É
profundamente desconcertante descobrirmo-nos a viver numa economia
programável. De repente, aquilo que todos os economistas e políticos nos
tinham assegurado não poder ser feito — construir uma economia com
objetivos sociais altamente especializados — materializou-se perante os
nossos olhos. O pleno significado da experiência só agora começa a ser
entendido
texto Bruno Maçães
ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus; senior fellow no Hudson Institute
ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus; senior fellow no Hudson Institute
Pelos
filmes sobre desastres, sabemos que durante uma catástrofe o tempo deve
acelerar, não ficar parado. Se há meses nos tivessem pedido para traçar
um cenário, a maioria de nós teria imaginado momentos de caos e
desordem, semelhantes ao profundo caos social em Florença durante a
praga descrita no século XIV por Boccaccio no seu “Decameron”, “todo o
respeito pelas leis de Deus e do homem (...) quebrado”.
Em
vez disso, durante semanas após chegar a pandemia do coronavírus, o
silêncio e a compostura pareceram reinar. As economias foram paradas de
um momento para o outro — deliberada e metodicamente — e isto também
confundiu as expectativas. Pela primeira vez, uma crise económica
resultou não de uma súbita perda de controlo sobre processos económicos
mas de uma decisão coletiva de desligar grandes segmentos da economia.
Num gráfico parecia menos adequado desenhar a linha de uma queda a pique
do que a de uma linha congelada no tempo.
As
pandemias são um fenómeno recorrente da história humana. A “grande
pausa” é nova. Ao avaliarmos o significado histórico da pandemia, a
forma como optarmos por responder poderá ser mais reveladora do que o
evento natural em si mesmo. Paradoxalmente, as sociedades modernas
regidas pelo movimento contínuo responderam à crise parando grande parte
da atividade social e económica. Enquanto escolha de política pública,
poderá ter sido inevitável. Como experiência, não tem precedentes.
Na
gripe espanhola de há um século, as pessoas adaptaram o seu
comportamento individual, mas a vida social continuou mais ou menos como
antes. Foram encerrados “lugares públicos de diversão”, mas a vida e o
trabalho foram de modo geral pouco afetados. Muitos trabalhadores
sofreram, morrendo em fábricas e minas; porém, nos Estados Unidos o
produto interno bruto real até cresceu em 1919, embora uns modestos 1%. O
comércio de retalho mal foi afetado e as empresas não declararam
bancarrota a níveis fora do habitual.
Com o
coronavírus a resposta foi muito diferente. Abruptamente e com pouco
aviso, a economia foi posta em pausa. Em parte, por agora termos as
ferramentas para o fazer: a internet e outras tecnologias de informação e
logística para manter em funcionamento serviços essenciais, e bancos
centrais e governos ativistas para gerir o choque económico resultante. A
ilusão de que o tempo económico não pode ser parado — de que a economia
é uma entidade orgânica que escapa ao controlo social — foi tacitamente
destruída.
Um
funcionário da área da Saúde no Reino Unido explicou recentemente que
ao início nenhumas medidas restritivas foram estabelecidas por ninguém
saber se era possível — muito menos fácil, como ele disse — impor um
confinamento numa sociedade moderna. Sem a pandemia, poderíamos jamais
ter descoberto isso. Tal como o herói de um Bildungsroman,
tivemos de esperar por uma crise inesperada para descobrirmos a
verdadeira extensão dos nossos poderes. A crise deixará cicatrizes, mas
também acordará forças novas e insuspeitadas. A explosão de protestos
públicos sobre injustiça racial em semanas recentes é apenas um exemplo —
uma antecipação de outros movimentos que aí vêm.
Alguém
disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do
capitalismo. É uma formulação plausível, mesmo no seu efeito cómico. E,
contudo, a atual crise provou o contrário. O capitalismo foi
notavelmente fácil de parar — ou pelo de interromper. Apenas se
necessitou de uma genuína crise ambiental, uma crise onde as condições
externas para uma economia capitalista foram subitamente removidas.
