- Esta entrevista e as imagens antigas que a acompanham foram originalmente publicadas a 13 de Maio de 2007, na revista Pública
Eduardo Lourenço, que fará 84 anos no próximo dia 23, acabou de publicar mais uma recolha de ensaios: As Saias de Elvira. Esta entrevista podia ter começado por aí, mas não começa. Começa, pode bem dizer-se, pelo princípio, quando a criança que brincava numa pequena e pobre aldeia beirã ainda não sonhava que viria a tornar-se num dos mais importantes e reconhecidos pensadores portugueses contemporâneos.
De S. Pedro do Rio Seco a Lisboa, da Coimbra dos anos 40, que lhe deu a conhecer a geração neo-realista, às universidades francesas, onde viveu as grandes discussões ideológicas do pós-guerra e assistiu ao Maio de 68, esta conversa segue o percurso da sua errância. Não só a geográfica, mas a que define a própria natureza do seu ensaísmo. Um pensamento desabrigado, que navega entre as fronteiras de múltiplas disciplinas sem jamais buscar refúgio nas águas seguras dos saberes estabelecidos.
As entradas que lhe são dedicadas em obras de referência
começam sempre por informar que nasceu [em 1923] numa “pequena aldeia”.
Mas nunca falou muito disso. Como é que foi essa sua infância numa
aldeia beirã?
Nasci nessa aldeia que se chama S. Pedro do
Rio Seco. Deve ser muito antiga. O meu pai encontrou lá uma vez, nuns
campos, uma moeda romana do tempo de Vespasiano. A povoação já vem
mencionada em documentos anteriores à nacionalidade e havia ali um
convento muito importante, de Nossa Senhora de Aguiar, que era um foco
cultural do reino de Leão, a que toda aquela zona, do lado de lá do Côa,
pertenceu até ao tempo de D. Dinis. E essa permanência do leonês deixou
marcas. Na minha infância usava vocábulos que depois verifiquei que as
pessoas não entendiam: eram vocábulos espanhóis, ou leoneses. Por
exemplo, a palavra “enchido”. O enchido é o fumeiro, mas naquela região
designa o campo comunal, onde os animais pastavam no inverno, e no verão
se jogava à malha ou, ocasionalmente, futebol. Em S. Pedro do Rio Seco
havia dois: o “enchido grande” e o “enchido pequeno”.
Vivi ali uns dez anos, mas, curiosamente, a minha aldeia não foi o primeiro lugar de aparição a mim mesmo, como diria o Vergílio Ferreira. Foi o Porto. Vim para aqui menino e terei permanecido até aos três anos. Os meus pais estavam cá quando se deu a famosa revolta de Fevereiro de 1927. Eu já tinha partido. A minha irmã ficou; a mim, mandaram-me para a aldeia. Essa viagem de caminho-de-ferro, acompanhado por uma tia, faz parte da minha pequena peripécia biográfica. Mas as minhas primeiras imagens são do Porto. É inesquecível a imagem do mar. Deve ter sido em Matosinhos: um barco com cores fortes, azul e vermelho, de borco em cima da areia. E também as chaminés das fábricas. Uma imagem que me marcou muito, de um certo terror, foi uma imagem de vermelho – penso que seria um camião que distribuía carnes. É muito curioso que eu saiba que as minhas primeiras imagens são daqui e nunca tenha cultivado qualquer mitologia pessoal nas minhas ligações com o Porto.
O seu pai era capitão...
Nesse tempo de que estou
a falar, era sargento. Frequentou aqui no Porto a escola Raul Dória,
que parece que já não existe. Eram estudos de tipo comercial,
aprendia-se inglês, francês. Mas a qualidade do ensino nessas escolas –
estamos ainda na República – era muito boa. O meu pai ficou habilitado a
poder ler francês e um pouco de inglês, o que não era banal para um
rapaz da extracção dele, e com a profissão que exerceu. Eu fiquei em S.
Pedro e foi lá que fiz a 4.ª classe, embora tenha feito a 3.ª na Guarda.
Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nessa aldeia, muito
pobre, muito representativa do nosso atraso, no sentido civilizacional
do termo. Não havia água nem electricidade. A água só foi posta na
primeira presidência de Mário Soares, a electricidade pouco antes. Havia
uma grande diferença entre S. Pedro e qualquer aldeia do outro lado da
fronteira. Íamos lá fazer compras e já nos anos trinta tinham
electricidade: quase 50 anos de diferença. E aquilo era o faroeste
deles.
Sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde fui um menino aplicado.
Andou no Colégio Militar, em Lisboa. Guarda boas recordações?
Quando se está num colégio interno dos 11 aos 17 anos...
Há sempre algumas boas recordações...
Sim,
mas no início é uma grande mudança, é a verdadeira queda na vida, o
confronto com os outros. E, antes de mais, o corte com a família, quase
radical, porque ficava praticamente o ano inteiro sem a ver, só vinha às
vezes a casa no Natal. Fiz lá amizades, não muitas, mas que durarão até
ao fim da minha vida, ou da dos meus amigos.
Era um colégio de elite. Tinha-se orgulho em andar ali. Uma parte dos filhos da elite militar, mas também social, frequentava aquele colégio. Também havia coisas muito negativas, como as há em todos os colégios internos. O tipo de disciplina não seria o que eu desejaria, mas tinha uma coisa boa: uma espécie de democraticidade efectiva entre os alunos. Como todos tínhamos um número, os filhos da alta burguesia eram reduzidos à mesma escala. Uma opção que ainda hoje se poderia aceitar, ou pelo menos discutir.
Já tinha, nessa época, interesses literários?
A
formação destinava-se, em princípio, à entrada na Academia Militar, mas
o programa acabava por ser o mesmo dos liceus. Eu já nessa altura
comecei a interessar-me um pouco por aquilo a que se pode chamar “os
livros”. Tinha boas notas nas redacções e nessas coisas. A marca mais
forte que me terá ficado dessa época foi o meu gosto pela História. A
maioria dos meus camaradas não se interessava por ela, mas eu tive desde
muito cedo essa paixão pela História. Penso que não foi apenas
adquirida graças a um desses professores que nos marcam para sempre,
Sanches da Gama, que soube mais tarde que era avô de Luísa Costa Gomes,
mas também nas férias em casa. O meu pai tinha deixado em S. Pedro uma
mala com livros: enciclopédias, a História de Portugal do
Fortunato de Almeida, eu sei lá. Como não tinha mais nada para ler,
esses livros de História foram a minha ficção. A maior das minhas
paixões é a História. A História como a ficção suprema da humanidade.
Ainda é hoje a sua maior paixão?
Sim, ainda hoje.
Em 1940 vai para Coimbra, para a Universidade.
É o
tempo em que andamos à procura da nossa própria definição e somos muito
marcados pelos encontros que fazemos. Coimbra já me existia antes de ir
para lá, porque havia na minha aldeia dois estudantes universitários
que falavam muito daquele folclore, daquela mitologia coimbrã. Já sabia
um pouco o que aquilo era, já sabia que existia lá o famoso CADC, o
Centro Académico de Democracia Cristã, porque o abade da minha aldeia
recomendara à minha mãe que eu não deixasse de o frequentar. Penso que
Salazar foi um dos fundadores. Era então o alfobre dos futuros quadros
do regime. É curioso comparar a sede da Associação Académica, um grande
casarão, negro e cheio de fumo, que os estudantes haviam tomado em
tempos – uma acção que ficou conhecida como “tomada da Bastilha” –, e a
do CADC, uma casa moderna, um pouco no estilo art déco, onde
havia jornais e livros e se podia jogar pingue-pongue. Era um ambiente
simpático. Frequentei o CADC durante um ano e fiz lá amigos, como, por
exemplo, o Henrique Barrilaro Ruas. Depois conheci no primeiro ano de
Letras essa geração que se chamou neo-realista: o Rui Feijó, o Carlos de Oliveira, o Egídio Namorado e o Raul Gomes, entre outros.
[Toca o telefone. É alguém que pede um texto a Eduardo Lourenço.]
Já voltamos a Coimbra. Esta interrupção é um bom pretexto
para lhe perguntar se o facto de estar constantemente a ser solicitado
para escrever textos e participar em colóquios não lhe cria uma espécie
de agenda externa? A natureza um pouco dispersiva da sua obra não
resultará, em parte, de escrever muito ao sabor destas contingências? Ou
sente que precisa destes estímulos?
