Roswitha Scholz e a Crítica do Valor: um novo marxismo feminista
A assim denominada atualmente “Nova
crítica do valor” (tradução de Wertkritik) surgiu em 1986, organizada em
torno da leitura da obra do Professor de Chicago Moishe Postone, e logo
tomou os contornos de um fórum, a fim de elaborar uma crítica radical
da sociedade que se reproduz sob as determinações da valorização
capitalista, cuja produção se materializou na edição da revista Krisis,
publicada desde 1987.
O grupo obteve notoriedade em 1999, com
publicação do “Manifesto contra o Trabalho”, escrito por Robert Kurz,
Ernst Lohoff e Norbert Trenkle. Em 2003, o filósofo Anselm Jappe, em seu
livro “As aventuras da mercadoria – para uma nova crítica do valor”,
apresentou os desenvolvimentos teóricos desses autores, divulgando ainda
mais os debates da Wertkritik. O grupo Krisis original
operava como um fórum catalisador dos debates, entre outras funções,
como a de angariar fundos para financiar a produção do grupo.
Pode-se dizer que o pioneiro a elaborar
uma revisão do trabalho abstrato e da categoria do valor, em Marx, foi
Moishe Postone, em 1978, e que a Wertkritik desponta a partir
de seu pensamento. No texto intitulado “Necessidade, Tempo e Trabalho”,
Postone inaugura a problematização sobre os equívocos do marxismo
tradicional. Como o capitalismo se estrutura num livre-mercado,
possibilitando o desenvolvimento do capitalismo industrial, suas
condições intrínsecas de acumulação, competição e crises originaram
técnicas de planejamento centralizado, concentração urbana de
proletariado industrial, centralização e concentração dos meios de
produção, separação entre direito formal à posse e posse real etc.
Tais técnicas, típicas da produção
industrial, criaram um grau de riqueza inimaginável até então,
distribuída de forma brutalmente desigual. Diante desse quadro, o
marxismo a que Postone chama de “tradicional” vislumbrou a possibilidade
de um novo modo de distribuição, justo e conscientemente regulado. Por
isso, embora os marxistas pareçam ter uma teoria da produção social, o
que realmente fazem é uma crítica histórica do modo de distribuição.
(POSTONE, 1978).
Dessa forma, em Moishe Postone (1978),
para que o marxismo seja retomado sem os equívocos tradicionais de se
centrar no aspecto da distribuição, precisa ser relido. Essa falha,
segundo ele, não pode ser atribuída a Marx, mas sim à sua má
interpretação. Revisitando o Grundrisse, Postone assevera que
Marx sabia da centralidade do trabalho quando afirmava que todo o modo
de produção capitalista está fundamentado no trabalho assalariado.
Segundo ele, Marx já considerava o valor como centro da produção
burguesa e sabia que as relações de valor ocorrem na produção em si, e
não apenas na circulação e na distribuição (POSTONE, 1978).
Por isso, para Roswitha Scholz, Postone é
um clássico da crítica do valor fundamental, mesmo que nunca tenha
usado essa expressão (SCHOLZ, 2014). Na proposta de Postone (1978),
valor e trabalho são o fundamento do mais-valor e, consequentemente, do
capital, de modo que o trabalho não pode ser considerado trans-histórico
– equívoco do marxismo tradicional. Segundo Scholz (2014), assim,
Postone considera que valor e trabalho são importantes apenas para a
socialização capitalista, de modo que a mercadoria é o ponto de partida
de análise do capital como forma social (dado que valor e trabalho são
raízes do mais-valor), objetiva e subjetiva e, por isso, é fundamento
tanto da sua visão econômica quanto de sua visão sociológica.
A teoria crítica do valor fundamental
parte da leitura de Postone e desenvolve seu debate inaugural com o
texto “Manifesto contra o trabalho”, escrito por Robert Kurz, Ernst
Lohoff e Norbert Trenkle, e publicado no último dia de 1999. A partir da
sua compreensão de “trabalho”, os integrantes do então grupo Krisis
delineam uma “nova” crítica do “valor”. Nesse manifesto, os autores
denunciam que vivemos em uma sociedade dominada pelo trabalho, embora o
trabalho esteja se tornando cada vez mais escasso. Aí, segundo eles,
reside uma evidente perversidade, pois quanto mais o trabalho humano vai
se tornando dispensável, mais os discursos de que quem não trabalha é
indigno se adensam (KURZ, LOHOFF, TRENKLE, 1999).