O
novo coronavírus conseguiu em dias aquilo pelo que tanto progressistas
como nacionalistas lutavam há muito. Poderosos interesses económicos
foram marginalizados, indústrias inteiras tiveram de encerrar
temporariamente, o consumo de petróleo caiu a pique, fecharam-se
fronteiras nacionais e impuseram-se proibições de exportações. Foi uma
experiência de humildade, com reverberações políticas diminuídas em
comparação com a gigantesca onda natural da pandemia. Mas também foi um
momento de conversão, onde se pôde finalmente ver o sistema económico e
social como ele é. A “grande pausa” revelou uma verdade oculta, e uma
vez relevada ela não pode ser esquecida.
Um
estudo recente estima que 42% dos despedimentos induzidos pela pandemia
resultarão em perdas de emprego permanentes. Sectores inteiros estão
destinados a fechar. Outros novos serão criados
Entre
as crenças que em tempos foram inquestionáveis e poderão agora adquirir
um novo significado conta-se a ideia da economia como um organismo
vivo. Não é uma ideia insignificante. A economia moderna baseia-se na
noção de uma esfera económica autónoma — mercados capazes de criar
inovação através do seu poder próprio e resistentes a manipulação
externa. Sem este conceito, as economias ocidentais não teriam
conseguido produzir nem o dinamismo económico de que desfrutaram no
último século nem o nível de consenso político que o permitiu.
Segundo
a perspetiva que herdámos, a economia é demasiado complexa para ser
alvo de engenharia. Cresce, não é feita. O conhecimento não é totalmente
acessível. Esconde-se em milhões ou biliões de unidades que interagem,
demasiado misteriosas para serem enunciadas. Assim como os sistemas
vivos mantêm um estado de equilíbrio dinâmico estável, ou homeostase, o
mercado também se consegue regular através de feedback
negativo e mecanismos igualmente automatizados. Uma maneira diferente
de ver a economia marcaria um novo começo na história do capitalismo
moderno.
Os polos do debate económico ocidental no
século XX partilharam a mesma metáfora subjacente, embora com ênfases
ligeiramente diferentes. Quando o ícone conservador Friedrich Hayek
comparou a economia moderna a um organismo vivo, queria gerar uma
espécie de respeito, ou maravilhamento, com a ordem do mercado, situando
o conhecimento económico para lá do controlo humano. Conforme explicou
uma vez, assumir que o sistema económico existente deve ser
deliberadamente controlado é o vestígio derradeiro de uma mente
primitiva que vê uma intenção em tudo. Em vez disso, devemos pensar na
economia como “um organismo no qual cada parte desempenha uma função
necessária para a continuação do todo, sem que nenhuma mente humana o
tenha concebido”.
O
ídolo da economia de esquerda contemporânea, John Maynard Keynes, não
discordava. Também ele via a moderna economia industrial como um
organismo vivo e foi fortemente influenciado pelo pensamento darwinista
nos seus escritos iniciais. O seu desacordo com a economia clássica
tinha que ver com a questão de saber se se podia confiar na economia
para se manter a si própria em boa forma — em equilíbrio — ou se poderia
ser necessária alguma intervenção ocasional das autoridades públicas. A
questão não era se a economia devia ser encarada como um organismo
vivo, mas se esse organismo poderia às vezes precisar de um médico.
Keynes
acreditava que as flutuações na procura agregada tinham de ser geridas,
pois determinavam o estado geral da economia, incluindo a produção
agregada, e portanto o emprego. De facto, Keynes enfatizou a natureza de
uma economia moderna como um carrossel. O protelamento de gastos ou
investimentos representa uma perda imediata de receita e rendimento para
a empresa que produz o bem ou o equipamento. Parem um elemento da
economia e tudo desata a ruir.
Mas se tanto Hayek
como Keynes viam a economia como um organismo vivo ou uma inteligência
natural, estamos à beira de a ver como algo semelhante a um programa de
computador, uma inteligência artificial. Após aquilo a que assistimos
durante a pandemia, faz sentido comparar a economia a um código de
computador. A “grande pausa” imposta pelas autoridades foi como se um
programador informático removesse uma mão-cheia de processos e
subprocessos do seu código e deixasse correr o resto largamente sem
alterações. Com as ordens de confinamento em março, pelo menos um quarto
da economia americana — tudo o que já não podia funcionar em segurança
no novo ambiente, desde restaurantes e ginásios a cinemas — foi retirado
de linha, enquanto o resto continuou a operar com disrupção limitada.