Às vezes pedem-me
coisas para as quais não me sinto motivado, outras vezes são-me mesmo
absolutamente alheias. Mas uma boa parte do que escrevi é de
circunstância e isso contribui, de facto, para acentuar o carácter
dispersivo daquilo que eu nunca considerei uma obra. Vejo-o mais como
uma errância. Deixei-me sempre levar pelas águas do tempo. E como não
tenho projectos de estátua pessoal, é-me indiferente.
É claro que muitas dessas coisas que me são propostas me colocam problemas – às vezes não consigo responder como desejaria –, mas, a título por assim dizer póstumo, sou grato a essa gente que me encosta à parede e me obriga a fazer coisas que eu de outro modo não faria. Vou-lhe dar um exemplo, talvez o mais típico de todos. Foi-me proposto que escrevesse sobre Montaigne. Pareceu-me uma coisa delirante: o que é que um estrangeiro pode escrever sobre Montaigne, a respeito do qual há bibliotecas inteiras? Pensei: não, não vou ter a pretensão de escrever uma linha que seja sobre Montaigne. Mas, depois, um comentário de uma pessoa amiga, francesa, que se espantou, a justo título, que eu encarasse seriamente essa hipótese, despertou o meu amor-próprio. Ainda hesitei durante um mês, até que um dia escrevi mesmo. Acontece que é hoje um dos textos que mais me satisfaz ter escrito.
Mas, sendo essencialmente um ensaísta, não fazia sentido que escrevesse sobre o mestre do ensaio?
Sim, mas não com aquela responsabilização. Pediam-me um livro sobre Montaigne [Montaigne ou la Vie Écrite,
L’Escampette, 1992], a ser editado em Bordéus, terra a que ele, ainda
por cima, está muito ligado. Mas a vida também é feita destes acasos. E
destes desafios.
Retomando essa ideia de que é um estrangeiro na Europa. A
verdade é que vive em França há muito tempo. Porque é que não seguiu o
trajecto de muitos outros autores, dos quais às vezes até é pouco
conhecida a origem nacional, que se interessaram pelos grandes
escritores e pensadores europeus? Apesar de ter páginas sobre Kierkegaard,
ou Camus, ou Sartre, o essencial da sua obra é sobre Portugal e os
autores portugueses. Por que é que escreveu sobre o Antero, digamos, e
não sobre Baudelaire? Não sente que poderia ter tido outro percurso,
mais próximo, por exemplo, do de um George Steiner?
Talvez
por um certo complexo provinciano, ou provincial. Não se levam laranjas
para Setúbal. Mas uma parte da minha atenção foi mais tarde desviada
para a Europa, só que era uma Europa que não funcionava como Europa, e
que se chamava Espanha. Agora, sim, a Espanha é muito europeia, mas
naquele tempo a Europa, para nós, ficava além dos Pirinéus. A seguir ao
Maio de 1968, e por causa dele, começou a aparecer nas universidades
francesas um género de estudos que até aí não existiam, de conceito
anglo-saxónico. Era o de História das Ideias. Eu estava então em Nice,
no departamento de Estudos Hispânicos, onde ninguém queria dar essa
disciplina. Como a minha mulher é hispanista e eu começava a
interessar-me pela cultura espanhola, e tinha formação em História e
Filosofia, dei esse curso durante vários anos na Universidade de Nice.
Tudo isso está inédito, e está em francês. Provavelmente é muito mais texto do que a soma de tudo o resto que eu escrevi, mas nada foi publicado e eu não tenho paciência para reorganizar aquilo. Dei cursos sobre Unamuno, Ortega, Luis Vives, e também sobre Antonio Machado ou Guillén. É uma coisa que ninguém sabe. Nem eu. Como estava a tratar de matéria que para mim era nova, muitas dessas lições estão escritas, ao contrário do que acontece com as minhas aulas de literatura e cultura portuguesas, para as quais nunca escrevia nada. É só pegar naquilo, traduzir e copiar. Há tempos tive de dar uma conferência sobre Unamuno, em Salamanca, e traduzi-a directamente de um desses textos, escrito em 1973. Não havia nada a alterar. Nem todos estarão no mesmo estado de acabamento, mas só a minha grandessíssima preguiça é que me tem impedido de publicar um volume de ensaios ibéricos. É a primeira vez que estou a vender esta mercadoria em público.
Quanto ao Steiner... Eu estou em França há meio século, tinha estado na Alemanha e conheci um pouco a Itália. Sim, podia ter tido um percurso mais próximo do de um Steiner. Mas Steiner tem a vantagem da sua formação literária, e linguística. Além disso, ele, sim, é mesmo de uma cultura da errância por excelência: a cultura judaica. Um português, quando sai de casa, sai mesmo para outro mundo. Mas pensa no que deixou, mais do que se estivesse em casa.
Ainda a propósito dos
ensaios que vai deixando para trás. Alguém que descubra um livro seu e
que sinta vontade de ler a obra toda, terá dificuldade em seguir,
cronologicamente, o seu percurso. Quase todos os livros são recolhas de
ensaios dispersos e, num mesmo livro, a distância entre as datas de
publicação original de dois textos pode ser de vários anos.
Sim, o meu livro mais orgânico é mesmo o Pessoa Revisitado, mas o ensaio sobre Kierkegaard não o é menos, ou mesmo O Espelho Imaginário,
de que pouco se fala. Todo este “circunstancialismo” a que se refere é
uma coisa muito ibérica. Unamuno, tirando a ficção e a poesia, só tem um
livro ou dois mais orgânicos, e uma parte da obra de Ortega também é
assim, recolhas de ensaios.
Não escreve a pensar nos livros que depois publicará?
Não. Às vezes vejo que tenho coisas que podiam dar um livro e organizo-o.
Os
seus livros são organizados segundo lógicas temáticas e não está em
causa a sua coerência interna. Mas estou a pensar, por exemplo, nos
volumes sobre questões europeias. Na Europa Desencantada há um texto escrito em 1992 e outro em 2000. Entre ambas as datas, mudou muita coisa na Europa.
Exacto.
Já as próprias edições desses livros noutras línguas, em francês ou
espanhol, têm diferenças entre elas. Há uma espécie de organização
caótica. Claro que as datas têm importância. Na política, as coisas às
vezes mudam numa questão de dias.
Já deve ter reparado que costumo assinar os textos, mesmo os que saem na imprensa, com a palavra “Vence” seguida da data. É uma coisa de que não gosto muito, porque parece um bocado pedante, mas quando se trata de comentar assuntos actuais, sobre os quais muitos outros vão escrever – e tendo em conta o tempo que passa entre a redacção do texto, o envio para Portugal, e a publicação –, prefiro não estar sujeito a que depois digam que copiei alguém. É uma preocupação um bocado idiota, mas a razão é esta.
A maior
parte dessas suas colaborações na imprensa a pretexto de acontecimentos
da actualidade mais imediata, acaba por nunca ser recolhida em livro.
Todas
essas minhas intervenções políticas e para-políticas são marcadas pela
contingência mais óbvia. Às vezes resultam em livros, mas que nunca
reedito, como O Fascismo Nunca Existiu [1976] ou O Complexo de Marx [1979].
Estão muito marcados por um desejo de intervenção numa situação
concreta. Alguém poderá vir depois dizer se aquilo tem interesse ou não,
mas será já um olhar de historiador. A mim, pessoalmente, não me
interessam nada. Desses todos, o único que poderia merecer uma segunda
edição é Os Militares e o Poder [1975],
mesmo sendo um assunto que já não suscita o mesmo interesse em Portugal
que suscitou na época. O livro saiu logo a seguir ao 25 de Abril, mas
já era “posterímero”, porque devia ter saído antes. Mas sabia que, se o
publicasse, nunca mais cá podia voltar.
Regressemos,
então, a Coimbra. Fez amizade com o Carlos de Oliveira e com a geração
dos neo-realistas. Nunca se aproximou, ou se sentiu tentado a aproximar,
do PCP?
