in Colecção da EPHÉMERA
A guerra colonial
A guerra mobilizou 800 mil portugueses para combaterem nas antigas colónias e também 500 mil africanos, que foram incorporados nas tropas portuguesas. A guerra colonial provocou 10 mil mortos, 30 mil feridos e levou ao regresso de 500 mil pessoas à então metrópole.
Miguel Cardina, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra considera que, 60 anos depois, o conflito continua muito presente.
"A guerra está muito viva hoje em Portugal porque está viva em quem a combateu, nas suas famílias, numa certa memória pública, e também está viva porque teve consequências enormes", refere o investigador, em entrevista à TSF.
"Não podemos compreender o 25 de Abril, não podemos compreender a democracia em Portugal, sem percebermos que é resultado da recusa em continuar a guerra, por parte das forças armadas, e, de alguma forma também, da vitória política dos movimentos de libertação", afirma.
Miguel Cardina explica que a guerra acabou com o colonialismo, enquanto realidade política, mas que continua presente no imaginário social.
"Esta ideia de um Portugal que é maior do que de facto são as fronteiras que o definem, um Portugal muito ligado à expansão marítima, à ideia das descobertas - que, ainda hoje, no imaginário nacional têm uma preponderância muito grande - e, depois, a reconfiguração que é feita a partir da década de 1950, com a adoção das teses lusotropicalistas (a ideia de que Portugal tinha tido um colonialismo mais brando, benigno, marcado pela miscigenação), vai depois impregnar-se fortemente e, de alguma forma, podemos dizer que o 25 de Abril não constituiu uma rutura com esse imaginário", expõe Miguel Cardina.
O investigador alerta para uma certa reativação deste imaginário ligado ao colonialismo, nos últimos anos, que se expressa de várias formas.
"Desde o modo como a Expo'98 foi pensada, os discursos de governantes políticos sobre Portugal e o seu lugar no mundo, a própria paisagem urbana e os monumentos que temos, o modo como contam uma determinada narrativa,...", aponta Miguel Cardina. "Essa narrativa é muito marcada por esse imaginário das descobertas e com o colonialismo, com a qual nós temos uma relação ambivalente."
"É a rutura com o colonialismo que permite a democracia portuguesa, mas, ao mesmo tempo, há a imaginação de que Portugal não foi propriamente um país colonial - e o efeito é a denegação da violência colonial", alega.
Seis décadas depois, Miguel Cardina acredita que é tempo de olhar para o passado, não para acertar contas, mas para perceber como a guerra e o colonialismo moldaram a sociedade portuguesa.
O investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra dá o exemplo de França, que, recentemente, decidiu evocar a guerra com a Argélia de forma mais abrangente. Aponta como exemplo "iniciativas memoriais comuns entre a França e a Argélia, o reconhecimento de assassinatos cometidos a líderes de movimentos de libertação ou o conhecimento histórico mais aprofundados dos massacres cometidos durante a guerra colonial e uma outra política memorial relativamente a ruas, estátuas, monumentos".
O facto de Portugal não ter ainda adotado uma postura semelhante mostra, na opinião de Miguel Cardina, "o ponto de atraso que tem relativamente à recordação da guerra colonial, mas também a um certo processo de reparação social".
O “mapa genético” dos europeus e asiáticos de hoje tem apenas uns milhares de anos – e na Europa, é o resultado de migrações em massa de povos oriundos das estepes da Eurásia.
De onde vinham esses migrantes? Segundo as conclusões dos estudos, eram oriundos de uma região que abrange parte daquilo que são hoje a Roménia, Moldávia, Ucrânia, Rússia e Cazaquistão. “Esse tumultuoso período viu surgir novas tecnologias e tradições culturais – a utilização de armas sofisticadas, carroças puxadas por cavalos, mudanças nos ritos funerários – que se espalharam pela Europa e a Ásia, vindas das estepes entre o Mar Negro e o Mar Cáspio”, explica a revista científica britânica em comunicado.
“A força motora do nosso estudo era perceber as grandes mudanças económicas e sociais que se verificaram no início do terceiro milénio antes da era cristã, dos Urais à Escandinávia”, diz por seu lado Eske Willerslev, da Universidade de Copenhaga (Dinamarca) e um dos autores principais de um dos trabalhos, em comunicado da sua universidade. “As velhas culturas agrícolas do Neolítico foram substituídas por uma percepção totalmente nova da família, da propriedade e do indivíduo. Eu e outros arqueólogos pensamos que estas mudanças aconteceram na sequência de migrações em grande escala.” Os resultados vêm portanto confirmar essa ideia.
Estes cientistas sequenciaram na íntegra o ADN extraído de 101 esqueletos (a maior sequenciação de sempre de ADN antigo), com idades entre 8000 e 3000 anos, encontrados um pouco por toda a Europa e Ásia Central. E um dos principais resultados da sua análise genética é que as migrações conduziram a uma profunda “reescritura” do genoma dos europeus, que até à Idade do Bronze eram geneticamente muito semelhantes aos povos da Ásia Central. De facto, lê-se no mesmo comunicado, a composição genética e a distribuição dos povos na Europa e Ásia actuais “é um fenómeno surpreendentemente recente, com apenas uns milhares de anos.”
Eis a história que os genes parecem agora contar, explica o comunicado: há uns 5000 anos, um povo que tinha desenvolvido um novo sistema da família e da propriedade (e que os arqueólogos designam de cultura Iamna) migrou do Cáucaso para Oeste. No Norte da Europa, misturou-se com as populações autóctones da Idade da Pedra, dando origem a uma nova cultura, designada “cultura da cerâmica cordada” pelos especialistas. Do ponto de vista genético, esta cultura é próxima das populações actuais do Norte dos Alpes.
Mais tarde, há uns 4000 anos, uma outra cultura, designada Sintashta, surgiu no Cáucaso. Inventora de novas armas e de carroças, espalhou-se rapidamente pela Europa fora. Quanto à região a leste dos Urais, no coração da Ásia, ela terá sido colonizada há uns 3800 anos pela cultura dita Andronovo, descendente da cultura Sintashta.
Por último, já no fim da Idade do Bronze e no início da Idade do Ferro, houve uma migração de povos do Leste asiático para a Ásia Central. Mas neste caso, lê-se no mesmo documento, em vez de daí resultar uma mistura genética, como na Europa, verificou-se uma substituição genética. Os genes de origem europeia (que o mesmo estudo mostra tinham sido “importados” para a Ásia Central pela cultura Andronovo) simplesmente desapareceram.
A análise desta equipa também revela algumas surpresas: por exemplo, que a pigmentação clara da pele já era frequente entre os europeus da Idade do Bronze. E ainda que a tolerância à lactose – que tornou os humanos capazes de beber leite – só surgiu na Idade do Bronze, ou seja, bastante mais tarde do que se pensava até aqui.
No outro estudo, uma equipa internacional co-liderada por David Reich, da Universidade de Harvard (EUA), analisou, pelo seu lado, partes do genoma de 69 europeus que também viveram há 8000 e 3000 anos. Os seus resultados, que batem certo com o da equipa de Willerslev, estabelecem principalmente uma relação (ainda por confirmar, alertam os próprios autores) entre as migrações em massa vindas das estepes eurasiáticas e a origem das línguas indo-europeias.
“Ambas as equipas fornecem novos indícios acerca de uma controvérsia de longa data em torno das origens da família de línguas indo-europeias”, escreve John Novembre, geneticista da Universidade de Chicago (EUA), num comentário na mesma edição da Nature.
E acresenta: “Conjuntamente, estes estudos sugerem que as deslocações populacionais da Idade do Bronze foram importantes para a evolução genética da Eurásia. Claro que o ADN antigo não pode ser uma prova da forma como as línguas se difundiram, mas (…) se os genes se deslocaram em massa, é muito provável que as palavras também o tenham feito.”
Jornal Público.
Por Michael Heinrich, via thesis.com, traduzido por Bruno Caminotto Ordanini dos Santos
“Em algum respeito podemos dizer, que a sociedade, a estrutura da economia no discurso Ricardiano é tomado como garantia. A relação específica de poder e a exploração é questionada, e é claro que esta relação deve ser investigada. Mas abaixo dessas relações de poder e exploração, lá parecem ser apenas características gerais como “produção” ou “sociedade”. O discurso da “Crítica da Economia política” nos diz que esta impressão é errada. Nem a economia e nem a sociedade podemos tomar como instituições garantidas. Nós temos que pedir por sua “Constituição” . Mas não por sua constituição em um sentido histórico. A constituição a qual é crucial é a constituição contemporânea. A constituição a qual é resultado dos processos de intermediação (“vermittelnden”), as quais não são diretamente visíveis.“
Quando nós falamos do desenvolvimento da teoria do Estado de Marx, temos que levar em consideração o nível de desenvolvimento da sua Teoria econômica. Foi muito discutido a chamada “ruptura” entre o “jovem” Marx e o “velho” Marx. Mas não quero estender a discussão sobre esta ruptura e também não quero falar sobre o jovem Marx e sua discussão mais filosófica sobre a Teoria do Estado, a qual foi um degrau para o caminho para atingir sua Teoria Econômica, mas que não foi informado pela Teoria econômica.
