Uma obra “canonizada em vida” que talvez se possa enfim debater
O consenso em torno de Eduardo Lourenço é tão avassalador que pode sabotar a própria discussão do legado. Os historiadores José Neves e António Araújo alertam para o risco de o reduzirmos a um pensador da identidade portuguesa. Já Diogo Ramada Curto acha que a sua obra é “extremamente desigual”.
A “coincidência simbólica” de Eduardo Lourenço ter morrido no dia 1 de Dezembro, o feriado que comemora a Restauração da Independência, foi destacada pelo Presidente da República. Esse “quase que parecia que teria de ser assim”, dito por Marcelo Rebelo de Sousa, veio ligar a memória póstuma do mais destacado intelectual do século XX à questão da identidade nacional. Mas se houvesse tal coisa como um dia adequado para a morte do ensaísta, o historiador José Neves, que se tem debruçado sobre as questões do nacionalismo, proporia o 25 de Abril: “Não só porque ele viveria mais uns meses, mas porque tenho um certo receio de que aconteça a Eduardo Lourenço na sua morte aquilo que lhe foi acontecendo nos últimos anos: confiná-lo a um pensador da identidade nacional portuguesa.”
O que o seu ensaísmo tem de mais significativo, acrescenta, é a tentativa de recuperar essa tradição de reflexão sobre a nação e a identidade nacional para um período democrático já com uma forte integração europeia. Mas, apesar dessa adesão europeísta, Lourenço também foi capaz de desconstruir o carácter mitológico do próprio europeísmo. “Por isso, parece-me discutível limitá-lo a um pensador da portugalidade, e principalmente a uma data como o 1 de Dezembro, associada a uma matriz claramente conservadora no contexto dos nacionalismos portugueses.”
Ao pensarmos nele principalmente como “cultor da portugalidade”, ficam esquecidas dimensões mais críticas sobre a história de Portugal, como as que foram recentemente relembradas pela colectânea de textos organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Do Colonialismo como Nosso Impensado (2014), nos quais mais directamente escreveu sobre a dimensão imperial dos Descobrimentos. “Existem declarações dele muito avessas a qualquer tipo de celebração desse passado histórico, do império, do colonialismo, projectando mesmo uma crítica à própria ideia de Descobrimentos.”
Num ensaísmo que recorre frequentemente à literatura e à história para mostrar a pluralidade de uma identidade nacional portuguesa, recusando um destino português ou uma concepção mais monolítica dessa identidade, Lourenço acabou por criar os seus próprios mitos: “Ao mesmo tempo que tem os seus momentos clarividentes, também há uma tentativa de transformar essa pluralidade num traço português, numa ideia de cultura portuguesa.”
A afirmação dessa singularidade plural tornou-se um tópico que ecoa no pensamento sobre a identidade nacional portuguesa de uma forma que vai muito para lá de Eduardo Lourenço, e que intercepta nacionalismos mais à esquerda e mais à direita. “É um pensamento preocupado em desconstruir qualquer ideia de essência nacional, mas noutros momentos esse esforço transforma-se no ponto de partida para o próprio Lourenço propor uma identidade não identitária.”
As raízes intelectuais desse pensamento, explica José Neves, vêm da sua oposição à ditadura, da crítica ao império, da exposição a correntes intelectuais avessas à própria ideia de identidade nacional, da sua atracção pelo projecto europeu, mas há também uma aposta do último Lourenço na ideia de que esta pluralidade é qualquer coisa de especificamente português. “Não creio que o pensamento sobre a identidade nacional tenha uma unidade argumentativa linear e coerente.”
Há um “efeito Eduardo Lourenço-pensador da portugalidade” que se vê junto de outros intelectuais portugueses nas últimas décadas, nomeadamente nos trajectos do filósofo José Gil e do sociólogo Boaventura de Sousa Santos. “O primeiro, vindo de uma tradição ensaística muito forte, só mais recentemente se atribui a si próprio a missão de pensar a identidade nacional, o povo, a sociedade portuguesa, o país. E isso também se nota em alguém vindo das ciências sociais, como Boaventura Sousa Santos, que, com a crise de 2008, introduz um conjunto de ensaios sobre a ideia de autoflagelação do país.”
Também o historiador e colaborador do PÚBLICO António Araújo se mostra sensível a esse risco de apenas ver em Lourenço o pensador da identidade portuguesa. “É triste e muito limitativo reduzir um ensaísta e crítico com a dimensão e a densidade de Eduardo Lourenço ao papel de intérprete da portugalidade ou, como disse há pouco um jornal, ao de ‘filósofo que procurou Portugal no seu labirinto’”, diz. Mas se “a sua obra — aliás, vastíssima — ultrapassa em muito O Labirinto da Saudade, o facto é que”, observa, “ao aventurar-se por tal caminho, Lourenço contribuiu também para ser aprisionado nesse chavão”. E “o timing”, nota, “foi perfeito: o livro saiu em 1978, na ressaca da revolução, e vinha satisfazer a antiga e eterna obsessão portuguesa consigo própria”, essa “mesma obsessão que ainda há pouco tornou em best seller outra incursão do género, Portugal Hoje, O Medo de Existir, de José Gil”.