O PCP, sabe, não se podia nomear. Era uma realidade
clandestina, no sentido mais próprio do termo. Nunca perguntei ao
Carlos de Oliveira se estava ou deixava de estar no partido, era uma
coisa de algum modo privada. Quando existe um sistema de suspeita
generalizada, as palavras têm outra força, outro peso, e é preciso lidar
com elas cautelosamente. Mas também, na altura, nos anos 40, eu tinha
18 anos, e a minha consciência política era muito ingénua, muito
incipiente. Foi através do contacto com esses amigos que eu me
consciencializei um pouco, como então se dizia. É certo que já existia
algo a que se podia chamar opções, mas não me era muito fácil admitir
nenhuma delas. Fui muito próximo, em termos de camaradagem, de toda essa
gente, mas era mais uma aproximação pela negativa, uma atitude de ser
do contra, e sobretudo contra o discurso cultural do Estado Novo.
Sentia-me próximo dessa nova geração, que discutia, na medida em que
isso era possível, que enviava uma mensagem de recusa da ordem
estabelecida. Coisa típica, aliás, de uma tradição de Coimbra. Desde a
Geração de 70 que são do contra, como todas as gerações que se prezem.
Isso hoje não é um pouco menos óbvio?
É menos
óbvio porque vivemos imersos numa pluralidade de discursos, o famoso
pós-modernismo. Mas naquele tempo nem sequer era ainda o modernismo.
Escreveu em 1968 Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista.
Hoje há um pouco o consenso de que o único grande escritor dessa
geração foi o Carlos de Oliveira. Acha que há ali outros nomes
relevantes, porventura injustiçados?
Tudo depende do ângulo
em que nos colocarmos. O neo-realismo também foi um crisma, uma opção.
Recebeu esse nome porque devia querer significar uma certa continuidade,
uma nova versão, da tradição que o realismo literário instituíra em
Portugal com Eça de Queiroz: uma literatura com um grande conteúdo
crítico da realidade, em particular da portuguesa. O neo-realismo seria o
realismo do tempo da guerra e do pós-guerra. Na verdade, devia ter-se
chamado realismo socialista, mas como não podia ter esse nome, o Joaquim
Namorado, creio que foi ele, inventou a designação neo-realismo. Mas
era apenas uma máscara.
Os neo-realistas eram jovens militantes ou simpatizantes do PCP, uma organização extremamente minoritária e clandestina, e na qual os intelectuais eram também minoritários, já que o grosso da militância era operária. Aquilo era uma coisa muito de Coimbra, e havia uma grande diferença para a realidade de Lisboa. Eu não conhecia os neo-realistas de Lisboa, nem sequer tinha os livros de outros poetas do mesmo círculo. Por isso é que, quando escrevi Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, já em França, não falei nem do Arquimedes Silva Santos, nem do Mário Dionísio, nem do Manuel da Fonseca, que era muito popular e que, talvez mais do que ninguém, contribuiu para divulgar esse tipo de poesia com intenções de intervenção. Ele tinha humor, coisa invulgar naquela área, como também o tinha o Joaquim Namorado, embora de um género mais sarcástico. Já o Carlos de Oliveira não tem essa veia, tem uma veia romântica.
O seu livro, sendo um ensaio literário, é também um testemunho de quem viveu essa época?
A
verdade é que escrevi esse livro para me reconciliar com o Carlos de
Oliveira, não ideologicamente, mas pessoalmente. Por isso é que a parte
que trata dele é particularmente cuidada. Eu era muito amigo do Carlos
e, por ocasião de umas eleições quaisquer, houve uma trapalhada entre
ele e o dr. Paulo Quintela,
que também era da oposição, mas da corrente liberal, ou
social-democrata, embora não se usasse o termo. Não sei reproduzir bem a
história, mas era já o PCP com aquela coisa de ser muito severo com
quem não alinhava pelas posições deles.
O Carlos parece que disse que uma delegação desses liberais que fora a Lisboa tinha traído, ou feito isto ou aquilo. Eu estava ali metido porque o Carlos me tinha falado no assunto, e eu falei ao Torga, que por sua vez contou ao dr. Quintela. Quando soube das acusações do Carlos de Oliveira, o dr. Quintela ficou danado e houve um confronto muito chato numa livraria, que acabou aos empurrões. Uma coisa horrível. O Carlos achou que eu tinha estado na origem daquela peripécia, e eu fiquei com muita pena de nos termos afastado. Penso que a motivação para escrever o livro foi essa, ainda que também houvesse da minha parte uma certa nostalgia por essa que tinha sido a minha geração. O livro é uma espécie de romance disfarçado. Deve ser a coisa mais sincera, mais no primeiro grau, que eu escrevi.
Ainda antes disso, tinha escrito os dois volumes de Heterodoxia.
[O primeiro saiu em 1949 e o segundo em 1967]. Se, num plano mais
filosófico, os seus textos entendem a heterodoxia como algo intrínseco
ao humano, o seu livro também se deixava ler como uma contestação das
duas principais ortodoxias políticas da época.
Sim, sim,
sem dúvida. Esse livro foi uma ruptura. Às vezes temos umas audácias que
não merecemos. São as verdadeiras. Essa audácia deixou-me isolado. Ora,
a gente precisa de um lugar na caravana da vida, em suma, de uma
família. A minha família era essa gente e, com Heterodoxia,
fiquei só. Já me tinha afastado do catolicismo canónico, do CADC, e
agora afastava-me dos outros. E ainda por cima tinha ido para o
estrangeiro. Sei que aquele grupo de Coimbra ficou muito surpreendido e
muito chateado quando o livro saiu. Andaram para lá a chamar-me traidor.
Mas eu tinha feito alguma promessa? Tinha jurado alguma coisa? Eles
sabiam muito bem que havia diferenças entre nós. Tanto que, quando na Vértice aparecia
alguma coisa que tocava em domínios que não lhes eram muito familiares,
recorriam a mim. Lembro-me que quando saíram dois volumes do Romain
Rolland sobre o Charles Péguy me disseram: “Tu, que és lá do
catolicismo, faz aí qualquer coisa sobre isto”. E eu escrevi um texto.
Acho até que foi nessa altura que recomecei a ler a fundo Péguy, que
depois me marcou muito. Eles sabiam que eu era um passarinho, um
passarinho implume, mas que não pertencia propriamente àquela gaiola.
E o que determinou o meu afastamento foi um acaso. Eu frequentava aquela espécie de Europas culturais representadas pelos institutos que existem no interior das universidades e, um dia, num instituto italiano, descobri um calhamaço intitulado Il Crollo dell’Utopia [tradução de Assignment in Utopia, 1937], de Eugene Lyons, um famoso jornalista americano que tinha estado em Moscovo durante os célebres processos de Estaline. Era uma descrição detalhada de toda aquela tragédia, aquele drama cultural e ideológico. Mesmo antes de aparecerem aqueles livros famosos dos anos 40, como O Zero e o Infinito, do Koestler, eu já estava perfeitamente elucidado.
Como é que foi mudar-se de Portugal para França, naquela época?
Imagine
o entusiasmo e o espanto de chegar a Bordéus [em 1949] e, na rua
principal, ver uma grande faixa de propaganda do Partido Comunista
Francês. Veja o que é sair do país de Salazar, atravessar o de Franco,
que ainda era bem pior, e chegar a um sítio onde aquilo era permitido,
como uma coisa normal. Naquele momento, a França era o país da
liberdade. Eu, que aqui cortara com os meus amigos comunistas – enfim,
deixei de os ver, mas nunca cortei com eles: o Joaquim Namorado
chamava-me “reaça”, mas sempre com um grande sorriso –, fui-me dar lá
fora com muita gente do partido. Mas não era o mesmo PC, era um PC que
culturalmente estava sob o fogo do olhar dos outros e que era o actor e o
objecto de uma discussão que durou anos. Quando eu cheguei a França, o
PCF era dominante no plano cultural. Mesmo o Sartre, embora tenha
travado a sua guerra, sentia-se muito fascinado. Era o espírito da
época. Eu sempre estive interessado nessas discussões, e fui seguindo o
que acontecia, mas as minhas certezas em relação ao que não podia
admitir nunca variaram. É claro que havia a esperança de que as coisas
melhorassem. A URSS podia ter seguido outro caminho, as coisas podiam
ter acontecido doutra maneira.
