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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

LIVROS

ANTÓNIO DAMÁSIO

 Nos seus últimos livros, "A Estranha Ordem das Coisas- A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas» e «Sentir e Saber», o cientista português que vive e labora nos EUA, António Damásio, sintetiza e esclarece as teses principais que tê orientado a sua obra desde décadas.

O seu contributo para a ciência da neurologia é enorme. A sua fecunda curiosidade pela Filosofia e pela cultura erudita em particular, fornecem acicates e apoios às suas intuições que o colocam entre os maiores especialistas do género. Exemplifico com os livros «O Erro de Descartes» e «Ao Encontro de Espinosa».

A relevância das emoções e dos sentimentos tem uma longa história. Remonta, pelo menos, ao Iluminismo, o qual, ao contrário de classificações convencionais, não hipostasiou tanto a razão como se julga vulgarmente. O traço comum aos grandes iluministas foi a confiança na racionalidade, mas não foram eles (Diderot, Helvétius, D´Holbach...) que veneraram a "Deusa Razão". A seguir, por todo o século XIX prossegue-se na crítica a determinadas concepções metafísicas da Razão hipostasiada e um dos alvos preferidos é, como se sabe, o sistema hegeliano.

Dentro desta longa, variada e contrastante tradição crítica (vejam-se as obras de Adorno), Damásio tem desenvolvido estudos de carácter científico que vêm demonstrando os vínculos concretos entre o corpo (o corpo com o seu cérebro e o restante sistema nervoso e o sistema endócrino) e os pensamentos. Um golpe vigoroso em determinados idealismos que separam as coisas.

Nesta última obra AD quer demonstrar que por baixo e por detrás das condutas humanas, as mais complexas, encontra-se a homeostasia, esse esforço bioquímico contínuo de todo e qualquer organismo para se conservar vivo. A sua tese de que são os sentimentos que movem as sociedades na sua evolução e constroem com a razão as estruturas culturais e sociais, é acrescentada e reforçada com a enfática homeostasia.

Encontro nas suas teses uma falha. Falha essa que está no núcleo das teorias naturalistas evolucionistas ou, se preferirmos, neodarwinistas. O evolucionismo não admite rupturas entre o natural-biológico e o social. Ora, há realmente uma difrença ontológica entre o natural (a natureza) e o social (as sociedades). Não que ambas sejam de origens diferentes: os seres humanos são natureza. Filosoficamente tudo que existe (que nós sabemos empírica e cientificamente que existe) deriva e é composto de Matéria. Falamos, portanto, de materialismos. O materialismo de AD e da sua escola que remonta a Bentham e J. Stwart Mill (o par prazer-dor que tudo explica) e se enriqueceu com os avanços das ciências da natureza e da Antropologia, não é capaz de aceitar que entre a mão com um polegar oponível e a pintura rupestre, que entre o bipedismo e a propriedade privada, que entre o aparelho fonador e os signos-códigos abstractos das linguagens, que entre a homeostasia e as lutas de classes, existem diferenças que se manifestarão em "leis" e tendências diferenciadas de evolução e transformação. O que não querem admitir é a categoria filosófico-científica com a qual Karl Marx e Engels revolucionaram a História: a categoria de Relação, de relações sociais. A Natureza tambem possui uma história (disse-o Engels na sua "Dialética da Natureza"), porém a história social não copia a história natural, nem os modos de prodfução do viver humano são, ou qualquer um deles o é, "natural". 

AD trabalha com uma noção ideológica; a noção de "natureza humana". Como se esta fosse indiferente às transformações que sobre ela operam as transformações sociais no decurso de milénios. Por isso declara com alguma arrogância que o "comunismo" não é próprio da "natureza humana". Isto sim, é um exemplo claro de como se procura "naturalizar" as relações sociais de produção capitalistas.   

 É verdade, e é justo que se diga, que AD se  esforça com inteligência para articular o "sentimento" de cooperação coma homeostasia (para que, assim, o indivíduo alcance mais vantagens que desvantagens); contudo, esse real sentimento cooperativo ´foi afeiçoado pelas inúmeras peripécias das transformações sociais e negado consecutivamente pela existência de um poder dominante resultante dos maiores proprietários ou ( o que é o mesmo) dos mais fortes competidores (as tribos guerreiras e os impérios).

É verdade que AD não resvala no radicalismo biologista de um autor famoso como Pier Vincenzo Piazza («Homo Biologicus», Bertrand Editora, 2020), mas que a teoria materialista do evolucionismo acaba sempre aí, parece-me uma fatalidade.

Nozes Pires

24/12/2020

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