Para discutir a Teoria do Estado de Marx eu quero me prolongar em outra “ruptura”, a qual se passou apenas após 1845 ( O ano em que Marx criticou sua antiga concepção filosófica, como ele nos diz, no prefácio de “A contribuição”). No mesmo prefácio, Marx menciona outra ruptura, ou, se preferir, o alcance de um novo nível de pesquisa, o qual foi muito menos reconhecido por seus leitores. Marx enfatiza que após sua mudança para Londres, o enorme material da biblioteca britânica e os novos desenvolvimentos do capitalismo, induziram ele a “começar do zero de novo” (“ganz von vorn wieder anzufangen”). Mas esse novo começo não foi um pequeno ponto, foi um dos pontos decisivos no desenvolvimento nos estudos de Marx, o que podemos perceber, quando nós comparamos seus escritos econômicos ao fim da década de 1840 com seus escritos que emergiram desde 1857.
Na segunda metade da década de 1840 encontramos diversos escritos de importância econômica, especialmente “A ideóloga alemã”, “Miséria da filosofia”, “Trabalho assalariado e capital” e “ O Manifesto comunista”. Em todos esses escritos, especialmente no segundo e no terceiro, Marx se apoia fortemente na teoria econômica de Ricardo. Ele critica Ricardo por não enxergar o capitalismo como um meio de produção historicamente transitório, mas não há nenhuma crítica fundamental às conquistas analíticas de Ricardo ou das categorias utilizadas por Ricardo. Nesse período Marx usou as categorias e os resultados de Ricardo para explicar o funcionamento do capitalismo e para criticar outras concepções de socialismo como a de Proudhon. Com certo respeito podemos afirmar, nesse tempo Marx tinha muito em comum com a ala de esquerda da Escola Ricardiana. Marx fez um uso crítico da economia política, mas ele não criticou fundamentalmente a economia política.
A própria crítica da teoria de Ricardo só começou no início da década de 1850, no início Marx criticou a teoria quantitativa da moeda de Ricardo, depois a teoria do aluguel de Ricardo, mais tarde, sua teoria do valor. Esse processo finalmente culminou na “Crítica da Economia Política” de Marx (uma crítica que não objetivava apenas Ricardo mas toda a ciência da Economia política). “Grundrisse” foi o primeiro texto principal de seu novo nível de tratamento com a Economia política. Não apenas as aplicações da Economia política foram desafiadas, mas também (e acima de tudo), a formação das categorias, então toda a ciência foi criticada na maneira que seus objeto é formado e reconhecido.
Em relação aos escritos econômicos de Marx após 1845 nós temos que distinguir entre escritos com um predominante “discurso Ricardiano” durante o final da década de 1840 e a verdadeira “Crítica da economia política” desde a década de 1850. Como no desenvolvimento de Immanuel Kant, também em Marx, devemos distinguir o período “pre-crítico” de um período da grande “crítica”.
Mas o que tudo isso tem a ver com a teoria do Estado?
Em algum respeito podemos dizer, que a sociedade, a estrutura da economia no discurso Ricardiano é tomado como garantia. A relação específica de poder e a exploração é questionada, e é claro que esta relação deve ser investigada. Mas abaixo dessas relações de poder e exploração, lá parecem ser apenas características gerais como “produção” ou “sociedade”.
O discurso da “Crítica da Economia política” nos diz que esta impressão é errada. Nem a economia e nem a sociedade podemos tomar como instituições garantidas. Nós temos que pedir por sua “Constituição” . Mas não por sua constituição em um sentido histórico. A constituição a qual é crucial é a constituição contemporânea. A constituição a qual é resultado dos processos de intermediação (“vermittelnden”), as quais não são diretamente visíveis.
Pode ser que isso soe um pouco estranho. Talvez soe menos estranho, quando lembramos que exatamente esse tipo de raciocínio nós podemos encontrar muito explícito na Teoria Monetária de Marx. Na economia política (não importa se é na economia política do século XIX ou neoclássica, ou na economia Keynesiana do século XX) dinheiro é tido como garantia. Isso não significa que os economistas neguem a existência de sociedades sem o dinheiro, também não negam o processo histórico no qual se produz dinheiro. Mas quando o dinheiro passou a existir, parece ser uma coisa simples e transparente a qual é definida por sua função: medir o valor, meios de circulação, armazenamento das riquezas e assim por diante. Para a economia política a explicação do dinheiro é feita pela explicação de suas funções.
Marx também explica sua função, mas apenas no cap. 3 de “O Capital”. Mas desde o Cap. 1 e 2 já lidou com dinheiro. O que Marx mostra na forma valor na análise do Cap. 1 e na análise do processo de troca no Cap. 2 é apenas este (contemporâneo) processo de constituição do dinheiro: a relação entre valor e dinheiro (a generalidade do valor precisa da forma geral de valor, a forma dinheiro) e a situação contraditória dos donos de mercadoria (Todo mundo quer que sua mercadoria seja o equivalente geral) faz necessário que os donos de mercadoria excluam uma coisa como o dinheiro real.
Dinheiro não é apenas uma coisa com certas funções. Dinheiro é o resultado de certas relações (de mercadorias e donos de mercadorias) mas um resultado o qual reifica essas relações. A relação desaparece no resultado, o que é ressaltado por Marx, quando ele escreve sobre dinheiro ao final do segundo capítulo de “O capital”:
“Os passos intermediários do processo desaparecem no resultado e não deixa rastros para trás”
(Die vermittelnde Bewegung verschwindet in ihrem eignen Resultat und lässt keine Spur zurück””)
Mas esta proposição vale, não apenas para o dinheiro, vale também para a constituição da economia e da sociedade capitalista:
O movimento intermediário desaparece em seu próprio resultado
Descobrir que há uma intermediação, já era um passo importante no desenvolvimento teórico de Marx. Que há uma estrutura escondida, não estava claro para Marx durante a segunda metade da década de 1840. O empirismo da “ideologia alemã”, o enfatizar permanente de que temos apenas que apresentar os fatos empíricos, o processo real e então não mostrar nenhum reconhecimento da estrutura complexa visível/invisível, sensível/supersensível (“sinnlich-übersinnlich”) estrutura da realidade, a qual é revelada em “O capital”.
No “Manifesto Comunista” Marx enfatiza que com a emergência e desenvolvimento do capitalismo, não apenas as velhas estruturas desapareceram, também, a estrutura social deve se tornar simples e transparente. Isto é uma proposição quase Weberiana (Max Weber sessenta anos mais tarde nos contou sobre a desmitificação do mundo, a qual acontece nas sociedades capitalistas modernas).
Compare isso com o discurso de Marx sobre o fetichismo e mistificação no “O capital”: As sociedades capitalistas apenas aparentam serem simples e transparentes. O que foi apreciado no “manifesto comunista” agora é reconhecido como uma aparência errada e a constituição dessa aparência errônea tem de ser revelada. Mas essa revelação não é possível com as categorias econômicas da Economia política, das quais Marx utilizou ao final da década de 1840. Com o objetivo de fazer essa revelação possível uma crítica das categorias é necessária, apenas a “Crítica da economia política” permite essa revelação
O raciocínio pré-crítico do “Manifesto Comunista” toca também da maneira que Marx lida com as classes e o Estado lá. Ambos são tidos como certo, a única constituição que Marx reconhece neste momento, é a constituição histórica.
As classes são tidas como garantia a tal grau que o “Manifesto” pode começar, sem nenhuma explicação. Vocês todos conhecem a famosa primeira frase do primeiro parágrafo:
“Toda a história é a história da luta de classes”
A mensagem é bastante clara: a noção de classe não requer explicações e nesse sentido Marx explica o surgimento e desenvolvimento do capitalismo.
E agora, compare isso com a estrutura da argumentação de “O capital”. Não apenas que as classes não aparecem no início. Quando elas aparecem pela primeira vez, na segunda seção, elas não são muito determinadas. É apenas uma noção muito implícita e preliminar de classe, a qual Marx usa em “O capital”. Mesmo assim, o volume I prevaleceu por um longo tempo a leitura de “O capital” e, portanto, essa noção preliminar de classe, foi vista como “O conceito de classes de Marx”. A visão mais complexa de classe nós vemos no volume III, e apenas no final do volume III Marx planejou um capítulo sobre classes como último capítulo.