Uma das frases mais profundas que alguma vez li é do Pascoaes: “O futuro é a aurora do passado”. É mesmo isso. O tempo vai re-iluminando o passado de uma outra maneira. Naquela altura só se via o mundo capitalista e, do outro lado, a URSS. Uma guerra fria com possibilidades de se tornar quente. Os espectadores tinham de tomar partido, a menos que não estivessem neste mundo. Era uma discussão infinita entre a democracia burguesa, no melhor dos sentidos, e essa nova proposição que representava a Europa de Leste, dominada pela URSS. Mas a verdade é que não dávamos muito pelo principal actor, que já então eram os Estados Unidos.
Formei-me a sério nessas preocupações de tipo político e ideológico em França, porque a discussão era contínua. Se estivesse na Inglaterra, teria sido diferente. Mas ali era impossível escapar. E tínhamos a convicção de que estávamos a discutir o futuro do mundo, até pelo papel cultural da França, que ainda era muito importante. Estou mesmo convencido de que uma parte daqueles desvios, daquelas estranhezas da União Soviética, não teriam sido possíveis sem a conivência da cultura francesa. No fundo, penso que a cultura francesa foi verdadeiramente a grande sala de propaganda do estalinismo, mas também o lugar onde ele foi discutido e tomado a sério. Também se discutia na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas não naquela tradição hegeliana e marxista de pensar que era a da Europa em geral, e da França em particular. Daí o papel que teve alguém como Sartre.
Não é alucinação nossa pensar, retrospectivamente, que era assim. O que acontece é que a França já não tem esse papel, mas na época tinha-o. Creio que o que a galáxia marxista, como se lhe chamou, deu à experiencia soviética foi muito importante, e nem sempre positivo. No plano cultural, foram os Aragon, os Éluard (numa primeira fase), os Pulitzer, os Garaudy, e depois o Edgar Morin daquela altura, e o Sartre, e o Merleau-Ponty. Quando se pensa que Merleau-Ponty escreveu um ensaio inteiro, chamado Humanismo e Terror, a racionalizar e a querer compreender como fazendo parte da história do mundo, e sobretudo da história ideológica do Ocidente, os comportamentos do Vichinsky, aqueles falsos processos de Moscovo, que eram julgamentos policiais do mais baixo estofo, vemos bem em que delírio a inteligência – os melhores, como o próprio Merleau-Ponty –, pode cair em determinados momentos. Eu participava nestes debates como observador, e estar lá não era o mesmo que estar em Portugal.
A cultura de referência marxista era hegemónica nas universidades francesas, especialmente em alguns departamentos, como o do Hispanismo, onde um dos jovens mestres, Noël Salomon, especialista de Lope de Vega, até era um cunhado meu. Eles estavam convencidos de que o partido jogava nessa frente de intelectuais a sua maior carta. Isto terminou em Maio de 1968, que, na aparência, foi contra o gaullismo, mas, na verdade, era um outro marxismo, uma outra esquerda, que vinha combater o PCF. E eles bem o perceberam, porque, quando chegou a hora, liquidaram o movimento, que era uma aventura que não interessava nada nem à URSS nem ao partido.
Afastou-se
cedo do catolicismo e não se sentiu tentado pelo comunismo. No entanto,
quem lê os seus textos mais recentes, fica com a impressão de que acha
um pouco ingénuo que a Europa tenha visto no desmoronar do império
soviético apenas uma boa notícia...
Sem dúvida. Não há aqui
uma linha recta, não se passou de uma coisa sombria para se entrar na
luz. É uma luz relativa. E o que se passou na URSS ao longo de todos
esses anos, mesmo com os horrores que sabemos, não se passou em vão.
Este país de hoje é herdeiro desse, não tem outra cultura teórica senão a
que já tinha. Os capitalistas de hoje e os comunistas de ontem são os
mesmos, são literalmente os mesmos. O presidente da República veio
directamente do KGB. E não é só a herança dos 70 anos de revolução
bolchevique, é também o que está por trás disso, toda a história russa. E
é preciso ter noção do peso que representa esse regresso da Rússia,
esse “outra vez a Rússia”.
É lamentável e dramático que a Europa pense que está completa sem a Rússia. Discute-se o problema de saber se a Turquia, que foi o inimigo tradicional desta Europa, deve entrar na nossa União – e até há razões pelas quais se possa admitir que o deva fazer –, e ignora-se a Rússia, que faz parte da Europa desde que nasceu, ou, em todo o caso, desde que se converteu à fé ortodoxa. Pode a própria Rússia não estar interessada, ou não estar nas condições que esta Europa em construção impõe aos candidatos à adesão. Mas o que é certo é que, assim, a Rússia é obrigada a fazer o seu próprio jogo. Não vai jogar com os Estados Unidos, por causa da oposição histórica, mas vai re-jogar, por exemplo, com a China. E a Europa assiste a isto sem saber o que há-de fazer. A Rússia é o maior parceiro que a Europa tem, mas andamos a pedir batatinhas, para o gás, para isto e para aquilo. Para mim, é espantoso haver esta cegueira.
E como é que os Estados Unidos veriam uma aproximação mais decisiva da Europa à Rússia?
De
facto, neste momento, o problema da Europa é a América. Eles não sabem o
que fazer de nós, mas continuam a ocupar-se e a preocupar-se connosco
como se o soubessem. Nós é que não sabemos mesmo o que fazer da América.
Passou o tempo em que tínhamos a veleidade de pensar que eles eram uns
selvagens e nós a nata do mundo. E agora eles operam como se fossem
senhores do planeta. De algum modo, são-no.
Há pouco ia também dizer que, no que respeita ao catolicismo, parece agora sentir-se, da sua parte, não direi uma nostalgia...
Se
não fosse um mau exemplo, mas muito compreensível, lembraria a geração
de 70: tiveram todos uma juventude incendiária e iconoclasta – uma coisa
típica, que em geral se repete de geração em geração –, para depois
regressarem à missa, mas já era uma outra missa. Eu também me sinto um
pouco assim, até pela idade e por esta fase crepuscular da minha vida.
Quando se recebeu, na ordem da emoção e dos sentimentos mais profundos,
um baptismo – e não falo só do baptismo propriamente dito –, quando se
teve esse tipo de formação, ela fica sempre no fundo de nós. E a minha
família era organicamente catolicíssima, tive uma mãe piedosa, até mais
do que isso. Uma pessoa nunca mais arranca desta matriz. Nesta hora de
revivalismos religiosos, e ao mesmo tempo de desertificação, pelo menos
aparente, das formas de religião que condicionaram a vida da Europa
durante tantos séculos, eu, francamente, considero que os valores do
cristianismo não desapareceram, se é que alguma vez entraram como
deviam. Penso que esses valores são ainda o futuro do passado, e não a
sua morte. Valéry dizia que as civilizações são mortais. As religiões
também, mas são menos mortais do que as civilizações.
E como vê a Igreja Católica, enquanto instituição?
Creio
que a Igreja só está por intermitência à altura do seu próprio passado.
Curiosamente, este papa [Bento XVI], que é tido como um papa
reaccionário, no sentido de vir reiterar uma espécie de dogmática,
sobretudo na ordem ética, que caracteriza a mensagem católica, é, a
outros níveis, um papa menos reaccionário do que as pessoas julgam. Ele
veio despolitizar o discurso da Igreja e é um grande teólogo. Foi o
primeiro papa a fazer uma pastoral, ou talvez uma encíclica, já não sei,
sobre o tema do amor, na qual o “Eros” é tratado nas suas diversas
conotações, e não apenas nessa conotação negativa e pecaminosa que o
conceito tinha arrastado até hoje na visão cristã do mundo. As pessoas
não dão atenção a estas coisas, mas são muito mais reveladoras do que as
posições, mais fáceis, na ordem ideológico-política. Gostei muito desse
texto, que cita Nietzsche sem “problemas de pluma”. Nietzsche!, repare
bem, o assassino de Deus, o Anti-Cristo. Nesse capítulo, é um papa muito
mais aberto do que o anterior, o célebre atleta de Deus. Em todo o
caso, estamos num mundo em que nem a palavra dele, nem a de ninguém, tem
qualquer eco. Qualquer vedeta de televisão é muito mais importante do
que ele. É pena.