Essa obstinação pelo trabalho, além da
óbvia precarização e perda de direitos, também é responsável pela
ampliação de novas formas de exploração (como terceirizações, e
mascaramentos de vínculo empregatício como prestação de serviços ou
divisão de proventos), bem como, inclusive, pela panaceia do
empreendedorismo (cada vez mais doentia). Segundo a crítica do valor, a
sociedade do trabalho chegou ao fim, e “se recalca na consciência
pública”, com a mitificação do trabalho como único meio de garantir a
integridade humana, em nome do que tudo se justifica (KURZ, LOHOFF,
TRENKLE, 1999).
Para eles, a verdade é que a categoria
“trabalho”, do ponto de vista objetivo, esgotou-se, por conta da
supremacia da valorização do valor através do capitalismo financeiro em
todo o planeta. O trabalho morto está sendo espremido até a última gota
pelo capitalismo de cassino para gerar valor, o que não tem limites,
vide a loucura especulativa baseada em suposições, boatos e sorte. Deste
modo, o trabalho vivo torna-se cada vez mais obsoleto, ao passo que é
dito às trabalhadoras e aos trabalhadores que não podem parar de
trabalhar jamais, pois, do contrário, não comem, não convivem em
sociedade, não moram, não vestem, não se locomovem etc., enfim, não
existem.
Para compreendermos a raiz de sua
crítica, é preciso assinalar que o que entendem por trabalho é uma
categoria abstrata exclusiva do modo de produção capitalista. Esse
trabalho a que se referem não é qualquer atividade humana capaz de
intervir no entorno e transformar a realidade externa ao sujeito. O
trabalho contra o qual a Wertkritik se manifesta é o trabalho
social medido em tempo empregado na produção, que pode ser tratado como
mercadoria. É o trabalho que se encaixa na forma mercantil, tal qual
qualquer outra mercadoria, e pode ser mensurado pela forma-dinheiro,
precificado. O capitalismo é que criou essa categoria abstrata:
trabalho. Antes, o que havia eram atividades humanas diversas.
O trabalho do modo produtivo capitalista
não é, então, identificado com qualquer atividade humana. É mercadoria.
E, além disso, para que se caracterize o trabalho (enquanto categoria
abstrata do capitalismo), ele precisa reproduzir o capital, isto é,
gerar mais capital para o capital (KURZ, LOHOFF, TRENKLE, 1999). Isso,
na terminologia da Wertkritik, significa gerar valor, valorizar
o valor; ou, na terminologia marxiana tradicional, estamos tratando do
trabalho que é capaz de gerar mais-valor (ou mais-valia).
O trabalho abstrato correspondente à
forma do valor também assume uma forma social. Uma vez que o trabalho
deixa de ser relação material dos indivíduos com o entorno a fim de
intervir e transformar, e se desdobra nessa categoria metafísica, todas
as relações sociais são mediadas pelas abstrações do modo de produção. A
intelecção de Marx pela crítica do valor afirma que as relações
concretas entre pessoas reais são suplantadas pelas relações entre a
forma-valor, a forma-dinheiro e a forma-mercadoria. O valor, por fim, é
uma fantasmagoria. Desse modo, o fetichismo não é, para a crítica do
valor, um fenômeno psíquico ou sociológico, mas está inserto na
produção.
Na sociedade burguesa, as pessoas
convertem-se em produtoras individuais, ao passo que as relações sociais
dão-se através das mercadorias, pela quantidade abstrata de valor que
representam. Há uma distorção da realidade, que dessubjetiva os seres
humanos, e anima a mercadoria. Isso é o fetichismo. O fetichismo seria,
portanto, o fenômeno pelo qual as relações sociais se amoldam na
forma-mercadoria (KURZ, 2004, p. 221), conferindo às mercadorias uma
capacidade de interação como se fossem vivas (por isso, “sociedade das
mercadorias”) . A valorização do valor precisa “animar” a mercadoria
para que se estabeleçam as abstrações categoriais que marcam a sociedade
capitalista (como o trabalho, a forma-mercadoria, a forma-dinheiro e a
forma-valor).