Para chegar a uma noção precisa de classe, são necessários os três volumes de “O capital”. Há uma razão para isso. Já no prefácio de “O capital” Marx fez uma observação muito conhecida, que em sua investigação pessoas contam apenas como personificação de categorias econômicas. O que ele já havia reconhecido em “Grundrisse”,
“Sociedade não consiste em indivíduos, ela consiste nas relações entre esses indivíduos”,
Agora se torna um ponto decisivo:
Embora todas estruturas da sociedade sejam produzidas por pessoas, você não pode explicar a estrutura pela ação dos indivíduos. Ao contrário: você deve explicar as ações (a normal, as ações médias) pela lógica das estruturas.
O funcionamento disso, você pode observar nos primeiros dois capítulos de “O capital”: apenas depois da análise da “forma-mercadoria” do produto do trabalho (Cap. 1), Marx pode analisar as ações dos donos de mercadorias (Cap. 2).
Mas, o mesmo é verdade para as classes. Não só os indivíduos agem em um contexto determinado pela forma, as classes também o fazem. Não apenas as características dos donos de mercadoria, também as classes, são constituídas por certa lógica da estrutura, incluindo o fetichismo e a mistificação inerente à essa estrutura. Quando Marx analisa a forma-salário no Volume 1 de “O capital” ele dá uma dica (sem aprofundar o raciocínio) que, da ilusória forma-salário (parece como se o trabalho fosse pago, de modo que você possa debater se o preço do trabalho é justo ou injusto) toda imaginação de justiça e liberdade, derivam tanto dos trabalhadores, quanto dos capitalistas.
Podemos generalizar esse conhecimento. A forma-salário é parte constituinte da Fórmula Trindade, a qual Marx apresentou ao final do Volume III. Ela expressa não só a falsa aparência do processo de produção capitalista (os três fatores da produção cooperam e todo fator recebe de volta o que entrega), também dá uma imagem imaginária da posição e função das classes. Apenas depois da apresentação ter alcançado a Fórmula Trindade de Marx ela pode, em um sentido científico (não apenas de maneira preliminar) falar sobre classes. E, não esboçado por Marx, mas para mim parece muito óbvio: o mundo mágico do cotidiano da Fórmula Trindade guia à uma compreensão da comunidade imaginária de “nação”, a qual não é fundada em narrativas ideológicas, mas sim nos recursos estruturais das sociedades capitalistas.
O que se mantem para as classes também é verdade para o Estado. No “Manifesto Comunista” Marx tem o Estado tido como certo. Ele o considera como um instrumento de poder, como uma “máquina”, conforme ele posteriormente escreveu. Esse instrumento pode ser usado por diferentes classes, então também há uma luta de classes sobre este instrumento e a classe dominante costuma defender seu poder.
Essa linha de raciocínio também foi usada por Engels, mais tarde, quando ele escreveu “A origem da Família, da propriedade e do Estado” e também influenciou muito a tradição marxista de pensar sobre o Estado, de Lenin a Gramsci até Poulantzas. Eu não quero negar todos os resultados dessa tradição, mas parece muito incompleta. É acima de tudo uma sociologia do poder, mas não atinge o continente a qual é aberto pela “Crítica da Economia Política” de Marx.
A “Crítica da Economia Política” de Marx ao mesmo tempo que faz possível e necessário ter uma análise da do Estado e da política a qual é radicalmente diferente da sociologia do poder. Isso se torna possível porque com a análise crítica das formas sociais, com a análise do fetichismo e das mistificações inerentes à estrutura social, o campo para tal analise é alcançado. Mas também, essa análise é necessária:
A crítica da economia política de Marx começa com a categoria de mercadoria, procede até o dinheiro e o capital, mas sempre (como a primeira frase do primeiro capítulo de “O capital” já indicava) a sociedade, a qual o modo de produção capitalista prevalece é pressuposto. Isso significa uma sociedade não apenas com relações de capital totalmente desenvolvidas, mas também, com o Estado burguês como uma forma política e com o mercado capitalista mundial ao redor (incluindo todas relações “exteriores” políticas e econômicas).
Mas, como a análise do Estado como forma política, a qual é diferente da sociologia do poder, se parece? Citado de novo e de novo, a abreviação do Prefácio de 1859, onde Marx fala sobre a “fundação real” e a “superestrutura política e jurídica”. A noção de superestrutura é erroneamente usada com frequência em um contexto economicista e determinista, dependendo apenas das relações de estrutura, a uma certa compatibilidade, necessária para o funcionamento da sociedade (formulação muito menos “pesada” sobre essa compatibilidade necessária, pode ser encontrada na nota de rodapé da seção sobre o Fetichismo no “O capital” a qual Marx conclui que,
“Don Quixote… pagou a pena por imaginar erroneamente que o cavaleiro errante era compatível com todas as formas econômicas da sociedade”).
Mas, a necessidade de compatibilidade não faz nenhuma proposição sobre o caráter da estrutura. Marx, tanto no Prefácio de 1859, quanto nestas notas de rodapé, apenas marca um certo resultado que ele atingiu, sem explicar este resultado. Uma pista mais concreta fornece uma breve observação no Volume III, onde Marx notou que a “específica forma econômica” em que o excedente de trabalho é extraído, determina as relações de poder e governo, as quais se originam diretamente da produção.
De fato, a extração do excedente do trabalho sob as condições do capitalismo tem uma forma muito específica: não se baseia em governo pessoal e em dependência pessoal, tem a forma de um tratado entre donos de produção independentes (livres e iguais). É claro que há desigualdade e dependência, mas não diretamente entre pessoas, como na sociedade feudal da idade média, ou a sociedade escravista da antiga Grécia e Roma.
Há uma dependência intermediada pelas coisas, a “força silenciosa” das condições econômicas”, como Marx escreveu no primeiro volume de “O capital”. Ao invés de governo pessoal, no capitalismo nós temos um governo impessoal prevalecendo, o governo da estrutura, mediada pelo fetichismo, o qual é inseparavelmente ligado aos objetos desse modo de produção. E a esse fetichismo não apenas as classes subordinadas, também as classes dominantes estão submissas.
O Estado burguês, não importa em qual formato histórico, têm de intermediar e garantir esse governo impessoal. Assim, podemos identificar um determinado “núcleo”, o qual não abrange todo o Estado, todas suas funções e atributos, mas algo como a “média ideal”. Apresentar a “média ideal” do modo de produção capitalista era o objetivo de “O capital” (como nos diz Marx no final da apresentação da Fórmula Trinitária no Volume III). Nós podemos supor que o livro sobre o Estado, ele planejou como parte de sua “Crítica da Economia Política” deveria apresentar também essa “média ideal”
O primeiro atributo básico que podemos articular é, o qual tem de assegurar as estruturas do próprio governo impessoal, não pode ser essencialmente baseado no governo pessoal, deve ser (para usar a expressão de Heide Gerstenberger) um “poder sem sujeito” (subjektlose Gewalt).
É claro que há um governo, um presidente ou um primeiro ministro e parlamentares no Estado burguês. Mas podemos dizer que há um governo pessoal como no caso do conde medieval? Com certeza não. E sobre os “senhores do monopólio”, os quais fazem papel decisivo nas tradições Leninistas? É claro que tentam conseguir influencia por meios legais ou ilegais. A Imprensa burguesa também é cheia de histórias. Sempre tem uma luta: um grupo tenta estender sua influência, outro grupo tenta restringir tais influências. Mas já é esse o mecanismo do governo burguês? Aqui não é o momento para longas explicações, mas, na medida que a economia é governada pela impessoal “Lei do valor”, a qual não é estabelecida, mas apenas executada nas ações de capitais, e então, a forma política também deve ser submetida a tais estruturas impessoais.
Ou, em outras palavras: O que a sociologia Marxista do poder sustenta sobre as classes, a divisão de classes e sua disputa por influência no Estado não é errada e também não é sem importância, mas é apenas a superfície por trás a qual temos que procurar pelas forças profundas ou, mais precisamente a forma-determinação, a qual impõe uma estrutura a esse campo de batalha permanente sobre a influência sobre o Estado. Não há apenas relações de poder já há um determinado campo da forma em que essas relações de poder acontecem.
Nós podemos distinguir três esferas dessa forma determinada:
– A execução do poder na forma de Estado de Direito, garantindo a liberdade, igualdade e a propriedade dos sujeitos, para que então, os sujeitos sem propriedades sejam forçados a vender sua força de trabalho, mas também com capacidade de executar o “interesse coletivo” (o qual é interesse coletivo no sentido capitalista), para executar contra algumas frações da classe capitalista.