A propósito de “Eros”, as poucas reacções que vi ao seu último livro, As Saias de Elvira, levam-me a pensar que ele foi recebido com uma ligeira perplexidade...
Sim,
sim, desde o título. Devem ter pensado: mas isto é um erotismo serôdio,
este tipo não está bom da cabeça. A verdade é que eu dei um curso na
América, em Providence – esse é que tenho pena de não estar publicado,
mas, como foi oral, tenho de o escrever, e não tenho tempo nem
paciência... – sobre Eros e Cristo, que vai desde Almeida
Garrett até Jorge de Sena. Ou seja, uma tentativa de ler esses nossos
dois séculos, do Romantismo ao Jorge de Sena, não segundo a lógica
tradicional das escolas que se sucedem empiricamente umas às outras, mas
descobrindo um núcleo central em torno do qual as coisas funcionassem.
Claro que é mais fácil fazer isso na ordem da poesia do que na da
ficção, mas ambas obedecem aos mesmos cânones. No ano passado, quando vi
que estava a chegar ao fim do ano sem publicar nenhum livro,
lembrei-me, à última da hora, de organizar este livrinho, mas ele não
corresponde exactamente ao que eu disse nos Estados Unidos.
As pessoas admiraram-se com As Saias de Elvira, mas eu até fui o autor – e não me gabo muito disso – do primeiro texto escrito em Portugal sobre o marquês de Sade. Foi a pedido, como sempre, e neste caso do José-Augusto França. Eu já estava lá fora. Quase não sabia que o Sade existia. Não fui ler os livros todos, mas aquilo lê-se um e basta, que é muito provocador e um pouco chato. Publiquei o texto na Unicórnio. Como não se podia ter revistas, o José-Augusto França inventou aqueles cadernos: depois veio o Bicórnio, etc., até ao Pentacórnio. Esse texto sobre o Sade foi uma dessas audácias que nos ultrapassam.
As Saias de Elvira reúne textos sobre vários escritores, mas é clara a sua predilecção pelo Eça.
O
Eça de Queiroz foi o primeiro autor moderno que eu li. Tinha chegado a
Coimbra, à Faculdade de Letras, e um dia, como eu levava um livro
debaixo do braço, um colega perguntou-me o que eu estava a ler. “É um
romance: ‘Nossa Senhora de Paris’, de Victor Hugo”. Ele disse-me: “O
Hugo não é um romancista”. “Ai não? E quem é que é?”. Respondeu-me que
romancista era o Eça de Queiroz. Fui directamente dali à biblioteca,
procurar esse tal Eça de Queiroz. Comecei pel’O Primo Basílio e fiquei logo elucidado para o resto dos meus dias.
O Eça é uma referência fundamental para toda a minha geração. Ele morre em 1900 e, embora já fosse célebre, é então que a Pátria realmente o descobre. E, a partir daí, em Portugal, é tudo mais ou menos queirosiano. A Presença marca depois uma certa reacção. É visível que a grande referência do Régio é o Camilo. E o Torga idem aspas: gostava do Eça, e até andou a comprar uma cadeira que tinha sido dele, mas aquele Eça escarninho, muito Fradique Mendes, não ia lá muito bem com o seu telurismo.
A minha geração tenta recuperar essa outra geração para quem a questão social tinha sido importante. Naqueles desfiles da Queima da Fitas, andávamos por lá, já bem bebidos, com uns cartazes a dizer que éramos a nova geração de 70. Até o neo-realismo se considerou um pouco uma outra forma de queirosianismo, mas sem a ironia e o humor.
Em As Saias de Elvira também realça a modernidade do Eça, por contraste com a dos seus companheiros geracionais.
A
diferença entre o Eça e os outros é que era o mais viajado. Chegou a
França quando já conhecia bem a América e tinha uma noção clara do que
aquilo era. Parece que teve uns amores em Havana. A sua visão era muito
cosmopolita e universalizante. Todos os outros são mais provincianos, na
ordem dos sentimentos e na maneira de ser. O Eça também teve duas
fases, porque depois quis regressar ao ninho paterno. Mas viveu, de
facto, a crise universal da civilização, e interessou-se por tudo. Era
um homem mesmo muito inteligente, e com uma graça que nenhum dos seus
companheiros tinha. O Oliveira Martins, ao lado dele, é um provincial.
Como eu.
Esse sarcasmo do Eça, se não excluía o afecto que
tinha por Portugal, também apresentava o país como uma coisa sem
remédio, sem saída. Um olhar que hoje se pode encontrar, por exemplo, no
Vasco Pulido Valente...
Sim, sim, vem dali direitinho.
... eu ia perguntar se a sua obra, desde O Labirinto da Saudade, não passa também um pouco essa ideia de que o país sofre de uma espécie de bloqueio profundo, e não há volta a dar-lhe?
A
história de Portugal é, de facto, singular. Os portugueses foram para
todo o lado, mas nunca saíram, levaram a casinha com eles. Fizeram a
mesma coisa na Europa. Salvo uma elite, que se preocupava com o que se
passava lá fora – e imitava ou recusava –, a todos os outros foi a
Europa que lhes chegou: veio por aí abaixo com os caminhos-de-ferro.
Veja-se que o TGV francês já vai em 582 km/hora e o nosso ainda não saiu
na estação. E até se percebe que o Governo hesite nestas opções, porque
se calhar não há sequer gente que chegue para ir a Madrid.
A geração de 70 foi a primeira a dar-se conta de que, com o Sud-Express, a Europa lhe tinha chegado. Primeiro veio o Napoleão, depois algumas ideias e livros, e finalmente a Europa entrou materialmente por aqui dentro, como aconteceu em Espanha.
Mas a nossa tendência é a de vivermos guetizados. Agora estamos todos, seja aqui ou na Patagónia, a ver o mesmo ecrã. É como o cosmonauta que viu a Terra de fora pela primeira vez. Só que agora a vemos na televisão ou na Internet. No entanto, a verdade mais profunda é que a televisão serviu, sobretudo, para aproximar internamente o país. Vila Real e Bragança estão em Lisboa e vice-versa. O país está mais pequeno, mais compacto. Mas, ao mesmo tempo, há uma auto-guetização. Veja um acontecimento como o das qualificações académicas do primeiro-ministro, sem dimensão, sem interesse, nem dentro nem fora de fronteiras, mas que pode ocupar o país um mês inteiro – e ainda a procissão vai na praça. Isto numa altura em que se estão a passar no mundo coisas importantes, que interessam aos destinos da humanidade.
A televisão tem esta capacidade de estar em toda a parte, mas é um espelho que também nos pode reduzir à dimensão de um quarto de dormir. Estamos todos na mesma casa-de-banho. Continuamos numa ilha, agora com vistas para o mundo inteiro, mas que são só vistas. O que nos interessa mesmo é o que se passa cá em casa. Mais uma vez, o Eça ilustrou isto: “O que nos interessa é o pé da Luisinha”.
Os jornais ocupam-se do que acontece lá fora e caem-nos aqui as notícias a dizer o que se passa no mundo. Mas a única coisa que verdadeiramente nos interessa, na ordem internacional, é Timor, e interessa-nos porque que foi nosso, porque se fala lá a nossa língua. Para tudo o resto, estamo-nos nas tintas, são apenas fait-divers para divertimento do nosso tédio.
Acha que a Europa não nos interessa?
A
nossa entrada na Europa foi um acontecimento capital na história
portuguesa moderna. Agora estamos na Europa, politicamente e
comercialmente, a tempo inteiro. O nosso espaço é objectivamente o da
Europa. As nossas empresas têm de ter uma dimensão europeia, se não
afogamo-nos aqui e enfrentamos uma regressão que não poderemos suportar.
Mas nem por isso conhecemos mais a Europa. Não é só Portugal. Os países
continuam culturalmente muito em casa, separados não só por uma
história de séculos, mas pelas suas diferentes línguas. E nada separa
mais do que as línguas.