Essa relação independe da vontade
concreta dos sujeitos, pois a própria valorização do valor é um processo
automático, que não requer nenhuma vontade ou controle das pessoas. Por
isso, o modo de produzir do capitalismo, ou seja, a maneira como gera
valor, é que é fetichista por si só.
O fetichismo não precisa advir das
relações de consumo, através da quais os sujeitos procuram compensar
vazios pessoais pela aquisição de mercadorias, não deriva de processos
psíquicos humanos e nem se confunde com a sobreposição axiológica da
importância das coisas sobre as vidas humanas, embora a sociedade
burguesa experimente todos esses fenômenos também, como consequência do
fetichismo. Em verdade, o fetichismo nasce da abstração categorial
imprescindível para a produção de valor (formas sociais), de modo que
não se o pode eliminar pela vontade (ou voluntarismo) dos seres humanos.
O fetichismo só acaba, para dar lugar à emancipação, se o processo
produtor de valor cessar.
Sendo assim, para a Wertkritik, a
verdadeira crítica é radical: não convive com meios-termos e propostas
conciliatórias, muito menos com reformismos. Além disso, para a Nova Crítica do Valor,
não se trata de uma questão de distribuição (desigual da propriedade e
do capital) – mas sim do modo como a produção está estruturada pela
abstração do trabalho, e pelas formas “mercadoria” e “dinheiro”, a fim
de gerar a forma “valor”. Isso é que perfaz a exploração, e isto
significa que superar o capitalismo é eliminar a valorização do valor.
Só é possível extirpar do mundo todo o horror que decorre da produção
capitalista se não houver mais valorização do valor. Daí, qualquer
esquerda “distributivista”, ainda que revolucionária, em sua
perspectiva, está tão equivocada quanto as esquerdas liberais,
democráticas e reformistas.
Para a Wertkritik, desde a
década de 1960, agonizam o marxismo, o leninismo, o socialismo, o
movimento operário, o Estado de bem-estar social, o keynesianismo e o
desenvolvimentismo, chegando ao desengano no fim da década de 1980. O
capitalismo venceu por todos os lados, e não somente na realidade
objetiva, mas no interior dos sujeitos. Daí a necessidade de se
revisitar a teoria marxista dos últimos 150 anos, para lhe dar uma nova
forma, adaptada ao século XXI, uma vez que, desde os anos sessenta, o
marxismo estaria esgotado e incapaz de acompanhar o desenvolvimento
capitalista.
Para crítica do valor, a tendência é que o
trabalho abstrato e a mediação da forma mercadoria se tornem cada vez
mais obsoletos para a reprodução do valor, de modo que a tendência é a
miséria se ampliar e as condições precárias de vida chegarem aos países
de capitalismo central. Segundo Robert Kurz (2004), ao passo que o
neoliberalismo impõe medidas de austeridade orçamentária ou, nas
palavras de Scholz (2000) “eufemisticamente chamados processos de
reajustamento estrutural”, a maior parcela da população é empurrada para
a miséria, de modo que a crescente precarização das condições de vida
culminará num estado de coisas absolutamente insustentável, a que Kurz
(2004) denomina “colapso da modernização”, devido ao paradoxo de um
capitalismo que inviabiliza a reprodução da humanidade, mas ainda
precisa, em boa medida, do trabalho abstrato para gerar valor.
Essa mudança do eixo de compreensão do
marxismo dá à Crítica do valor uma radicalidade peculiar, e ela desponta
como uma possibilidade teórica mais lúcida e amadurecida para dar conta
da complexidade do nosso tempo. Ocorre que, no início de 2004, Roswitha
Scholz e seu companheiro Robert Kurz (falecido em 2012) foram expulsos
do grupo Krisis. Junto com eles, saíram Hanns von Bosse, Petra
Haarmann, Brigitte Hausinger, e Claus Peter Ortlieb, os quais redigiram
um documento relatando o episódio, com apelos de suporte aos apoiadores
do grupo em todos os países. Foi um escândalo, à época, uma vez que o
casal era cofundador do grupo Krisis, e Kurz sempre foi considerado seu principal expoente.