– Fornecendo as condições gerais de existência da sociedade como uma sociedade capitalista: fornece infraestrutura à qual não pode ser produzida de modo rentável pelo capital individual, e fornecer a existência da força de trabalho como força de trabalho (não provendo boa vida aos trabalhadores, mas garantindo que a força de trabalho continue a existir embora seja confrontada com certos riscos como o desemprego, adoecimento, etc.)
– Encontrar e legitimar o “interesse coletivo” (como um interesse capitalista): a “classe dominante” das sociedades capitalistas consistem em concorrentes, sua “Classe de interesses” comum não é clara, deve ser encontrada e equilibrada contra as diferentes frações. Mas também deve ser legitimada para as classes subordinadas (ao contrário, é necessário a repressão pura, a qual não apenas contradiz a primeira determinação, mas a qual é também bem cara e diminui o lucro total).
O formato concreto dessas três esferas está sempre alterando e é sempre objeto sobre a qual as classes e as frações de classes lutam. Mas, pelo menos em uma sociedade capitalista desenvolvida, nós encontraremos as três esferas como um campo direto da política de Estado a qual o Estado regula. Uma investigação mais próxima dessa “média ideal” pode ajudar a compreender o que acontece “por trás” das brigas políticas as quais estão no centro das considerações da Sociologia Marxista do poder, que é a maior parte de onde a teoria Marxista do Estado pertence. Também, ela pode ajudar compreender o que acontece em nível internacional, no quão longe as instituições internacionais são pontos de partida para novas estruturas do Estado (como a União europeia) ou na medida que apenas intermediam e moderam a competição entre Estados Nações (Como o FMI ou a OMC).
Tradução
José Carlos Ruy
Os conservadores costumam espalhar mentiras sobre Karl Marx – mas além de ser um ativo militante contra a escravidão, ele apoiou os esforços de todos aqueles que se organizaram para combatê-la.
Nossa segunda edição impressa "Derrubem este muro!" já está disponível. Adquira a sua revista em nosso plano anual ou compre ela avulsa.
O ano retrasado marcou o 400º aniversário da chegada dos primeiros africanos escravizados na Virgínia (EUA). Embora esse evento sombrio esteja sendo discutido de maneira profunda, poucos autores na grande mídia notam o caráter particularmente capitalista da forma moderna de escravidão do Novo Mundo: um tema que atravessa a crítica de Marx ao capital e suas extensas discussões sobre capitalismo e escravidão.
Marx não via a escravidão em larga escala de africanos pelos europeus, iniciada no início do século XVI no Caribe [e no Brasil – Nota da Redação], como uma repetição da escravidão romana ou árabe, mas como algo novo. Combinou formas antigas de brutalidade com a forma social essencialmente moderna da produção de valor. A escravidão, ele escreveu em um rascunho para o Capital, atinge “sua forma mais odiosa … numa situação de produção capitalista”, na qual “o valor de troca se torna o elemento determinante da produção”. Isso leva à extensão da jornada de trabalho além de qualquer limite, literalmente escravizando as pessoas até a morte.
Seja na América do Sul, no Caribe ou nas plantações do Sul dos EUA, a escravidão não era a periferia, mas parte central do capitalismo moderno. Como o jovem Marx teorizou essa relação, em 1846, em “Miséria da Filosofia”, dois anos antes do “Manifesto Comunista”:
“A escravidão direta é tanto o pivô sobre o qual o industrialismo atual se volta, como as máquinas, o crédito etc. Sem a escravidão não haveria algodão, sem algodão não haveria indústria moderna. É a escravidão que valoriza as colônias, são as colônias que criaram o comércio mundial e o comércio mundial é a condição necessária para a indústria de máquinas em larga escala. A escravidão é, portanto, uma categoria econômica de suma importância.”
Tais ligações entre capitalismo e escravidão permeiam todo o texto de Marx. Mas ele também considerou como várias formas de resistência à escravidão poderiam contribuir para a resistência anticapitalista. Esse foi especialmente o caso antes e durante a Guerra Civil dos EUA, quando ele apoiou fervorosamente a causa antiescravidão.
Uma forma de resistência que Marx considerou foi a dos afro-americanos escravizados. Por exemplo, ele levou muito a sério o ataque épico de 1859 a um arsenal no Harper’s Ferry por militantes antiescravistas, negros e brancos, sob o comando do abolicionista radical John Brown. Embora o ataque tenha falhado em desencadear a insurreição de escravos que os militantes esperavam, Marx concordou com outros abolicionistas de que se tratava de um evento importante, após o qual não haveria retorno. Mas acrescentou uma comparação internacional, aos camponeses russos e uma ênfase na autoatividade dos afro-americanos escravizados, em seu potencial contínuo de insurreição em massa:
“A meu ver, a coisa mais importante que está acontecendo no mundo hoje é, por um lado, o movimento entre os escravos na América, iniciado pela morte de Brown, e o movimento entre os servos na Rússia, por outro… acabei de ver no Tribune [New York Daily] que houve uma nova revolta de escravos no Missouri, naturalmente reprimida. Mas o sinal já foi dado.”
Nesse momento, Marx parecia perceber a insurreição de escravos em massa como a chave para a abolição, e talvez algo mais em termos de desafiar a própria ordem capitalista. Logo depois, quando o Sul se separou e a Guerra Civil estourou, ele voltou seu apoio à causa do Norte, embora com ataques fortes a Lincoln por sua hesitação inicial em defender, e muito menos em aprovar, a abolição da escravidão ou o alistamento de negros.
Durante a guerra, surgiu uma segunda forma de resistência ao capitalismo e à escravidão, não nos EUA, mas na Grã-Bretanha. Enquanto as classes dominantes da Inglaterra ridicularizavam os EUA como uma experiência fracassada de governo republicano e até atacaram Lincoln plebeu como rude, as classes trabalhadoras britânicas viram as coisas de maneira diferente – viam os EUA como a forma mais ampla de democracia que existia na época, especialmente depois que o Norte se comprometeu com a abolição.
Como Marx relatou em vários artigos, as reuniões organizadas pelos trabalhadores britânicos ajudaram a bloquear as tentativas do governo de intervir a favor do Sul. Num exemplo magnífico do internacionalismo proletário, os trabalhadores britânicos rejeitaram as tentativas de vários políticos de fomentar a animosidade em relação ao Norte com base no fato de que os bloqueios da União haviam reduzido o fornecimento de algodão, criando assim um desemprego em massa entre os trabalhadores têxteis de Lancashire. Como Marx entoou em um artigo de 1862, para o New York Tribune:
“Quando grande parte da classe trabalhadora britânica sofre direta e severamente sob as consequências do bloqueio do Sul; quando outra parte é indiretamente ferida pelo corte do comércio americano, devido, como é dito, à egoísta ‘política de proteção’ dos republicanos [dos EUA]… nessas circunstâncias, a justiça simples exige uma homenagem à boa atitude das classes trabalhadoras britânicas, mais ainda quando contrastadas com a conduta hipócrita, intimidadora, covarde e estúpida do oficial e próspero John Bull.”
Em 1864, a I Internacional havia sido formada, com muitos de seus primeiros ativistas selecionados dentre os organizadores de reuniões antiescravagistas. Nesse sentido, um movimento antiescravidão da classe trabalhadora ajudou a formar a maior organização socialista que Marx liderou durante sua vida.
Depois que a guerra terminou, a Reconstrução Radical estava em pauta nos EUA, incluindo a perspectiva de dividir as antigas plantações onde pessoas eram escravizadas em favor de doações de quarenta acres e uma mula para pessoas anteriormente escravizadas. No prefácio de 1867 a “O Capital”, Marx comemorou esses desenvolvimentos: “Após a abolição da escravidão, uma transformação radical nas relações existentes de capital e propriedade fundiária está em pauta.” Não era para ser, pois a medida foi bloqueada por forças moderadas no Congresso dos EUA.
Após a Guerra Civil, Marx discutiu uma terceira forma de resistência ao capitalismo e à escravidão, mas também ao racismo, novamente dentro dos Estados Unidos. Na opinião dele, séculos de trabalho escravo negro, juntamente com trabalho branco formalmente livre, criaram enormes divisões entre os trabalhadores, urbanos e rurais. A Guerra Civil varreu parte da base econômica dessas divisões, criando novas possibilidades. Novamente em “O Capital”, ele discutiu essas possibilidades com evidente prazer, também escrevendo sua linha mais notável sobre a dialética de raça e classe, aqui em itálico:
“Nos EUA, todo movimento de trabalhadores independentes ficou paralisado enquanto a escravidão desfigurou uma parte da República. O trabalho de parto em uma pele branca não pode emancipar-se onde é marcado em uma pele negra. No entanto, uma nova vida surgiu imediatamente da morte da escravidão. O primeiro fruto da Guerra Civil Americana foi a agitação pela jornada de oito horas, que ia do Atlântico ao Pacífico, da Nova Inglaterra à
Califórnia, com as botas de sete léguas de uma locomotiva. O Congresso Geral do Trabalho, realizado em Baltimore em agosto de 1866, declarou: ‘A primeira e grande necessidade do presente, de libertar o trabalho deste país da escravidão capitalista, é a aprovação de uma lei pela qual oito horas serão o dia útil normal em todos os estados da União Americana. Estamos decididos a dar toda a nossa força até que este resultado glorioso seja alcançado.’”