Uma
das surpresas foi que isto podia resultar. No início da pandemia, na
Europa e na América do Norte, o medo generalizado de que a vida social e
económica fosse irreparavelmente afetada levou muitos consumidores a
armazenarem bens essenciais. Nas redes sociais circularam fotos e vídeos
que mostravam longas filas à entrada de supermercados e prateleiras
vazias lá dentro. Como economistas amadores, todos sabíamos uma coisa:
com um choque externo suficientemente profundo, a economia podia bem
colapsar como um castelo de cartas.
Não
posso deixar de pensar no caso português. Se há uma ideia com a qual
não convivemos bem é a ideia de que a economia é reformável. Poderá esta
triste situação ser alterada?
Na verdade, as cadeias de fornecimento adaptaram-se e reajustaram-se a
uma velocidade extraordinária. A Walmart começou a enviar produtos a
partir de 2500 lojas, para responder a uma explosão de encomendas online
gerada pela pandemia. No primeiro trimestre, as vendas de comércio
eletrónico registaram um aumento de 74% relativamente ao ano anterior.
Envios diretos a partir de lojas têm sido parte da estratégia da
Walmart, mas a empresa rapidamente contratou mais de 235 mil novos
trabalhadores para se adaptar às mudanças da procura na era do
coronavírus. “Um dos aspetos de inovação que poderão passar
despercebidos é que a nossa equipa descobriu como contratar pessoas num
período de tempo muito mais curto”, disse o CEO Doug McMillon numa
recente comunicação do relatório e contas. “O que nos teria levado dias e
semanas, levou-nos horas e dias.”
Em Itália,
quando o Governo anunciou o encerramento prolongado de atividades
não-essenciais, umas cem mil companhias candidataram-se a uma isenção
legal, com base no facto de que faziam parte de uma cadeia de
fornecimento de empresas que eram elas próprias essenciais. Assim, por
exemplo, uma empresa que fabrique sistemas de produção de energia poderá
ser autorizada a continuar aberta por os seus clientes estarem em
cadeias de fornecimento essenciais. A empresa enviaria um e-mail
certificado às autoridades, e a informação fornecida seria verificada
junto de registos disponíveis e de informação fornecida por outras
empresas. O fabricante de pneus Pirelli reportou em março que a sua
produção em Itália não foi de todo afetada, pois as viagens por carro
eram permitidas dentro de zonas de confinamento. A empresa disse que
recebia informação em tempo real para gerir a logística. Este nível de
análise dinâmica da cadeia de fornecimento — simulações continuamente
feitas e atualizadas — teria sido impossível antes dos recentes
desenvolvimentos nas tecnologias de informação e comunicação, os mesmos
desenvolvimentos que facilitaram o crescimento de cadeias de valor
complexas.
A procura de robôs disparou, em especial
na cadeia de fornecimento alimentar. Se os trabalhadores são mantidos
em casa ou não podem atravessar fronteiras por causa da pandemia,
máquinas que colhem e entregam comida são uma solução óbvia. Noutros
casos, houve um aumento na procura de robôs de desinfeção, equipados com
ferramentas como luz ultravioleta para matar o vírus. Há muitos
exemplos semelhantes onde a tecnologia mais recente tem ajudado a
limitar perturbações nas cadeias de fornecimento.
Nada
disto tem que ver com a interação espontânea de unidades económicas
individuais de que os economistas gostam de falar. Na verdade,
aproxima-se bastante daquilo a que Hayek chamava uma organização, algo
afim de uma mente coletiva. Nalguns casos, o Governo assumiu a tarefa de
reorganizar a atividade económica; noutros, grandes plataformas
dominantes desempenharam essa função. A internet juntou os diferentes
atores e ajudou-os a alinhar as suas perspetivas e os seus métodos.
Qualquer resistência de interesses opostos foi efetivamente co-optada ou
ultrapassada.