O grupo original de Nuremberg cindiu-se, dando origem à Exit!, que vai além da crítica ao valor nos seus apontamentos originais, pois, para essas pensadoras e pensadores dissidentes da Krisis, uma crítica resumida à forma do valor e à substância do trabalho também seria reducionista. Segundo Exit! (2007),
grupo de Roswitha Scholz, deve-se incluir, no alvo da crítica radical
do valor, o “caráter metafísico” de toda a sociedade burguesa e seu
“sujeito automático”, o que implica uma reformulação do conceito de
fetichismo.
O fetichismo dessa sociedade não é apenas
uma analogia às religiões como proposto originalmente por Marx, e
também não pode ser apreendido como ideologia simplesmente, porque é,
ele próprio, uma constituição metafisica e, ao mesmo tempo, concreta de
todas as relações sociais, de modo que o “sujeito automático” é uma
transcendência imanente que se processa na abstração do valor. Este
último, vai além das necessidades humanas e do mundo físico, dos quais
se desacoplou, tornando-se a mais autodestruidora potência de todas as
anteriores formações de fetiche. (EXIT!, 2007).
No grupo Exit!, a Crítica do
valor assume, assim, uma determinação essencial até então reprimida no
interior do marxismo, o que possibilitou sua extensão para uma crítica
da dissociação do valor elaborada por Roswitha Scholz. Ao se implicar
também na crítica do “sujeito automático” universal masculino e branco, o
grupo Exit! comprometeu-se com a desconstrução do
universalismo abstrato da modernidade, expressão metafisica da razão
iluminista, que impacta a forma-valor e o trabalho abstrato.
Em 1992, Roswitha Scholz publicou, pela primeira vez, um texto sobre sua “Teoria do valor-dissociação” (Theorem der Wert-Abspaltung),
no qual sustenta que todo trabalho que não é absorvido na forma do
valor abstrato, mas ainda continua a ser um pré-requisito para a
reprodução social, é delegado à mulher, como o cuidado das pessoas e da
casa, e a procriação. Trata-se de um desvio que Scholz propôs no
interior da Wertkritik e que, afinal, foi o pivô de sua ruptura, em 2004, entre os grupos Krisis e Exit!.
Como o Theorem der Wert-Abspaltung de Roswitha foi o epicentro da divisão da Wertkritik, os membros que acompanharam Scholz na sua expulsão da Krisis e fundaram a revista Exit!
incorporaram seus postulados ao debate do valor, reconhecendo que sua
crítica precisa se fazer acompanhar de uma crítica ao sujeito universal
do iluminismo. Robert Kurz foi o primeiro dos colegas de Scholz a
absorver seus conceitos e trabalhar as críticas ao valor e à razão,
cotejadas com as relações de gênero. Para Kurz, assim como o valor é
homem, também o esclarecimento (Aufklärung – iluminismo, razão moderna) é masculino (KURZ, 2010, p. 60).
Desta forma, não bastaria rever Marx, mas
seria fundamental incluir uma crítica radical ao iluminismo, que é o
fundamento ideológico-filosófico para a domesticação da humanidade no
trabalho abstrato, e o elemento central de constituição do “sujeito
automático” (macho), à medida que converte a razão em máxima metafísica
real, apresentando o capitalismo como a materialização da metafísica do
progresso. Para o grupo Exit! (2007), todo o marxismo, inclusive o que se quedou na Krisis,
herdou do iluminismo burguês o apego à razão metafísica, e, por conta
disso e por causa de idiossincrasias machistas dos próprios
intelectuais, não está apto a (ou não quer) assimilar o valor-clivagem.
Scholz (2017) afirma que mesmo os intelectuais da Krisis que
tentaram fagocitar o valor-clivagem nas suas análises, fizeram-no de
maneira equívoca, pois acreditam numa “essência” feminina boa vinculada à
maternidade, e no fato do homem assumir o papel de “do lar” poder
romper com a forma do sujeito masculino do valor. Esses erros, segundo
ela, devem-se às fantasias masculinas que cercam a mente de pensadores
machos, como é o caso de Lohoff (SCHOLZ, 2010).
Nesse passo, os marxistas alheios à Wertkritik sempre tenderam a ontologizar as categorias básicas do modo de produção, e os membros da Krisis
que resistiram ao valor-clivagem de Roswitha Scholz ou o desvirtuaram
tendem a ontologizar categorias da sociabilidade capitalista. Isso
explica porque Roswitha Scholz parte de alguns conceitos frankfurtianos
para edificar sua teoria, principalmente, das formulações de Theodor W.