Certamente, os líderes sindicais de 1866 estavam dispostos a atingir o capitalismo diretamente, algo que depois não foi visto com muita frequência nos EUA. No entanto, o sonho de Marx de solidariedade de classe entre raças não foi alcançado naquele momento, devido à relutância em incluir os trabalhadores negros como membros de pleno direito dos sindicatos brancos. O tipo de solidariedade inter-racial que Marx vislumbrou surgiu algumas vezes desde então em larga escala, principalmente nas unidades de sindicalização em massa da década de 1930.
Quatrocentos anos após a chegada dos africanos escravizados na Virgínia, os afro-americanos continuam a experimentar o legado da escravidão em condições de encarceramento em massa, racismo institucionalizado em moradias e empregos e uma crescente diferença de riqueza.
Ao mesmo tempo, somos confrontados com a administração antitrabalhista mais reacionária da nossa história, uma administração que fomenta e se alimenta do mais sujo racismo e misoginia para obter apoio entre setores da classe média e mesmo da classe trabalhadora. Sob esse prisma, a declaração de Marx, “o trabalho em pele branca não pode emancipar-se onde é oprimido em pele negra”, continua sendo um lema que é tão relevante hoje como era há 150 anos.
«E aqui eles se apoiam em outro argumento muito importante para a tradição marxista que é o de Hilferding, segundo o qual o capitalismo se desenvolve até atingir o estágio do capital monopolista e as finanças crescem a partir do capital monopolista, um argumento que até o próprio Lenin defendia. Uma vez aceita esta tese, ela se torna a base absoluta da teoria marxista. Todos os partidos políticos, todas as escolas de pensamento de esquerda na América Latina, nos Estados Unidos e no mundo capitalista desenvolvido dizem que o capitalismo é monopolista.
Mas o que é um monopólio? Um monopólio é o poder dos capitais individuais de obter melhores resultados do que obteriam por meio da concorrência. Em meu livro, tento demonstrar que não há evidências de que o poder de monopólio tenha resultados em relação à taxa de lucro. É muito comum a confusão entre a escala e o poder de monopólio. Por quê? Porque na economia neoclássica todas as empresas precisam ser pequenas para serem competitivas. Porque, por definição, na concorrência perfeita as empresas são pequenas demais para influenciar os resultados.
Nesse sentido, o monopólio parece se apresentar como uma possibilidade de passar por cima dos limites e das pressões do mercado. Mas não há nenhuma evidência empírica para isso. Se olharmos para as evidências, descobrimos que os grandes capitais não têm taxas de lucro mais altas. Na verdade, eles têm taxas de lucro mais baixas. O que acontece é que elas são mais estáveis. Mas quando você leva em conta o risco – a literatura de negócios dá muita ênfase a isso – você vê que as taxas de lucro são mais ou menos as mesmas.
Isso significa que uma economia em grande escala implica que você enfrente outros grandes jogadores no mercado. É verdade que se pode prejudicar os jogadores menores, por isso os grandes são mais competitivos e a concorrência assume a forma das grandes capitais. Mas os novos capitais podem aparecer em qualquer lugar, como aconteceu com os computadores, como acontece com os softwares e agora com a Tesla, etc. Por sua vez, esses capitais podem ficar enormes, mas sempre chegarão outros.
Aliás, eles não dizem que não há competição, dizem que é uma concorrência intensa sujeita a outros grandes jogadores. Isso significa que a ideia de capital monopolista como aparece na literatura marxista – o “estágio do capital monopolista” – é uma ideia inadequada. Agora, qual é o objetivo dessa ideia? Apoiando-nos nela, podemos evitar levar a sério as contradições de classe.(...)
Uma entrevista com
Anwar Shaikh, JACOBIN
Publicado em 05/03/2021 // 1 comentário
Ao Deputado Federal Glauber Braga.
Há alguns anos tenho propagado a necessidade de intensificar o trabalho de luta ideológica de base dos setores progressistas e socialistas brasileiros. Com a crise político-econômica e social atual deflagrada, ao que se somaram os danosos males da pandemia, avancei na fala pública urgente a respeito da necessidade de fundar o que denominei “Centros Socialistas” pelas comunidades de todo o país. Na alegria do profícuo diálogo mantido com o Deputado Federal Glauber Braga por uma ocasião de uma entrevista ao final do ano de 2020, transmitida ao vivo pelas redes de internet, e que redundou no pronto entusiasmo desse destacado líder político fluminense e brasileiro a ser o pioneiro na implantação de tal ideia, ofereço esta carta, “Sobre os Centros Socialistas”, para que sirva de marco referencial e contributo às companheiras e companheiros que venham a se somar a tal projeto.
As lutas socialistas têm enfrentado, nas últimas décadas, um domínio do capital ainda maior no plano mundial. A marcha da mercadoria e da acumulação se amplia. Ainda que as crises se propaguem e o tecido social se esgarce, mesmo assim, a ideologia capitalista cada vez mais interpela, constitui e orienta as subjetividades. Os Estados, a política e o direito deixam às claras aquilo a que se prestam; suas formas são a do domínio burguês. Golpes, movimentos de extrema-direita e regressões sociais campeiam por muitas sociedades. O espectro das contradições insanáveis do capitalismo atual ecoa aquele do começo do século XX: duas crises distintas de acumulação, mas ambas estruturais. Numa, a extrema-direita desaguou no fascismo; na de agora, ainda está em processo de consolidação de seus contornos últimos. Naquele momento, as experiências revolucionárias socialistas despontavam; no atual, apresenta-se o socialismo como tabu e o capitalismo e suas instituições como corolários inexoráveis.
No Brasil, o momento presente soma, ao quadro da crise do capitalismo mundial, suas próprias mazelas. Vive-se sob golpe. As condições sociais regridem. A luta está bloqueada pelo capital, pelos meios de comunicação de massa, pelo Estado, pelo direito, pelas forças armadas, pelos aparelhos constituintes da sociabilidade quotidiana – família, religião, costumes, intelectualidade, formadores de opinião. Aumenta o combate ao socialismo, às esquerdas e às lutas de classes, grupos e movimentos sociais. Tal marcha brasileira do extremismo de direita e da repressão às lutas está em processo de ascensão e crescerá ainda mais. Todo esse quadro se apresenta, a princípio, como um molde das impossibilidades. Em face dele, mesmo assim, é preciso fundar a luta e a possibilidade.
Saber sobre a sociabilidade capitalista para agir pelo socialismo: ciência e revolução. O que fazer, no quadro das impossibilidades, é vislumbrar o elo mais frágil da corrente e nele investir, para que a correlação de forças se altere e a dinâmica permita novas situações e ações. Quando tudo parece estar bloqueado, é preciso agir nas bases últimas, tensionando a reprodução. Os Centros Socialistas são a alocação das energias não apenas para a disputa institucional – cujos limites são dados pela própria natureza das formas das instituições, derivadas do capital –, mas para o processo de preparação das massas para a transformação social. Poderá resultar em pouco, quase nada; mas, sendo formação para o socialismo e para a tomada do poder pelas massas, poderá também ser exatamente tudo o necessário para o alvorecer da luta estrutural.
O quadro da ação ideológica na sociedade capitalista contemporânea é este:
1) ideologia estrutural advinda das relações do sujeito na produção (mercadoria, acumulação, propriedade privada, contrato, direito, Estado).
2) ideologia sustentada por aparelhos ideológicos:
2.1. aparelhos ideológicos comunicacionais (meios de comunicação de massa).
2.2. aparelhos ideológicos de práticas reiteradas:
2.2.1. práticas ideológicas reiteradas do local de trabalho (sindicatos).
2.2.2. práticas ideológicas reiteradas da vida quotidiana (família, escola, igreja, comunidade).
É preciso saber como funciona tal quadro da reprodução social capitalista para estabelecer as formas de luta pela sua superação.
A sociedade capitalista se reproduz mediante formas sociais que a todos e a tudo determinam: mercadoria, valor, dinheiro, propriedade privada, contrato, Estado, direito etc. Todos os indivíduos e todas as classes se submetem, materialmente, a essa coerção das formas sociais burguesas. O pobre e o rico sabem que sua vida é medida por dinheiro; a diferença é que um tem – e pelo dinheiro explora –, enquanto o outro não tem – e pelo dinheiro é explorado. As condições do capitalismo não dependem da vontade de cada indivíduo; são, antes, estruturais. Não se é capitalista ou assalariado porque se quer, mas porque a sociedade assim produz suas relações sociais.
