padrão que corresponda à forma-política estatal. A depender da disposição das classes, instituições democráticas podem ser estabelecidas, por exemplo. Entretanto, crises de acumulação ou mudanças na condensação de forças sociais podem erigir regimes ditatoriais e fascistas. Aliás, pode ser que as próprias instituições, em certas ocasiões históricas, tornem-se disfuncionais à valorização do valor, gerando crises. Enfim, a concretude das formas se dá no terreno da história, no qual os interesses das classes e grupos se chocam.
A despeito de ser forma social burguesa, o Estado se materializa em instituições e aparelhos relativamente autônomos. Isso significa que, embora jungido ao modo de produção capitalista, do qual é derivado e dependente, o Estado apresenta um espaço de poder no qual diferentes grupos e classes podem articular seus projetos e promover câmbios intermediários. De qualquer modo, ainda que segmentos de esquerda assumam o poder político, a condução estatal estará fadada a prezar pelo crescimento do capital, pois é o aumento da arrecadação tributária, pela majoração da acumulação, que concede base orçamentária para políticas reformistas.

Capitalismo e formas sociais: conformação

A forma-jurídica e a forma-política não são equivalentes e tampouco constituem monumentos que atuam de forma autônoma. Também não se pode afirmar que uma daquelas formas crie a outra. Embora singulares, elas possuem uma relação íntima, já que derivam da mesma fonte (forma-mercadoria) e representam pilares que se implicam na estruturação da sociedade capitalista.
Da categoria determinante das relações capitalistas derivam, ao mesmo tempo, tanto a subjetividade jurídica dos representantes das mercadorias, quanto um poder estatal a princípio estranho aos agentes econômicos. Posteriormente ao estabelecimento pleno das relações políticas e jurídicas do capitalismo, o Estado tende a regulá-las, por meio de contornos normativos (“normas jurídicas”), o que dá origem à legalidade.
Assim, a forma-política e a forma-jurídica se ajustam mutuamente, em uma relação de “conformação” ou “derivação secundária”. Por meio de tal fenômeno, a subjetividade jurídica passa a ser chancelada pelo Estado, que lhe dá delineamentos normativos específicos. Por exemplo, criam-se condições para a validade do negócio jurídico; estabelece-se a capacidade civil, pela qual somente a partir de determinada faixa etária pode-se firmar contratos livremente; elaboram-se regras consumeristas etc. Da mesma forma, o Estado passa a nortear suas atividades pelas regras jurídicas, sendo, inclusive, tomado como sujeito de direito no plano das contratações administrativas e internacionais (“Formas sociais, derivação e conformação”, Revista Debates, p. 14).
Historicamente, a emergência do “Estado de direito” foi notada a partir do momento em que as relações sociais se tornaram, em geral, jurídicas. Antes disso, era possível vislumbrar uma forma-estatal em consolidação, mas desempenhando funções políticas parcialmente alheias à forma jurídica incipiente, conforme se verificou na Europa absolutista e no período da escravidão brasileira. Mas, a partir do momento em que a mercadoria se universaliza, o Estado e o direito tendem a acoplar-se tecnicamente, em um processo de adaptação.
Portanto, as formas política e jurídica derivam da forma-mercadoria e, posteriormente, conformam-se mutuamente. Nesse processo de conformação, os núcleos daquelas formas sociais são necessariamente resguardados, uma vez que constituem estruturas necessárias à reprodução do capital. De acordo com Mascaro, “a conformação opera na quantidade da política e do direito, nunca na qualidade de estatal ou jurídico” (Estado e forma política, p. 46).
O Estado, por exemplo, pode limitar a relação jurídica de trabalho, instituindo normas específicas; mas jamais poderá negar a própria subjetividade jurídica, pela qual trabalhadores e capitalistas se vinculam com fulcro em sua liberdade e igualdade formal. Dessa forma, é possível que o aparato político restrinja o alcance da autonomia da vontade, mas não se revela possível, por intermédio dele, suprimir a própria relação assalariada, dada pelo núcleo da forma-jurídica. Caso contrário, o Estado atentaria contra a reprodução do capitalismo e, por conseguinte, comprometeria a sua própria existência. Nos mesmos termos, o jurídico não avança a ponto de abolir o político, pois a supressão do Estado, o “intermediador terceiro”, consubstanciaria uma anarquia capitalista autodestrutiva, ineficaz à reprodução do tecido social. É por isso que os diversos arranjos políticos que o capitalismo forjou durante a história (liberal, ditatorial, exceção, fascista) ampliaram ou reduziram drasticamente os direitos subjetivos e o alcance do Estado, mas em nenhum momento violaram a forma-jurídica e a forma-política.
Com efeito, a visão de Mascaro refuta a lógica juspositivista, segundo a qual a Constituição representa a norma mais importante e basilar do ordenamento jurídico. Isso porque, é a subjetividade jurídica e as relações privadas que asseguram a integridade da forma-mercadoria e, portanto, da própria forma-política estatal. Dessa forma, são os contornos normativos do Direito Civil que constituem o epicentro do direito burguês. Inclusive, diariamente os Estados infringem regras da Constituição, mas assim não procedem em relação às diretrizes de seus respectivos Códigos Civis (Estado e forma política, p. 48). O Direito Público, na verdade, é conformado a partir do (e com base no) núcleo privado de sociabilidade.