Quantas mais línguas falamos, mais pátrias temos. E agora temos todos uma espécie de nova pátria, que é o inglês. Ontem assisti a uma coisa fabulosa. O filósofo francês Jacques Rancière veio aqui ao Porto falar da perda do olhar crítico no actual discurso sobre o mundo, e fez a conferência em inglês. Um europeu francês, língua de cultura dominante durante três séculos, veio cá falar em inglês. No final, o Guilherme de Oliveira Martins, que era o moderador, fez-lhe uma pergunta em francês e ele, francês, respondeu em inglês. Uma coisa surrealista, mas que é típica deste mundo em que vivemos. Um filósofo conhecido e importante, ao mesmo tempo que faz um discurso muito crítico de alguns dos efeitos da globalização, assume, quase como um reflexo, o inglês como língua da globalização.
As novas gerações têm agora essa leitura do mundo em inglês, para efeitos práticos. A alguns o inglês também lhes permitirá aceder a uma grande literatura. É uma coisa excelente. Como o foi o francês na minha geração.
Faz um balanço negativo dos efeitos da televisão, designadamente em Portugal?
O
paradoxo é que este estar em toda a parte e não estar em nenhuma, é
também uma forma de solidão. E, talvez como forma de nos defendermos
dessa dispersão, dessa ubiquidade, em vez de sairmos e voltarmos a casa,
como fez a geração de 70 – quero estar em Paris e depois quero estar no
Douro, em Tormes –, agora queremos mesmo é estar numa Tormes
permanente, com a televisão a fornecer-nos as vistas. Isto tem coisas
positivas, mas claro que a televisão podia fazer mais: em vez de nos dar
um fluxo contínuo de telenovelas medíocres (com raras excepções), podia
aproveitar para reciclar as grandes páginas da nossa própria ficção,
mais do que faz.
Eu não a ponho em causa. Vejo muita televisão. À noite, quando não tenho mais que fazer, vejo televisão. Sobretudo noticiários, mas também o canal ARTE, que tem coisas que os outros não têm. A televisão pode oferecer momentos muito interessantes. Pode ter-se ali bem, com agrado, uma espécie de cultura de bolso. Mas uniformiza os conhecimentos e os comportamentos de um país – os bons e os maus – a todos os níveis. Claro que a informação que transmite é importante, mesmo se muito centrada no fait-divers nacional. E lá fora até há várias muito piores do que a portuguesa, que só vivem de sexo e violência, como a espanhola. A coisa aqui é mais moderada. Em França, a televisão é muito redutora. A imprensa é muito mais variada, e até a rádio. A televisão tem de cobrir Paris, para a cidade-luz poder iluminar a nação, mas não pode passar, também, sem todo o fait-divers de província, senão fica sem audiência.
A verdade, lá ou aqui, é que se a televisão tivesse outro tipo de exigência, não tinha público. Em Portugal, ainda assim, há essa coisa boa de passarem os filmes com legendas. Lá fora, só por excepção é que se consegue ver um Bergman no original.
E jornais? O que é que lê diariamente?
Sou
um caso quase patológico. Passo muito tempo a ler jornais. Como não
faço nada, leio jornais. Tenho de acabar com isto, que me arruína.
Compro sempre uns 6 jornais. Desde que estive em Itália, ganhei o gosto
de ler o La Repubblica. É um jornal que eu leio rapidamente, com aquela retórica toda, aquela “commedia dell’arte”
da política italiana – são sempre os mesmos –, mas tem páginas de
análise política, e de cultura, muito bem feitas. Também me habituei a
ler o El País. Leio o Le Monde, que são dois “Mondes”, mas já não sou tão fã como fui em tempos. Antes lia-o como a uma espécie de Bíblia. Também leio o Libération,
o que é paradoxal, porque é um jornal com muita coisa que eu detesto.
Mas tem um olhar muito original e diferente, onde o cultural abarca
tudo: o futebol pode ter a mesma atenção que o grande fait-divers político. E tem também aquilo que lhe ficou desse revolucionarismo do Maio de 68.
Depois, o Figaro, um jornal que durante anos não li por ser tão conotado com a direita – e numa certa fase era mesmo de direita. Isto é também um sinal de que, politicamente, estamos no tal famoso pós-modernismo: os jornais que têm opções políticas e culturais muito fixadas perdem leitores e morrem. O Figaro, em matéria de informação, mas principalmente no comentário e na crónica, é hoje talvez mais interessante do que o Le Monde, porque tem colaboração de gente muito variada e de todos os sectores. E deixei para o fim a novidade, que confirma as suas suspeitas sobre o meu catolicismo: sempre que posso, leio o La Croix, que é um jornal pequenino, mas muito bem feito. É o mais “limpo” dos jornais franceses. E leria os jornais portugueses se não tivesse deixado de os receber. Cortaram-me a colecta, como dizia a minha tia. Os únicos jornais portugueses que leio são os que os meus amigos da província me mandam: o Jornal do Fundão e dois jornais da Guarda. Antigamente, quando lá estava o António José Teixeira, recebia o Jornal de Notícias, que é um bom jornal. Depois deixei de o receber. O PÚBLICO, já há muito tempo que não mo mandam. De modo que estou um pouco às cegas quanto ao país, não reajo muito às coisas que aqui se passam porque não tenho informação. Após o 25 de Abril, quando eu também era mais novo, o que se passava em Portugal era vital para mim e para muita gente, e nessa altura escrevia muito e andava um pouco nas bocas do mundo. Mas depois acabou-se.
Foi toda a vida professor universitário. Como é
que vê esta redução drástica, pelo menos em Portugal, dos alunos que
procuram cursos de literatura e de estudos clássicos? Não havendo
procura, o que é que se faz? Fecha-se? Seria defensável chegar-se a um
ponto em que, por exemplo, não houvesse onde estudar latim?
Numa
lógica pura de mercado, só quem fornece um ensino que tem efeitos na
ordem prática é que pode justificar a sua existência. A tradição, pelo
menos desde o Renascimento, foi a de que o Estado achava que um certo
número de estudos eram necessários à formação do “honnêt homme”,
como dizem os franceses, e que uma pessoa não podia fazer estudos
humanísticos sérios sem conhecer o latim, e até o grego. Mas eram, de
facto, estudos de uma elite, estudos de luxo.
Os países precisam de saber o que querem, e particularmente os países europeus que se enraízam nessas duas referências, já que elas são o fundamento da nossa própria identidade, a título histórico e simbólico. Compete às Faculdades de Letras, tenham esse ou outro nome, tomar uma opção. Eu penso que, independentemente dos seus efeitos práticos, os ensinos clássicos são formadores em si mesmos. Também precisamos de uma certa cultura do inútil, no sentido empírico do termo. Curiosamente, em alguns países onde as universidades atravessam crises semelhantes, tem-se assistido a revivalismos paradoxais, a um novo interesse por essas disciplinas, que estão a ter algum sucesso, resultante da sua própria raridade. Mas penso que vamos entrar num mundo em que a cultura clássica, grega e latina, e outras culturas, tenderão a ser esquecidas. Nesta era de globalização, podemos admitir que o importante será haver cursos de chinês ou japonês, já que provavelmente estes povos estarão destinados a ser o futuro da humanidade. Daqui a cem anos, ou a mil, não sei. Ou então entraremos numa época parecida com a da fundação da Europa propriamente dita, na Idade Média, com esses saberes a refugiarem-se numa espécie de novos mosteiros.
É hoje um autor respeitadíssimo, convidam-no para tudo e mais alguma coisa, já lhe deram os prémios da praxe...
Parece que sim. Como me dizia Mário Soares: “Você já tem os prémios todos, não se lhe pode dar o Prémio Pessoa”.
Pois, esse não recebeu.
Pois não, não recebi. E por acaso era o único que podia fazer algum sentido ter recebido.
Mas o que lhe ia perguntar é se não acha que é mais reconhecido do que lido?
De
certeza, mas creio que isso acontece com muita gente. Ainda ontem uma
pessoa muito conhecida, que foi ministro, e que me encontrou aqui no
Porto, disse-me: “Ah, Lourenço, os seus livros são muito difíceis”. Não
sou um escritor muito pedagógico, exijo um certo esforço do leitor. Mas
não me queixo. Sei que não posso ser um autor popular, pronto.
Os seus livros, nas várias áreas a que se tem dedicado, são
sempre vistos como obras fundadoras, referências incontornáveis. No
entanto, nem o vejo ser muito seguido, nem o vejo ser muito contestado.