Essa base material pela qual as relações se mantêm faz com que todos, no capitalismo, tenham de viver submetidos às determinações do modo de produção. Mas contra isso, em geral, os indivíduos não se opõem: todo esse processo se faz pela vontade dos submetidos. Todos contratam, compram e vendem, negociam sua força de trabalho, desejam maiores lucros, melhores salários, oportunidades de negócio, segurança ao seu patrimônio etc. A ideologia capitalista é o que forma, na prática constituinte, os sujeitos que vivem em sociedades capitalistas.
A ideologia capitalista, no entanto, além de se basear nessas relações econômicas e sociais, reforça-se com uma série de aparelhos ideológicos. Para que não se levante contra a exploração do trabalho, o trabalhador é bombardeado pela ideologia liberal, louvada por entidades patronais e, mesmo, por algumas lideranças sindicais. Televisões, rádios, jornais, revistas, redes sociais, notícias e interpretações operam de acordo com o interesse burguês. Escolas e faculdades têm como conteúdo de seu ensino aquilo que é funcional ao capital. A religião, via de regra, legitima a desigualdade dizendo-a ser resultado de uma vontade divina. A família, organizada como unidade de sustento econômico dos seus, materialmente se protege e se orienta para a sobrevivência nos termos capitalistas, reproduzindo na prática sua ideologia. Os círculos de parentesco, amizade, vizinhança e diversão também sustentam os mesmos valores e prestigiam suas premissas ideológicas: ordeiros, não-criminosos, bem-sucedidos, bem-casados, ortodoxos sexual e afetivamente, trabalhadores, de direita – os chamados cidadãos de bem.
“Os Centros Socialistas são a alocação das energias não apenas para a disputa institucional – cujos limites são dados pela própria natureza das formas das instituições, derivadas do capital –, mas para o processo de preparação das massas para a transformação social.”
Destaco, assim, que há duas ordens ideológicas, complementares, que organizam o capitalismo: 1) uma estrutural, advinda da própria relação social dos sujeitos na produção; 2) outra sustentada por aparelhos, que é reforçada e manipulada pelos seus controladores. Assim, no estrutural, todos compram e vendem trabalho como mercadoria no capitalismo. No que tange aos aparelhos, as igrejas que sustentam os valores de tal sistema podem ser mais ou menos defensoras da teologia da prosperidade; as escolas, mais progressistas ou conservadoras; os meios de comunicação, mais ou menos golpistas ou reacionários. Os aparelhos ideológicos são materialmente sustentados pela determinação econômica, de tal sorte que a ideologia capitalista tende a dominar de ponta a ponta as relações sociais.
A determinação material pelo capital só se derruba com a tomada dos meios de produção pelas classes trabalhadoras e pela consecução de modos de produção socialistas. Essa determinação material do capital é intimamente conexa dos aparelhos repressivos de Estado – forças armadas, polícias, direito. Já os aparelhos ideológicos, por sua vez, podem ser parcialmente disputados dentro das condições capitalistas. É possível – embora seja difícil e sua conquista seja sempre intermitente – haver instituições ideológicas contrapostas ao capital, como escolas ou imprensa. A ideologia capitalista a tudo domina, mas o controle de alguns aparelhos ideológicos pode buscar tensionar tal domínio. A ideologia do capital na materialidade da produção é mais estrutural (e mais difícil de transformar) que cada ação ideológica sustentada pelos aparelhos. Assim o sendo, então está nos aparelhos ideológicos o elo fraco da corrente da luta de classes no capitalismo presente.
No que tange aos aparelhos ideológicos, eles podem ser compreendidos em dois grandes blocos: 2.1) os meios de comunicação de massa; 2.2) os aparelhos de formação ideológica por reiteração de práticas relacionais quotidianas. Os primeiros guardam, principalmente, a função ideológica de ataque e combate imediato. As pautas, os câmbios políticos e mesmo golpes são instrumentalizados por tais meios. São dinâmicos, buscam mobilização rápida e muitas vezes operam com foco. Os segundos têm a função ideológica de resistência e sustentação. As bases de horizonte de mundo aí se reproduzem. São estáveis, buscam sustentar padrões gerais de sociabilidade. Como são dois conjuntos de aparelhagem relacional relativamente intercambiáveis, aparelhos comunicacionais também têm, incidentalmente, funções de resistência e sustentação; aparelhos de reiteração quotidiana também têm, incidentalmente, funções de ataque e combate imediato.
A luta contra os meios de comunicação pode se fazer de modo econômico e jurídico – possuindo canais e disputando o mercado da informação – e técnico – utilizando tecnologias de modo vanguardista. Já o embate com os aparelhos da reiteração quotidiana se faz num nível comezinho, convivencial, no qual as práticas constantemente reproduzidas. Ter canais de mídia demanda um esforço estratégico dependente de grandes organismos de combate – governos à esquerda, partidos, sindicatos, financiamentos. Dada a histórica ausência de ação das esquerdas nesse nível de luta ideológica, e dada também a reação plena e imediata de capitalistas e meios tradicionais de comunicação de massa a tais empreendimentos, tem restado então, no campo das mídias, o uso vanguardista de tecnologias. A extrema direita assim procedeu, tomando de assalto o campo da direita e combatendo a esquerda via redes sociais e ferramentas de internet. Também nesse setor as esquerdas institucionais padecem. Em face de todo esse quadro de combates não realizados e dificultados, assim sendo, o único espaço factível das possibilidades – e, portanto, o elo no qual se deve investir a luta – é o da formação da ideologia na reiteração das práticas quotidianas.
Sobre o campo do convívio social, e a respeito de suas possibilidades de disputa em favor do socialismo, abrem-se ainda dois possíveis espaços: 2.2.1) aquele da disputa no local de trabalho – e em razão dos seus interesses profissionais imediatos; 2.2.2) aquele outro da mais basilar e imediata quotidianidade. Desde a Revolução Industrial, as lutas das massas trabalhadoras se concentraram em fábricas, indústrias e grandes espaços de produção, de que, no século XX, o fordismo é seu modelo mais exemplar. Com a chegada ao regime de acumulação pós-fordista, no final do século XX e início do século XXI, a produção se descentraliza relativamente no que tange à sua espacialidade. Com maiores incrementos da exploração via tecnológica, terceirizações e trabalho remoto, então a produção capitalista consegue desconectar a massa trabalhadora do encontro presencial em grandes plantas industriais ou mesmo de serviços. O aprendizado político na planta da fábrica ou no espaço físico de prestação de serviços se perde. Como toda sociedade capitalista é uma sociedade da exploração do trabalho sob forma assalariada, a submissão no trabalho continua, sob modos diversos – terceirizações, empreendedorismo individual, prestação de serviços, exército de desempregados à espera de trabalhos temporários –, mas a forja de vínculos sociais pelo local de trabalho é relativamente menor do que o fora no tempo do fordismo.
Desse vácuo ou dessa menor incidência da sociabilização por meio do local de trabalho decorre então uma maior incidência dos dois outros fenômenos de sociabilização mediante aparelhos ideológicos: o primeiro, aquele realizado pelos próprios meios de comunicação de massa, interpelando os indivíduos de modo mais direto e personalizado, com tecnologias e algoritmos cada vez mais sofisticados; o segundo, aquele da nucleação relacional básica, que se estrutura na família, na comunidade e na religião. Segundo as referências do quadro aqui proposto, a fórmula do capitalismo pós-fordista procede à seguinte dinâmica: 2.2.1 < 2.1 + 2.2.2. A sociabilização pelo trabalho se submete à sociabilização mediante o controle da individualidade pelos aparelhos comunicacionais e pelos aparelhos basilares de formação e cuidado familiares/comunitários.
São exatamente tais duas esferas de sociabilidade que sustentam, nas décadas de capitalismo pós-fordista, a marcha de regressão, conservadorismo e reacionarismo de países como o Brasil – mas também dos EUA e de outras sociedades mais. E também, exatamente, são as duas esferas não-trabalhadas pelas esquerdas do mundo que tomaram o poder dos Estados via eleitoral e que renunciaram, em grau variado, a combater frontalmente o capitalismo e a forjar a luta socialista.