Ainda não é claro quão mais produto
se perderá se houver choques adicionais na procura em resultado de um
aumento do desemprego e da perda de riqueza doméstica e de gastos por
parte de empresas; os programas de estímulos governamentais não
conseguem preencher a lacuna. Mas devemos recordar que o confinamento
mudou os padrões de consumo, desviando dinheiro para aqueles sectores
ainda a operar quase em plena capacidade. Cerca de 35% dos gastos em
alimentação — mais de 2,5 biliões de dólares anualmente — encontram-se à
disposição, com os consumidores passando a jantar em casa e
experimentando novos canais para comprar. No primeiro trimestre, as
vendas brutas online da loja da Amazon
cresceram 24% em relação ao ano passado. Em março essa taxa de
crescimento rondou os 40%. Antes da pandemia, as compras de mercearia
online representavam menos de 5% do mercado de mercearias americano.
Espera-se que essa fatia atinja os 10% em 2020.
Tem
havido muita especulação sobre se estas mudanças se tornarão
permanentes. Quase de certeza que não. Haverá uma considerável reversão
para a média, assim que o pior da pandemia terminar. Nem esta é a
questão mais interessante. O que nos devia espantar não é o aparecimento
de uma ou outra tendência histórica irresistível — trabalho à
distância, o fim da globalização, uma ordem mundial chinesa — mas o
súbito despertar de um novo poder coletivo para orientar a sociedade em
outras direções.
É profundamente desconcertante
descobrirmo-nos a viver numa economia programável. De repente, aquilo
que todos os economistas e políticos nos tinham assegurado não poder ser
feito — construir uma economia com objetivos sociais altamente
especializados — materializou-se perante os nossos olhos. O pleno
significado da experiência só agora começa a ser entendido.
Não
posso deixar de pensar no caso português. Se há uma ideia com a qual
não convivemos bem é a ideia de que a economia é reformável. À direita,
os poucos liberais e conservadores que vão sobrevivendo leram demasiado
Hayek para acreditarem na ideia. E à esquerda, os partidos estão tão
comprometidos com diferentes grupos de interesses que a última coisa em
que pensam é em agitar as águas. Poderá esta triste situação ser
alterada? Não é impossível porque o novo tipo de reformas que a nova
idade política anuncia é bastante diferente: com processos mais
controlados e com objetivos mais sociais, o tipo de movimento coletivo
que descrevo neste texto pode ser mais ao nosso gosto. Afinal, os
portugueses souberam conduzir o confinamento com notável eficácia.
Há
uns anos, Marc Andreessen alegou que o software estava a comer o mundo.
Descreveu uma dramática e alargada mudança tecnológica e económica na
qual empresas de software passavam a dominar grandes faixas da economia.
O software estava inclusive a engolir muita da cadeia de valor de
indústrias que são largamente vistas como existindo primariamente no
mundo físico.
Esse processo poderá agora estar tão
avançado que a melhor forma de pensar sobre a economia é como sendo o
mais longo programa de computador do mundo, composto por linhas de
código continuamente em evolução e manipuláveis. Isto não deve ser
entendido como uma licença para nos limitarmos a seguir os nossos
desejos. Estas linhas de código estão interligadas, e até o bug mais pequeno, se não for detetado, pode levar a um crash
do sistema. O que a metáfora promete é a capacidade de parar, pensar e
alterar as nossas circunstâncias. Em última análise, estamos fora do
sistema económico e ele pode ser mudado de formas novas e
surpreendentes. Ao contrário de um organismo vivo, um programa de
computador não é algo formado, mas pode existir em versões diferentes,
potencialmente infinitas.
No auge dos
confinamentos, entre um quarto e um terço das nossas economias foram
colocadas em pausa. Não há dúvida de que muitas coisas terão de mudar no
futuro. Um estudo recente estima que 42% dos despedimentos induzidos
pela pandemia resultarão em perdas de emprego permanentes. Sectores
inteiros estão destinados a fechar. Outros novos serão criados. Para
muita gente na esquerda radical e na direita radical esta é a doutrina
que têm andado a pregar. Se economias inteiras podem ser reprogramadas
para eliminar o risco de uma infeção viral, então deve ser possível
fazer o mesmo em nome de outros objetivos sociais igualmente desejáveis.