Há algumas raras excepções, mas, de um modo geral, é como se as suas
coisas fossem tão intocáveis que, literalmente, ninguém lhes toca. Um
exemplo que me parece especialmente estranho é o de Pessoa Revisitado [Inova, 1973], até por se tratar de um livro especialmente assertivo.
Conhece
aquelas reflexões do Voltaire a respeito de um autor da época, muito
conhecido: “Ah, as obras dele são santas, ninguém lhes toca”. Passei de
um estatuto de anonimato para um certo reconhecimento, mas que é de uma
franja de leitores portugueses, geralmente universitários. É assim, o
que é que hei-de fazer?
Quanto ao Pessoa: esse livro sobre o Pessoa é de facto um pouco diferente. Mas a floresta pessoana é imensa. Sou apenas mais uma pessoa que escreveu sobre o Pessoa.
Sim, o livro é assertivo e é polémico. A minha paixão pessoana foi um pouco comum à minha geração, que se dividiu em relação ao Pessoa. Nos anos 40, havia uma espécie de campos pró-Pessoa e anti-Pessoa. Eu também entrei nessa polémica, mas só tardiamente me resolvi a responder com argumentos mais consistentes, de fundo, a essas outras leituras de Pessoa.
No Pessoa Revisitado mostra
como o Pessoa ocultou o impacto de Whitman em Caeiro – aquilo a que
Harold Bloom chamaria “o encobrimento do precursor” –, para depois o
assumir já quase parodicamente em Álvaro de Campos.
Sim, a diferença é que no Campos essa influência é visível.
E não lhe parece estranho que toda a gente fale da influência do Whitman em Álvaro de Campos e esse “link”
Whitman-Caeiro, ao qual dedicou um livro inteiro, seja geralmente
ignorado? A sua tese, para voltar ao que se dizia atrás, não teve
seguidores, mas também não foi propriamente contestada.
Na
seara pessoana cada um tem a sua pequena quinta, que cultiva com os seus
discípulos. Muitos são autores de quem eu gosto, e alguns são meus
amigos, mas eles têm aí uma aposta cultural consistente ao longo do
tempo. Fazem teses, têm um certo poder cultural. Eu sou um autor
privado. Estive tentado, numa certa altura – e até tinha tudo pronto
para o fazer –, a servir-me do Pessoa como tese universitária. Mas não o
quis fazer. A minha relação com essa obra era de outra ordem. Fui
parvo, provavelmente, porque tinha-me facilitado a vida. Ainda cheguei a
fazer uns capítulos em francês para apresentar lá na Sorbonne. Mas
depois veio isto e aquilo, outras solicitações, e acabei por me
desinteressar. A verdade é que também tinha essa relutância de me servir
de um autor que, para mim, não é um autor qualquer, mas alguém que me
ajudou a ler-me a vários níveis.
De facto, no Pessoa Revisitado sente-se
uma escrita mais visceral do que nos seus outros livros. Como se aquilo
lhe dissesse directamente respeito. Não é um olhar neutral...
Pois
não, não é nada neutral. Até porque, veja, no fundo, para lá da minha
paixão propriamente de leitor por aquela poesia, o Fernando Pessoa foi a
arma suprema da minha guerrilha cultural contra outras visões do mundo.
A um nível muito profundo, ele põe em causa esse tipo de discurso
intrinsecamente dogmático. Sem ser propriamente um filosofo céptico, ele
é mais eficaz do que isso, porque tem um cepticismo criador,
proliferante. O Fernando Pessoa é um autor de virtualidades, é
provavelmente o autor da própria virtualidade. Quando era jovem,
fascinou-me aquela espécie de niilismo jubilatório, que era como pôr uma
bomba na totalidade do mundo como experiência humana. Servi-me do
Fernando Pessoa para ir para um outro sítio, onde não possa ser
localizado.
E se fôssemos almoçar?
Quando regressei ao hotel, ontem à noite, o taxista disse-me que havia ali um restaurantezinho...
Deve ter seguido aquele concurso dos “grandes portugueses” em que Salazar foi o mais votado. O que é que lhe parece? É preocupante? É irrelevante?
Nos
comentários que se fizeram depois desse resultado, muita gente concluiu
pela irrelevância. Mas irrelevância para quem? Este é um dos problemas.
Se fosse tão irrelevante como se diz, não tinha suscitado essa espécie
de apreensão. Se querem dizer que os efeitos actuais dessa recuperação a
título póstumo da figura e do papel de Salazar, e do estatuto do antigo
regime, não tem consequências práticas, não perturba esse grande
consenso político, quase sonambúlico, que é o nosso, é evidente que têm
razão. Mas eu pertenço a uma geração que viveu no interior desse regime.
Não nasci dentro dele, mas quase. Durou 40 anos e, ao longo desse
tempo, o mundo sofreu transformações radicais e assistiu a coisas que
ainda fazem parte do nosso presente.
O período da crise das democracias herdadas do século XIX, a guerra, desta vez realmente planetária, como não tinha sido a primeira. E isto tudo passou por um Portugal que era dirigido por esse senhor. E nós, naquela altura, não tínhamos muita fuga, muita possibilidade de escolha. Tivemos de sofrer esse regime. Quiséssemos ou não, estivemos inscritos no que para uns era uma prisão, para outros um regime mais aceitável, e para outros até modelar. Não me venham contar histórias. Eu estive lá e sei que, pelo menos até 1945, uma parte do povo português, se não tinha pelo regime um entusiasmo delirante, aceitava-o. Estava conformado. E alguns até estavam contentes, e outros achavam que o regime tinha aspectos positivos, que se tinham feito estradas – os famosos melhoramentos –, que o país era bem gerido ao nível das Finanças, a base mitológica do sucesso de Salazar. Só uma minoria o contestava.
Aliás, duas minorias. Uma era uma minoria-minoria, mas muito militante, e que representava uma nova opção no espectro internacional, que era determinadamente hostil ao regime e que estava organizada para o combater. A outra, que era uma parte da opinião liberal, vinha da República: eram aqueles que, mesmo considerando que o regime podia ter aspectos positivos, achavam que tinha, sobretudo coisas absolutamente inaceitáveis. Esta gente viveu num grande desconforto. O regime era, de facto, intolerável para quem tinha a consciência de que as coisas podiam ser diferentes. E essas pessoas que não apostavam ainda numa saída revolucionária, na qual não acreditavam, tinham de aguentar aqui a pouca liberdade que existia, sobretudo na ordem cultural e na expressão pública dela. Tinham de se acomodar às exigências de um regime onde a censura existia a título oficial. Não está muito feita essa história, porque uma das coisas mais terríveis da censura é que os seus malefícios são-no também por defeito.
Como uma parte dos actores culturais portugueses já se autocensurava – tentavam uma vez e já não tentavam segunda –, não conseguimos medir bem esses malefícios. Mas existiram. Por outro lado, também não deixou de existir uma prática cultural e literária, quase toda ela com a marca “oposição”, mas essa marca – uma insinuação, uma crítica velada – funcionava, paradoxalmente, como uma espécie de “must”. Não está feita a história interna, a história do que foi o verdadeiro comportamento de uma parte dos escritores e intelectuais portugueses nessa época, a ambiguidade que mantiveram em relação ao regime e, em particular, ao seu chefe. Lembro-me muito bem de uma reflexão do Torga quando o regime resolveu comemorar os famosos “35 anos de política do espírito”. Estava indignado com essa espécie de descaramento que era o de se utilizarem as grandes figuras literárias da época, que, com raras excepções, eram todas da oposição. Lá vinha o Régio, lá vinha o Aquilino, lá vinha ele. Ora, nós conhecemos os intelectuais, não é? Ao mesmo tempo que o Torga se indignava, e a justo título, ele provavelmente sentir-se-ia muito mais indignado se não figurasse lá. Um intelectual só não pode perdoar que o reduzam a nada. Veja o Aquilino, que os mais militantes da minha geração inscreveram quase à força nas suas hostes. Depois de 1945, ele chegou realmente a ter obras apreendidas. Mas sempre trouxe nas badanas dos seus livros uma frase de Salazar, a gabar-lhe o estilo. Eram da mesma geração, tinham passado ambos pelo seminário, não eram homens com a mesma mentalidade, mas eram homens do mesmo mundo.