Nenhuma dessas esferas ideológicas da sociabilidade é nova. Todas existem desde que as sociedades mundiais conhecem a sociabilidade capitalista, num modo de produção organizado mediante a subsunção real do trabalho ao capital. Em todas as sociedades em que surge, o capitalismo se organiza por famílias mononucleares, vida citadina e em seus respectivos bairros segregados urbanisticamente, religiões da prosperidade, sindicatos e partidos não-revolucionários e meios de comunicação de massa. A novidade do tempo presente é apenas a sua articulação e seus respectivos pesos relativos, que geram algumas modulações próprias dentro da reprodução social capitalista – aquilo que a teoria marxista da regulação chama por termos médios. Assim, tanto o local de trabalho e a vinculação orgânico-sindical de formação do trabalhador continuam subsistindo, ao lado e próximo dos meios de comunicação e das demais instituições de subjetivação de base. A mudança – e o que se trata de apontar para que se possa avançar nas lutas em sentido contrário – é no arranjo das relações conservadoras, que se mudam e se mantêm sob as mesmas formas do capitalismo. Daí, portanto, se o quadro se atualiza, dá-se a imperiosidade também da atualização das lutas transformadoras em face de tal contexto.
“O sindicato e a política institucionalizada são a forma de arregimentação política do fordismo; mas são os Centros Socialistas a forma organizacional de base no capitalismo pós-fordista.”
Nas condições do surgimento de um capitalismo fordista, massas proletárias estavam trocando vidas sob modos de produção tradicionais por vidas assalariadas e mercantilizadas. Naquele tempo, a resistência orgânica à uniformização mediante a forma mercadoria era maior, o que permitiu que algumas sociedades lutassem já pelo socialismo. Mas agora, nas condições do declínio do capitalismo fordista e de organização de um regime de regulação pós-fordista, as massas proletárias estão constituídas por uma sociabilidade plenamente mercantilizada. Suas vidas operam, então, um enraizamento da subjetividade marcadamente individualizada, cujos liames são sempre mercantis – na política, o cidadão é o consumidor; na família, a formação do filho é para herdar dos pais ou bem habilitar-se para se vender profissionalmente; na religião, o crente é o agraciado pelas vantagens econômicas sustentadas por Deus. O trabalho e suas esferas de ação são desprezados – ser trabalhador é menos desejado que ser celebridade (os aparelhos ideológicos de comunicação de massa ganham proeminência no desejo em face da excelência no ambiente de trabalho); sindicatos, partidos e movimentos de esquerda são objeto de ojeriza. O quotidiano se torna plenamente estruturado pela aparelhagem ideológica capitalista. Como a sociabilidade capitalista tem falhas, mas não há aparelhagem ideológica de denúncia e disputa de tais crises, até agora têm sido os próprios aparelhos ideológicos capitalistas que explicam suas falhas, narrando-as por meio de racionalidades que não são causais: falta de moral, de ética, de religião, de pleno liberalismo, culpa do Estado, dos novos costumes, da esquerda, do comunismo. Se não houver disputa nos aparelhos, o círculo da reprodução da exploração capitalista se fecha plenamente até mesmo quando da explicação de suas crises e falhas estruturais, impedindo que o sofrimento gere a explosão do antagonismo e da contradição.
Se o jornal, o rádio e a televisão são a forma comunicacional de massas do fordismo, as plataformas eletrônicas são a forma comunicacional do pós-fordismo. O sindicato e a política institucionalizada são a forma de arregimentação política do fordismo; mas são os Centros Socialistas a forma organizacional de base no capitalismo pós-fordista. Como as esquerdas, quando ganham poder mediante eleições, via de regra não tensionam ideologicamente a sociedade e não constituem novos aparelhos de comunicação de massa, restam abertas à disputa apenas as massas e sua vida quotidiana de base. Trata-se da única forma possível de luta efetiva na atualidade, preparando o terreno para depois alcançar as demais esferas de luta. O quotidiano não é uma esfera desprezível da sociabilidade atual: antes, é mesmo um de seus polos centrais. Então a luta nesse campo, se organizada, revelará o grande esteio para a ação futuramente revolucionária. O Centro Socialista é a forma da luta ideológica de base no capitalismo pós-fordista.
Ao assim se nomear, o Centro Socialista expressa o eixo principal de toda a luta ideológica. A nomeação é a única possibilidade de instaurar, de modo material e consequente, o sentido verdadeiro e científico da luta pela superação do capitalismo. Socialismo e comunismo têm sido palavras combatidas virulentamente pelos aparelhos ideológicos da atualidade (como o foram, em variados graus, por toda a história do capitalismo). Buscando se furtar a tal estigma, a estratégia de renunciar à clareza da luta só fez com que as esquerdas fossem capturadas pelo discurso e pelos enredamentos políticos práticos das classes dominantes. Nomear a atividade de formação política por socialista permitirá tensionar imediatamente o tecido social e abrir o espaço à clara formação das massas, sem que se pague tributo à ideologia burguesa, cujo preço depois é cobrado de modo insanável às esquerdas reformistas que, ao se fundarem em nomeações de luta submissas à ordem burguesa (defesa do republicanismo, da legalidade, da democracia eleitoral, da inclusão), não têm recursos ideológicos de mobilização das massas para a resistência e a contestação. Na América Latina das primeiras décadas do século XXI, todos os governos de esquerda que nomearam o socialismo caíram mais tardiamente e/ou resistiram mais a golpes; todos os governos de esquerda que se nomeavam pelo horizonte ideológico burguês caíram.
Assim, a primeira e central luta do Centro Socialista é pela nomeação. Se se chamar Centro da Cidadania, Centro Popular, Centro dos Trabalhadores, estará sob o horizonte burguês e nada representará de contradição à sociabilidade presente. Será caritativo, de prestação de serviços, dócil à reprodução capitalista. Somente se nomeando pelo único nome que é intolerável ao capitalismo poderá começar a forjar novas bases ideológicas. É verdade que o comunismo, etapa superior do socialismo, é também um fantasma à ideologia capitalista. “Comunista” é o único nome parceiro que se pode cambiar com “socialista” para identificar um centro de luta ideológica radical nas bases. Por ser socialista a etapa primeira em busca do comunismo, então por tal nome se identificarão os centros de base enquanto a sociedade tiver que enfrentar tal primeira etapa.
O Centro Socialista, ao se nomear, dá sentido à luta ideológica. Mas, ao ser fundado e começar suas atividades, organiza a luta ideológica. Ao se enraizar na vida quotidiana e comezinha, permitirá desconstituir tabus ideológicos das massas, explicando-lhes a ciência sobre a história, a sociedade e o modo de produção capitalista. Será desenvolvido por meio de atividades de alcance prático, enraizando-se nas lutas comunitárias imediatas por educação, habitação, urbanismo, água, esgoto, energia elétrica, saúde, assistência social, transporte, meio-ambiente, inclusão de minorias e grupos vulneráveis, artes e comunicação. Permitirá a criação de espaços efetivos de ação de movimentos sindicais e da classe trabalhadora. Também permitirá que movimentos sociais progressistas variados se articulem em propósitos ideológicos maiores.
Fincando-se espacialmente na comunidade, o Centro Socialista enfrentará as demandas comunitárias mais imediatas. Fará, de modo melhor, aquilo que religiões, instituições benemerentes e clubes associativos já o fazem com limites. A religião tende a converter o serviço social em proselitismo e a explicar a ação social com base em dinâmicas metafísicas. As instituições benemerentes e os clubes associativos via de regra são gestados e geridos por setores da classe média para os quais a contrapartida da prestação de serviços é o reforço da ideologia de suas frações de classe. Tanto as religiões quanto os clubes associativos bloqueiam a luta quando ela alcança contradições maiores que se insurjam contra os poderes e os poderosos, porque sua ideologia de base não é pela alteração da ordem e da sociabilidade. Somente centros que se nomeiem socialistas – e por tal horizonte se movam – poderão tensionar a sociedade sem que esbarrem com percalços imediatos (de classe, de preconceitos, de lucro, de financiamento), ou de expectativas ideológicas de fundo (teologia, repressão, conservadorismo).
“O Centro Socialista tanto funda o campo da luta ideológica mais alta quanto dinamiza e articula as lutas sociais já existentes.”
O Centro Socialista tanto funda o campo da luta ideológica mais alta quanto dinamiza e articula as lutas sociais já existentes. Sua natureza maior que aquele de uma luta específica de movimento social faz com que seu propósito seja acolhedor de todas as lutas imediatas ou focadas, mas não apenas enquanto soma-as a si, mas, sim, enquanto lhes dá perspectiva. Por isso, as dinamiza e as articula. No que tange à articulação, permite que lutas variadas convirjam e reagrupem forças, o que centros religiosos e clubes de serviço não o fazem totalmente – como exemplo, alguns, sendo até favoráveis às lutas dos sem-teto, não podem, por seus limites teológicos, apoiar as lutas feministas. No que tange à dinamização, todas as lutas contra dominações e opressões e as lutas por inclusão e sobrevivência ganham maior fôlego quando perspectivadas contra a exploração do modo de produção, alcançando problemas estruturais. O Centro Socialista permitirá, então, articular e dinamizar as lutas de toda uma geração em torno do horizonte socialista.