Eduardo Lourenço “era o primeiro a dedicar-se a esse exercício no pós-25 de Abril e vinha, para mais, da esquerda, ou seja, de uma área política e ideológica muito avessa às divagações sobre o ‘sentido nacional’ que tinham ocupado à exaustão a débil ‘filosofia portuguesa’”, diz Araújo. “Que um filósofo — e Lourenço era um filósofo, dos autênticos, tinha uma formação e uma expressão muito sólidas nessa área —, um homem vindo da esquerda, que antes escrevera Os Militares e o Poder, de 1975, e O Fascismo Nunca Existiu, de 1976, trilhasse os caminhos da psicologia nacional, indo ao encontro da eterna dúvida de Portugal sobre si mesmo, era algo que o fazia entrar de pleno no mainstream cultural, mas também do político e social, pavimentando o caminho para se tornar o nosso intelectual público de maior projecção, o savant por excelência, em torno do qual se gerou um enorme e absoluto consenso”, descreve António Araújo.
E “talvez por isso”, acrescenta, e por características da sua personalidade — “nunca procurou a ruptura nem gerou controvérsia” —, Lourenço “acabou por ser assimilado pelas instituições do establishment e pelo regime, que o remuneraram simbolicamente e o trataram com a reverência reservada aos sábios”. E conclui: “Ele próprio acabou por se converter num case study ou num elemento da portugalidade que antes perscrutara e, aos poucos, a originalidade do pensamento foi sendo ofuscada pelo brilhantismo do verbo, pois, além de tudo o mais, Lourenço escrevia como poucos e foi um dos grandes prosadores do nosso tempo — pena não ter tentado a ficção ou o romance, mas a obra que deixa noutros campos é já suficientemente rica e esmagadora”.
Um Agostinho da Silva institucional
Diogo Ramada Curto, um dos raros intelectuais portugueses que tem assumido publicamente as suas reservas face a algumas dimensões da obra de Eduardo Lourenço e aos cada vez mais amplos consensos que esta foi gerando ao longo das últimas décadas, acha que este “é um momento de leitura e reflexão da obra, que foi o seu grande legado”. E se as obras completas em curso de publicação pela Gulbenkian, ao “revelarem o pensamento de Eduardo Lourenço em toda a sua extensão”, são um convite a essa leitura crítica, ela é também algo que lhe devemos: “Ele passou a vida a interpretar e avaliar o trabalho dos outros e agora compete-nos avaliar o dele.”
O historiador acredita que essa leitura global “vai demonstrar uma extrema desigualdade no interior da obra, com textos recolhidos aqui e acolá, reflexões pouco elaboradas sobre alguns tópicos, e muita repetição”. E argumenta que “o risco da obra completa é exactamente o de trazer ao de cima essa inconsistência”.
Para a sua visão da obra de Lourenço, o historiador assinala a importância do texto que o autor de O Labirinto da Saudade dedica nesse livro a António Sérgio: Sérgio como Mito Cultural. “É um texto muito polémico, um ajuste de contas, que só mostra a aspiração de Lourenço a destronar a figura de ensaísta que foi António Sérgio”, diz Ramada Curto, acrescentando a sua convicção de que Lourenço não tem sucesso nessa tentativa e que “o grande ensaísta português do século XX é mesmo António Sérgio”.
Já Eduardo Lourenço, diz, distingue-se pela “repetição de um conjunto de lugares-comuns de uma psicanálise um pouco banalizada — com as ideias de memória, desmemoriação, trauma, depressão —, que depois aplica à leitura da identidade portuguesa”. Uma estratégia cujo “objectivo é dizer que há um silêncio, um trauma, que ele vem descobrir, como se fosse uma espécie de profeta”.
Ramada Curto aproxima ainda Lourenço de “uma filosofia portuguesa à qual este pretendeu dar vestes novas, mas que continua a ser esse martelar em busca de uma identidade, um pouco à [Teixeira de] Pascoaes”, e que faria do ensaísta “uma espécie de Agostinho da Silva institucional”. E lamenta que “a canonização em vida” a que Lourenço foi submetido tenha contribuído para “afastar qualquer espécie de debate” em torno da sua obra. “Para reflexão sobre a identidade, prefiro a ironia acerca de algumas essências da identidade portuguesa do Miguel Esteves Cardoso, que é mais divertido e não se leva a sério”, conclui.
Do ponto de vista das ciências sociais”, Ramada Curto aponta as obras de Orlando Ribeiro ou de Vitorino Magalhães Godinho como estando “noutro nível de grandeza”. E só no domínio do ensaísmo literário se mostra mais benevolente: “Tem indiscutivelmente trabalho importante sobre Pessoa e a poesia portuguesa do século XX, mas é óbvio que não é um autor de referência sobre Camões, e sobre Antero tenho dúvidas.”
Sem comentários:
Enviar um comentário