Considerações finais

A reflexão de Mascaro sobre a dinâmica das formas sociais é um legado incontornável à teoria e à prática dos nossos tempos. Seu pensamento jusfilosófico revela que a natureza do direito e do Estado não é dada por instituições, mas pela sociabilidade capitalista. O político e o jurídico são constituídos por relações sociais materiais, derivadas da forma-mercadoria. São, pois, relações de produção específicas que engendram, em última instância, aqueles fenômenos sociais. Posteriormente, a forma-jurídica e a forma-política se conformam, estabelecendo os horizontes normativos que consubstanciam o “Estado de direito”.
Não é, portanto, o Estado que cria o direito, valendo-se de normas jurídicas produzidas por atos de vontade do legislador e em consonância com as conexões formais do ordenamento. As relações jurídicas não são criações do “dever ser”. Afinal, não são as categorias do pensamento que criam a realidade, e sim as formas sociais, constituídas de modo histórico, relacional e social. São essas formas, inclusive, que determinam a própria inteligibilidade dos sujeitos. A legalidade, destarte, resulta da conformação entre interações sociais já dadas no tecido social.
Sendo assim, não basta que a classe trabalhadora tome o poder estatal e crie normas melhores, em prol dos trabalhadores. Na realidade, o direito e o Estado são, ao mesmo tempo, produtos e constituintes das relações capitalistas. Desse modo, não há como depositar qualquer esperança de transformação social naqueles arranjos, estruturados para reproduzir a acumulação mediante exploração do trabalho assalariado. A partir de Mascaro, fica patente que a emancipação humana se dá ao largo do direito e do Estado.
NOTAS
1 Ver Alysson Leandro Mascaro, Filosofia do direito (São Paulo: Atlas, 2018), p. 316.
2 No que diz respeito à derivação, o professor Alysson Mascaro dialoga com a teoria da derivação do Estado, cujo principal expoente é o alemão Joachim Hirsch. Vale ressaltar que o debate a respeito da derivação do Estado foi sistematizado pelo professor e jusfilósofo Camilo Onoda Caldas. Ver Camilo Onoda Caldas, A teoria da derivação do Estado e do direito (São Paulo: Outras Expressões/Dobra, 2015).
3 “Ora, para que a forma mercadoria possa constituir o ponto de partida da investigação da estrutura econômica da sociedade capitalista, como ocorre na elaboração teórica de Marx, é preciso que esta forma tenha alcançado histórica e efetivamente o seu máximo desenvolvimento. Para que a forma mercadoria alcance o seu máximo desenvolvimento, é preciso que o trabalho abstrato tenha alcançado plena realidade, o que exige, por sua vez, que os trabalhadores tenham sido expropriados em massa dos meios de produção e que, com isso, sejam constrangidos a vender a sua força de trabalho como mercadoria para um pequeno número de detentores dos meios de produção. Neste preciso momento (que não é outro senão aquele em que a força de trabalho assume a forma mercadoria), a forma mercadoria mesma finalmente atinge a sua plena extensão. Só a partir daqui, a ‘riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar’.” Celso Naoto Kashiura Jr., Sujeito de direito e capitalismo. Tese de doutorado: Faculdade de Direito da USP. 2012, p 130.
4 “A abstração real que é a mercadoria se constitui, no processo de produção especificamente capitalista, como cristalização deste trabalho abstrato realizado na prática, isto é, como cristalização de um trabalho efetivamente abstrato. Mais do que a simples indiferença quanto às especificidades relativas ao valor de uso por conta da sobreposição do valor de troca na circulação mercantil, a produção especificamente capitalista gera, de modo dominante, mercadorias como consubstanciação de dispêndio efetivamente indiferente de energia do trabalhador por um certo tempo de trabalho, cujo sentido não é (senão mediatamente) produzir valores de uso, mas (precipuamente) atuar de modo muito determinado no processo de valorização do capital”. Celso Naoto Kashiura, cit., p. 134
5 Foi Evguiéni Pachukanis quem fundou a leitura do direito enquanto forma social de subjetividade jurídica. Ver Teoria geral do direito e marxismo (São Paulo, Boitempo, 2017).
6 Conforme alerta o professor Márcio Bilharinho Naves, a subjetividade jurídica não se constitui no âmbito da circulação simples de mercadorias, mas sim a partir da subsunção real do trabalho ao capital, quando a circulação passa a lastrear-se na produção tipicamente capitalista. Ver Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (São Paulo, Boitempo, 2001).
7 “Além dos direitos materiais e dos direitos subjetivos que lhes conformam, a forma jurídica se completa no processo judicial – este que é o suporte físico da forma jurídico-processual – precisamente quando a forma jurídica não é convalidada espontânea e naturalmente pelos sujeitos de direito. É a forma direito processual que operacionaliza a própria forma direito, seja quando esta última expressa diretamente o direito de propriedade, de liberdade ou de igualdade, isto é, quando corrobora a troca do dinheiro como equivalente universal do modo de produção capitalista, seja mesmo quando convalida quaisquer outros direitos materiais conjugados entre si.” Marcelo Gomes Franco Grillo, Direito processual e capitalismo, São Paulo, Outras Expressões, 2017.
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Victor Silveira Garcia Ferreira integra o grupo de pesquisa “Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica” (USP).

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