Lembro-me de o Torga me ter contado uma história que se passou com um ministro de Salazar, o Leite Pinto, que ia ao Brasil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil, de modo que podia servir como uma espécie de cartão-de-visita, mesmo sendo hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir, foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar um poema do Torga. O mais interessante é que Salazar continuou o poema, e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.
Essa relativa ambiguidade também se estendia à sua geração?
Os
mais jovens da minha geração tinham cortado com o regime, mas não tão
radicalmente como se diz. Muitos tinham lá amigos bem colocados e
gozavam de uma certa benevolência. Não eram de todo colaboradores, toda a
gente sabia o que pensavam no plano político, ideológico, e até
cultural. Mas as coisas eram complexas. Não tiveram comparação possível
com o que foi o nazismo, mesmo se havia facetas do regime que eram
comuns a todos os totalitarismos, pelo menos de tipo europeu.
Num primeiro tempo, o regime é aceite, à espera que o país funcione. Há uma certa atenção positiva. Depois temos a guerra civil espanhola, que foi determinante para a mudança do regime, mesmo se os germes já vinham de trás. A seguir veio a Grande Guerra, que teve um efeito paradoxal, porque forneceu ao regime um certo espaço de tranquilidade. Andávamos todos preocupados em saber se íamos ou não ser invadidos. Depois, terminada a guerra, pensávamos que íamos colher os benefícios da vitória das democracias. E é verdade que houve ali um momento de abertura, que durou uns dois anos. Mas depois as coisas cerraram-se outra vez, porque, com a guerra fria a instalar-se, ficamos no lado da barricada desta Europa que vai mobilizar-se numa cruzada contra o aliado da guerra, que era a União Soviética. A partir daí, paradoxalmente, o regime vai perdendo cada vez mais simpatias, porque também já era outra geração, que queria outras coisas, e que se sentia frustrada. Foi nesta época que eu fui lá para fora.
E vem, finalmente, a revolução de Abril. Com a urgência que ela exigia, não se perdeu grande tempo a repensar, a revisitar pedagogicamente o antigo regime, a mostrar o que era ou deixava de ser. Foi remetido para uma espécie de condenação abstracta, e o velho ditador ficou lá no seu túmulo, no lugar do mau absoluto. Era inevitável que algum dia o cadáver voltasse à tona, como nos maus (e bons) filmes policiais. Talvez seja tempo de reajustarmos as nossas diversas contas com o antigo regime, e, sobretudo, de o compreendermos.
É frequente dizer-se que muitos se
tornaram democratas no dia 25 de Abril. A intenção da frase é irónica,
mas não haverá nela alguma verdade literal?
Eu escrevi um livrinho com o título O Fascismo Nunca Existiu.
Tinha um título irónico, numa altura em que efectivamente alguns
reflexos do antigo regime começavam a querer voltar à tona de água. Mas
hoje, passados tantos anos, penso que esta ironia tem alguns aspectos de
verdade. Primeiro, o regime nunca se assumiu como fascista, embora na
primeira fase seguisse o modelo mussoliniano. Toda a gente sabe que
Salazar tinha o retrato de Mussolini na sua secretária, e que só quando
ele entrou na guerra é que o substituiu pelo do Pio XII. De resto, não
há grandes parecenças entre um grande histrião político, como era
Mussolini, e aquele senhor reservado, professor de Coimbra, que era
Salazar. De todos esses ditadores, é o mais difícil de definir. Há
algumas coisas escritas sobre ele, como as do embaixador Franco
Nogueira, muito centradas na acção diplomática, mas há ainda muito a
fazer. O contraste entre a literatura suscitada por Mussolini ou Franco e
o que se escreveu sobre Salazar é enorme. Mas é claro que a Espanha de
Franco e a Itália de Mussolini tiveram muito mais influência nos
acontecimentos da Europa do que Portugal. A principal preocupação de
Salazar era a de que não se fizessem ondas, para ele poder governar
tranquilamente, à sua maneira. E de algum modo conseguiu.
Agora não me digam que esta eleição de Salazar é uma coisa inócua, porque significa, 30 anos após a revolução que trouxe a Portugal uma democracia de tipo europeu, a reabilitação da principal figura do regime que essa revolução depôs.
Os métodos de votação também não eram lá muito fiáveis...
Mas
a regra do jogo era essa. Com as mesmas regras, outros países
mobilizaram-se para promover figuras como Churchill, Reagan e De Gaulle.
É claro que, em França, o Molière ficou em 8.º e a Edith Piaf em 4.º,
mas essa é a cultura de televisão em que vivemos.
Na eleição portuguesa, há ainda o facto de Álvaro Cunhal ter ficado em segundo lugar.
Na política concreta, a acção de Cunhal foi sobretudo uma acção de clandestinidade, invisível, mas ele pode cristalizar simbolicamente toda a oposição ao regime de Salazar. E há as qualidades pessoais do próprio Álvaro Cunhal. Deu uma visibilidade ao PCP que ainda hoje se mantém. É um dos raros partidos comunistas europeus com alguma representatividade política e, ao nível cultural, continua a ser mais importante do que as pessoas imaginam.
Mas o verdadeiro triunfo de Cunhal foi a outro nível, que talvez não lhe interessasse tanto, embora decerto lhe fosse grato: o seu reconhecimento na ordem do cultural. E aí, paradoxalmente, houve um grande contributo de Pacheco Pereira, que o mostrou como uma figura digna de ser estudada, que ajudou a torná-lo popular.
Teve um funeral impressionante.
Sim,
eu não estava cá, mas soube. Sempre pensei que esse tipo de funeral
estaria reservado à Amália, mas parece que o dele ainda foi maior.
Cunhal é uma personagem romanesca, altamente icónica, até fisicamente.
Agora, o problema é que os representantes, ou os que deviam sê-lo, do
novo “status” político, ideológico e cultural que resultou da
revolução de Abril foram secundarizados por estas duas escolhas: dois
personagens que, podem dizer o que quiserem, eram tudo menos
democráticos.
Não alinhou nas grandes utopias políticas do
século XX, mas, a julgar pelo que vem escrevendo, também não parece ver
com bons olhos este mundo em que o sucesso económico é já quase o único
ideal mobilizador.
Sim, essa é agora a regra imperativa, a
título individual e colectivo. O mundo é uma Bolsa. E, portanto, o jogo
político, que tinha uma dimensão própria, é hoje o subproduto de um jogo
muito mais profundo e radical, que é o das forças de transformação da
sociedade, que são de ordem económica, financeira e científica. São elas
que comandam tudo o resto. A política, nas sociedades que se querem
democráticas, é apenas a maneira de utilizar esses meios da maneira mais
aceitável. Mas o ímpeto, o motor da civilização em que estamos, não tem
nada de democrático em si mesmo. É uma força cega, como se fosse uma
força da natureza, ainda que seja humana. O deus, a que as sociedades se
referiam quando ainda havia uma referência transcendente, desapareceu, e
estamos agora diante de fenómenos de dinâmica pura. Tudo passa pelos
fins da máquina produtiva mundial, que se torna mais abstracta ainda por
ser, fundamentalmente, do tipo financeiro. E é uma máquina que se vai
destruindo a si própria. Até agora havia carências reais que podiam ser
preenchidas. Actualmente, esta máquina produz maravilhas que não
garantem nenhum sucesso ao produtor dessas maravilhas, porque
rapidamente podem passar a refugo, substituídas por outras ainda mais
feéricas.
Isto é um fenómeno relativamente novo. Dantes havia uma carência a preencher. Agora é a precariedade, num oceano de oferta. Essa ideia de se conceber um projecto pessoal com um mínimo de garantias, mesmo tendo os títulos e as competências, para se poder chegar tranquilamente a um certo fim, isso acabou. Ninguém tem garantias. Nem sequer os actores principais, os grandes gestores, porque também são descartáveis. Desapareceram as empresas familiares, mesmo as mais grandiosas, e já não há linhagens, não há aristocracia empresarial. Bom, é uma forma de democracia como outra qualquer. É a democracia por autodestruição. Está bem.
in jornal Público, com a devida vénia
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