Adorno e Max Horkheimer acerca da “razão” na Dialética do Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 2006).
Theodor Adorno e Max Horkheimer,
pensadores da primeira geração da denominada “Escola de Frankfurt”, que,
na realidade, seria melhor alcunhada de “Teoria Crítica”, tecem um
retrato da razão esclarecida e seus desdobramentos, partindo do seu
marco fundamental, que corresponde à eliminação dos mitos, em direção a
uma nova mitificação totalitária, substituindo toda a mitologia
precedente pela mitificação unívoca da própria razão (ADORNO;
HORKHEIMER, 2006, p.18). Scholz bebe nessa fonte para afirmar que, na
perspectiva de sua teoria do valor-dissociação, é decisivo insistir numa
dialética entre essência e aparência e na crítica da razão proposta
pelos frankfurtianos, nos quais, segundo ela, a lógica da identidade já
estava associada à lógica sexual. (SCHOLZ, 2012).
Trilhando um caminho que reinterpreta,
modifica e concilia Adorno e Horkheimer com Marx, ela se propõe a
elaborar uma teoria do valor que leve em consideração a dissociação
entre masculino e feminino. Como militante da Wertkritik,
advoga a desontologização das categorias fundamentais da estrutura
produtiva, especialmente o trabalho, para apontar o valor como um
processo alheio aos sujeitos, que tende a valorizar a si próprio,
tornando-se uma perversidade que estrutura o capital maléfico desde a
sua reprodução, e não meramente pela desigualdade de distribuição. Mas
Roswitha Scholz vai além.
Partindo de Adorno, ela demonstra que as
metanarrativas da sociedade, caudatárias da razão instrumental, tendem a
universalizar tudo em categorias metafísicas como se fossem
ontológicas. Essa universalidade é um atributo do sujeito burguês, e
esse sujeito automático e universal é, obrigatoriamente, masculino e
branco. Assim, a masculinidade e a branquitude tornam-se universais
ontológicos, que Scholz vai denunciar como estruturas da valorização do
valor.
Os contornos teóricos da Crítica do valor
fundamental trazem radicalidade à compreensão marxiana do processo
produtivo, ao demonstrar que a forma é que determina a exploração, e não
a vontade de uma classe, ao ponto de nos fazer concluir, na mais
perfeita lógica, que a exploração só cessará com a aniquilação total do
modo de produção capitalista; todavia, por mais que pareça uma crítica
completa, a crítica do valor, originalmente, não dava conta de explicar
fenômenos de opressão social e historicamente estabelecidos, como o
racismo e o sexismo, e sua relação com a produção, para indicar um
caminho de sua superação. Isto porque, segundo Roswitha, o trabalho
abstrato aparece, ainda nesse modelo teórico, como um modo sexualmente
neutro.
Desta feita, Scholz incrementa o conceito
de fetichismo, nele inserindo a especificação sexual. Pode-se dizer que
ela elaborou uma teoria social de constituição do capitalismo, ou uma
teoria econômica de constituição da sociedade patriarcal, pois são
fenômenos interdependentes. Os papeis sociais são determinados pelo
valor. Todos os trabalhadores só se colocam no mundo a partir do
trabalho – este é o papel social que desempenham. E o valor é sempre
macho.
Ocorre que o modo de produção capitalista
torna cada vez mais difícil a reprodução da humanidade pelo aumento da
pobreza (ainda mais com a pulverização do Estado de welfare), e, segundo Roswitha Scholz, por mais que a Wertkritik
original seja mais feliz nos seus entendimentos do que o marxismo
aprisionado na ontologização do trabalho e na ilusão da redistribuição
da mais-valia para resolver as injustiças do sistema, continuava
indiferente no que concerne às relações de gênero, que constituem o
vértice do fetichismo. Se, diante do fetichismo, as relações se
dão tão-somente entre mercadorias animadas, ao passo que as pessoas
estão recortadas individualmente e reificadas (e as mercadorias
representam o valor, que é masculino), as mulheres não tomam parte nessa
sociedade. O patriarcado produtor de mercadorias, fetichista, exclui as
mulheres desde a sua estrutura produtiva.
