Cultura-Ípsilon
“Pensar Portugal”
Pela morte de Eduardo Lourenço, os obituários e os discursos lutuosos e de homenagem repetiram um estribilho com encanto musical: “Pensar Portugal”. Assim foi designada a tarefa que Eduardo Lourenço teria cumprido, sobretudo com o seu Labirinto da Saudade, que em má-hora e certamente sem avaliar as consequências ele quis que o subtítulo fosse Psicanálise Mítica dos Destino Português. “Pensar Portugal” é um enunciado que faz parte de uma linhagem à qual pertence a exortação pessoana, na Mensagem: “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”.
“Pensar Portugal”: que entidade é esta que, em si mesma, enquanto nome próprio, se dá como objecto de pensamento? Não de um pensamento definido pelo objecto, os métodos e os fins de uma disciplina (a História, a Sociologia, a Geografia, a Antropologia, etc.), mas do pensamento tout court, extra-territorial e extra-disciplinar, virado para os seus próprios mecanismos generativos. Poder-se-ia então chamar portugalologia a esse saber resultante da tarefa a que tantos, de maneira enfática, chamam “pensar Portugal”? É claramente um nome bizarro e, além disso, com uma terminação que designa o logos científico, uma —logia que esse “pensar” não tem nem os que lhe prestam homenagem querem que ele tenha. Neste sentido, “pensar Portugal” só poder ser uma tarefa infinita e declinada com o verbo no infinitivo. Dizer que Eduardo Lourenço se dedicou a “pensar Portugal” é muito mais convincente do que dizer: “Eduardo Lourenço pensou Portugal”. Na forma passiva, “Portugal foi pensado por Eduardo Lourenço”, também não soa muito bem.
No “pensar Portugal” temos a expressão de um idealismo nacional, a referência ao espaço espiritual da nação (como se dizia em tempos), uma abstracção ou essencialização a que se chega percorrendo a história para a seguir transcendê-la e chegar a uma dimensão a-histórica transfigurada. E, aqui, nesse espaço de ficção, em que a história se torna destino, começam as especulações sobre a identidade. Mas não há razão para começarmos a pensar em coisas sinistras porque toda a fraseologia de que faz parte o “pensar Portugal” não advém da ficção de uma experiência mística comunitária nem se apoiou em quimeras raciais, como aconteceu num certo pensamento alemão. Quando muito, o “pensar Portugal” faz emergir – mais não seja na memória — o programa da chamada “filosofia portuguesa”, que de filosofia teve muito pouco e quanto ao teor de pensamento só com algumas excepções passou de mera afecção.
“Pensar Portugal” não é, evidentemente, o mesmo que pensar sobre Portugal. O “sobre” – e tudo que ele pressupõe — fica elidido. “Pensar Portugal” é pensar no interior e não no exterior, até que o pensador se transforma na coisa pensada. E é esta simbiose perfeita que muitos – tanto os cultores como os detractores — querem ver em Eduardo Lourenço.
De Gaulle proferiu uma fórmula que tem alguma pertinência evocar, neste contexto: “une certaine idée de la France”. A “ideia da França” consiste em transformar numa essência supra-sensível (numa ideia platónica?) o que é da ordem da realidade social e política. A “ideia da França” de De Gaulle é um ideal patriótico e político que tenta responder à perda da posição hegemónica que a França outrora ocupava. O “pensar Portugal” pressupõe também certamente uma ideia de Portugal como figura com algum aspecto metafísico, mas expurgada de qualquer ideal político. O que seduz os oficiantes do “pensar Portugal” é que a nação possa corresponder a uma problemática e se ofereça, como um complexo, a uma análise das profundezas. Nesse aspecto, Eduardo Lourenço deu-lhes alguns motivos de satisfação e mereceu os respectivos elogios. Mas é demagógico e falso pô-lo obstinadamente a “pensar Portugal”, não apenas pela irrealidade de tal objecto de pensamento, mas pelo modo como tal expressão é expurgada de dimensão crítica. Porque não dizemos então que “pensar Portugal” foi também o que fez Ruben A., o autor de A Torre de Barbela? Ou o que fez Armando Silva Carvalho, com o seu Portuguex? Direi, numa resposta breve: porque ambos seguem protocolos discursivos e críticos que não dão azo a qualquer idealização e não perseguem complexos de identidade intemporal, transcendente, trans-histórica, metafísica.
Eduardo Lourenço e o “pensar Portugal”: esta sutura precisa de ser desfeita.
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