Quando o vírus chegou, as mesmas autoridades que sempre tinham dito que
nada podia ser feito em relação aos sem-abrigo rapidamente descobriram
meios para alojar os indigentes. Em suma: parem o relógio histórico e
reorientem a atividade económica em novas direções, preservando o núcleo
da ordem social e económica.
Isto leva-nos aos
recentes protestos pela igualdade racial que nos Estados Unidos
rapidamente se tornaram um movimento social a uma escala dramática.
Quando George Floyd foi morto pela polícia, algemado e deitado de cara
para baixo na rua de uma cidade, a nação largou a sua luta contra o
vírus e virou-se para os seus demónios interiores e para a luta pela
igualdade racial. Foi um momento exaltado, com manifestantes e
desordeiros a descer às ruas, usando máscara mas juntos, em grupos
grandes, contra todos os avisos de saúde anteriores.
A
rápida passagem do confinamento para o protesto esteve longe de ser uma
coincidência. A “grande pausa” foi ela própria um movimento social, o
maior de que temos memória, e com natureza global. Numa questão de dias
ou semanas, o vírus conseguiu reorganizar a sociedade em torno de um
único objetivo, enquanto um conjunto de ferramentas poderosas eram
desenvolvidas e aperfeiçoadas. Os manifestantes aprenderam com esse
esforço coletivo, consciente ou inconscientemente. Acima de tudo,
aprenderam que é possível outro mundo. (Vinda durante uma pandemia, a
lição devia provavelmente ser: outro fim do mundo é possível.) O vírus
ensinou-nos que a vida social pode ser reprogramada. Deixou em aberto a
questão sobre que mudanças devem ser feitas no programa social.
A
“grande pausa” assentou na tese de que a engenharia social funciona, ou
pelo menos pode funcionar. Uma vez aceite esta tese — e tem geralmente
sido aceite na luta contra a covid-19 — todos os tipos de cálculos
sociais se tornam difíceis de resistir. Assim, dezenas de especialistas
de saúde pública e doença americanos assinaram uma carta a dizer que a
supremacia branca é uma questão letal de saúde pública que precede e
contribui para a covid-19. Um epidemiologista escreveu que os riscos
para a saúde pública de não nos manifestarmos pelo fim do racismo
sistémico “excedem largamente os danos do vírus”. Lembro-me de ver um
manifestante com uma placa onde se lia esta simples mensagem: “Tratem o
racismo como a covid-19” — assumindo que se pode tê-la, ouvir
especialistas falar sobre ela e mudar tudo na nossa vida para a
extinguir.
Como se hão de fazer estes cálculos
sobre até onde levar a mudança social e económica? Nem sequer estamos
habituados a fazer a pergunta, pois jamais acreditámos que tínhamos o
tipo de poder com o qual o exercício se torna tudo menos ocioso. As
modernas sociedades ocidentais gostam de pensar em si mesmas como
fazendo parte de um movimento da história a acelerar — progresso,
entendido em termos gerais. Com frequência, porém, a sensação nestas
sociedades é que perdemos o controlo sobre todo o movimento ou agitação à
nossa volta. A economia tem a sua própria lógica e deve ser deixada aos
seus próprios processos. A sociedade tem uma direção predeterminada,
que podemos aplaudir mas não configurar. Os valores triunfantes foram
determinados, e a nossa tarefa é apenas concretizá-los. Estar no caminho
do progresso fazia-nos sentir conduzidos por forças para lá do nosso
controlo. Parar ou pausar era algo que ninguém se atrevia a imaginar,
mesmo que constituísse o primeiro passo indispensável para uma sociedade
decidir o seu próprio futuro. Que o relógio histórico pudesse parar —
fosse de que forma fosse — parecia uma impossibilidade.
Essa
impossibilidade chegou, sob a forma de uma catástrofe global. O tempo
revelou-se uma ilusão? Talvez não nas formas simples que assume nas
nossas vidas individuais, mas o tempo enquanto realidade histórica
adquiriu de facto um sentido novo e radical. O futuro não é dado. O
futuro é programável. A pandemia não será lembrada como uma pandemia mas
como uma revolução.
Uma versão deste artigo foi publicada originalmente em “Foreign Policy” a 22 de junho de 2020
Tradução Luís M. Faria
Fonte: EXPRESSO, com a devida vénia
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