Para ela, enquanto o trabalho abstrato e o
valor aparecerem de modo sexualmente neutro, mesmo numa crítica que se
pretende radical, continuar-se-á olvidando outras tarefas que
permaneceram fora da forma-valor. Estas restam sempre e sempre a ser
executadas pelas mulheres, como a lida da casa. Mesmo quando executadas
por homens, permanecem “atividades femininas” e dissociadas do valor.
Essas atividades majoritariamente atribuídas às mulheres (mesmo as que
exercem atividade remunerada) estão expurgadas do trabalho abstrato
capitalista (SCHOLZ, 2000).
O valor e sua dissociação estão
dialeticamente relacionados: não derivam um do outro, são dois momentos
concomitantes que se pressupõem. Por isso, segundo a autora, a
dissociação do valor está além, até, das categorias próprias da
forma-mercadoria, e deve ser concebida por meio de uma lógica superior
que estrutura a produção capitalista e conforma a sociedade. Nesse
passo, a sociabilidade, no capitalismo, que é fetichista por se
estabelecer a partir do valor, constitui-se por um patriarcalismo
específico, no qual as mulheres estão alijadas desde a raiz (SCHOLZ,
2013, p. 49). Assim, a dissociação do valor implica uma relação muito
específica, de caráter psicossocial, e advém da lógica da forma como se
produz valor no capitalismo, enquanto idiossincrasia vertebral do
próprio fetichismo.
O capitalismo é machista na estrutura, e
não apenas na cultura das sociedades. O que o condiciona assim é o
movimento de abstração do trabalho, sem o qual não se reproduz o valor.
Se todas as tarefas humanas fossem simples afazeres voltados a produzir
coisas úteis, não haveria uma dicotomização entre o que é trabalho
(abstrato) e o que não é, e, consequentemente, não precisaria haver uma
divisão entre “trabalho de homem” e “tarefa de mulher”. A necessidade
do capital em abstrair uma forma do trabalho para além das ações humanas
em geral foi que cindiu a existência em masculina e feminina.
Roswitha Scholz acredita que a especificação sexual da forma-valor (conforme concebido pela Wertkritik)
é o caminho para um feminismo radicalmente anticapitalista, que leve em
consideração as diferenças. Nessa toada, ela afirma que busca
relacionar a multidimensionalidade teórica das relações entre os sexos
(psicanálise, antropologia, e psicologia social, que é sua formação
original) com as hipóteses da crítica do valor, o que perfaz o centro de
sua teoria do valor-dissociação (SCHOLZ, 2000).
Por isso, seu teorema realiza uma crítica
simultânea e radical da totalidade do patriarcado, nas esferas social e
econômica, ou seja, é radicalmente marxista e feminista. Dessa forma,
Roswitha Scholz propõe uma especificação na crítica do valor que não
esteja ameaçada pelo risco de se fetichizar, de reproduzir as ontologias
metafísicas do iluminismo, nem de incorrer em machismo, racismo,
etnocentrismo e afins. Desde a sua perspectiva, ela se considera capaz
de responder aos fenômenos multifacetados da sociedade do século XXI, e
do capitalismo presente, dando respostas e caminhos para uma possível
emancipação. Scholz é intrépida na defesa de que seu valor-dissociação
responde, enquanto modelo teórico, às mais diversas angústias de nosso
tempo. Por tudo isso, o Theorem der Wert-Abspaltung seria a expressão mais acabada, mais completa, mais dialética e mais corajosa da Wertkritik.
Referências
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KURZ, Robert. O Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
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KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. Manifesto contra o trabalho. Krisis: Kritik der Warengesellschaft [online]. Nuremberg, 1999, não paginado. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-trabalho/. Acesso em: 05 jan.2019.
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minha alltours: A identidade (masculina) pós-moderna entre a mania da
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SCHOLZ, Roswitha. El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica. V.I, n.5. Madrid: Dezembro, 2013. p. 44-60. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14 jan. 2019.
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SCHOLZ, Roswitha. Crítica da dissociação-valor e teoria crítica. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias [online]. Lisboa, 2017, não paginado. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz28.htm. Acesso em: 19 jan.2019.
* Taylisi Leite é professora, graduada e mestre em Direito pela UNESP e doutora pelo Mackenzie
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