Chamar-se-ão, por Centros Socialistas, aqueles que assim quiserem se denominar. Não terão vinculação prévia a entidades federativas que os autorizem e os direcionem. Instalar-se-ão onde quiserem e puderem. Terão formatos diferentes, dimensões e modelos de atuação variados, e serão identificados apenas pelo trabalho de base e pela nomeação de socialista – que, sendo custosa e rara na atualidade, não os fará ser multiplicados conforme ímpetos que os levem rapidamente ao senso comum. Por mais voluntária e abertamente entusiasmada seja sua organização e autogestão, e por mais que sejam espaços de futuro poder social, os Centros Socialistas são unidades de trabalho político-ideológico que no começo enfrentarão grandes resistências. Seu surgimento é contrário à inércia ou às dinâmicas organizativas da atualidade. Daí que a primeira unidade de identificação entre os Centros Socialistas será garantida apenas pela raridade do esforço das pessoas que os empreenderem.
Serão formados por partidos, mandatos, sindicatos, instituições e movimentos sociais os mais variados e, em especial, por quaisquer uniões de pessoas em torno de ideais específicos ou amplos. Onde dois ou mais estiverem irmanados na ação socialista comunitária, ali haverá a chama da transformação social. Dada sua multiplicidade de fontes e pessoas constituintes, os Centros Socialistas serão tão distintos quanto o são as várias organizações sociais de base, podendo alguns centros ser mais destacados por estudos ou ações assistenciais ou movimentações políticas, mais próximos de grupos de interesses homogêneos ou forjados a partir de frentes amplas de propósitos. Terão estatutos próprios e figuras jurídicas adaptadas às suas feições e necessidades, com autogestão. Financiar-se-ão por conta própria, sustentando-se como puderem e no limite do que lograrem forjar e manter.
Reunirão sujeitos distintos que evitarão as idiossincrasias da condição de classe, do linguajar, da formação intelectual, do status, do hermetismo, do personalismo. Não poderão ter perfil exclusivamente de classe média, deverão se engajar nas bases populares, valorizando sua experiência e ampliando sua voz, atendendo anseios da classe trabalhadora e dos desamparados, mas sem concordar com o bloco ideológico conservador-regressista já amalgamado culturalmente entre nossa gente. Deverão se engajar e ser forjados nas lutas feministas, antirracistas e pela libertação das variadas opressões sociais. Os Centros Socialistas serão vanguarda não sobre o povo, mas do povo.
Os Centros socialistas se fundarão em estudo e ação. No que tange aos estudos, beberão diretamente dos textos de Marx e de todas as amplas leituras marxistas produzidas desde então. Buscarão fornecer os conhecimentos científicos basilares do marxismo e, também, aprofundarão as leituras contemporâneas e mais avançadas a respeito. Aprenderão com a história das lutas e das revoluções para poderem criar uma nova história, conforme as condições e reclames de nosso tempo e sociedade. Haverá divergências de estudos, ênfases e mesmo compreensões sobre o que é o marxismo e o socialismo. Conforme seu desenvolvimento, surgirão experiências de educação popular mais bem-sucedidas e mesmo bibliografias mais aptas passarão a se consolidar e a servir de referência. Cada Centro Socialista se educará do modo que considerar mais apropriado. O intercâmbio solidário entre os centros, aprendendo com suas variadas práticas, dará alguma decantação à própria forma dos estudos – o que ler, como ler, como unir teoria e prática. No entanto, não serão os Centros Socialistas unidades de mero estudo acadêmico. Seu propósito não é o de replicar o ambiente universitário. Tanto evitará o academicismo quanto, de outro lado, evitará o praxismo que se compraz com decisões, voluntarismos e meras ações, reféns do senso comum. Os Centros Socialistas serão fundados no estudo científico do capitalismo e do socialismo e, ainda, na ciência da gestação de horizontes revolucionários, contribuindo com o empreendimento de superação do capitalismo.
Para que logrem êxito e ação ideológica de grande resultado prático, os Centros Socialistas serão espaços que passarão por erros de implantação e consolidação. Tendem a ser eventualmente capturados por espectros ideológicos ainda burgueses, por leituras insuficientes ou falsamente científicas, por interesses partidários e eleitorais imediatistas e, mesmo, por idiossincrasias de indivíduos, grupos, espaços. A importância e o valor de luta dessas experiências múltiplas e livres, no entanto, excede sobremaneira os vieses errôneos que brotem em seu seio. Além disso, os Centros Socialistas poderão sofrer perseguições. Sejam aquelas locais, imediatas, sejam aquelas advindas de agentes do Estado, sejam aquelas dos meios de comunicação de massa, sejam ainda as da burguesia. Essa oposição sempre se dá em face de qualquer movimento progressista e transformador. Por isso, os centros deverão forjar uma rede de apoio e solidariedade na resistência. A união permitirá o apoio e o socorro. Mas, para além de se fixar no âmbito nas precauções, é preciso a coragem da luta a fim de iniciar grandes movimentações e processos históricos.
Centros Socialistas são livres e múltiplos como são as vontades de lutadoras e lutadores pela superação do capitalismo. Sendo raras essas figuras, e pouca a energia de que dispõem isoladamente, tendem a se agrupar por vínculos orgânicos partidários, acadêmicos, de interesses sociais concretos ou, mesmo, de agrupamentos afetivos. A partir de tais variados e valiosos plexos, hão de possibilitar que mais pessoas os descubram, se aproximem e por eles se afeiçoem. Eventualmente o trabalho de formação ideológica de base, em razão de suas demandas concretas e imediatas, permitirá, inclusive, estratégias de aproximação entre múltiplas correntes que se reivindicam de esquerda e socialistas hoje, e que não dialogam ou mesmo concorrem entre si. É possível que, futuramente, haja movimentações por unificarem esforços na base comunitária, permitindo então maiores unidades na luta geral. O horizonte dos Centros Socialistas é, inexoravelmente, o de unidade na diversidade.
“Como o Centro Socialista busca estabelecer a camaradagem socialista ainda dentro do espaço e do âmbito do capitalismo, operará a contrapelo da história.”
Trata-se de um projeto de uma necessária humildade constitutiva. Nasce no momento mais criticamente frágil das esquerdas, dos progressistas e dos socialistas no Brasil nas últimas décadas. Não busca vitórias eleitorais nem bruscos câmbios exitosos da formação social brasileira. Antes, busca intervir exatamente nas bases comunitárias nas quais se dá a gestão imediata da vida e nas quais se forma o horizonte cultural, valorativo e prático do viver das massas. Surge dos elementos que disponham de sua vontade de agir para uma aglutinação de atividades, tarefas e horizontes. Arregimentará o máximo número de distintos sujeitos e seus variados interesses e leituras de mundo. Não almeja unidade por dedução. Servirá de contributo à unidade por indução, no futuro, quando os grandes eixos da luta progressista e revolucionária se abrirem e, então, os Centros Socialistas se revelarem seu mais decisivo elemento de base.
Há instituições conservadoras de organização, mobilização e constituição das subjetividades sociais cuja história é antiga e cuja funcionalidade e reprodutibilidade foi se decantando por anos, décadas e séculos: família, vizinhança, religião, escola. A todas essas instituições, suas práticas, poderes e modos relacionais já são conhecidos e se impõem aos sujeitos: o pai, a mãe, o amigo, o líder religioso, o professor. Como o Centro Socialista busca estabelecer a camaradagem socialista ainda dentro do espaço e do âmbito do capitalismo, operará a contrapelo da história. Mas se seu modelo de implantação forjar ações, expectativas e modos relacionais de fácil réplica (modelos identificáveis de práticas, perfis destacados e copiáveis de lideranças), alcançará enfim uma próspera forma de sociabilidade revolucionária, como o foi no século XX o soviet.
Uma ideia e uma ação podem simbolizar um novo influxo da história. Tal como o neoliberalismo encerra as ilusões do bem-estar social capitalista e o golpe de 2016 fecha os ciclos de ilusão democrático-reformista-constitucional brasileira, em sentido contrário os Centros Socialistas simbolizam e marcam a nova etapa da luta transformadora, não mais iludida com os quadrantes liberais burgueses e então, agora sim, à frente de sua luta definitiva, de superação do modo de produção. Humildade dos propósitos, grandeza do projeto. Somente assim a grande história material se fará: passando por cima das ilusões politicistas que esperam que o povo se levante por conta própria, por cima das ilusões economicistas, que esperam que o capitalismo sucumba por si só, e por cima das paralisias dos que, em sabendo de tudo isso, não enfrentam o tempo.
Engenho e arte, sejam hoje ciência e revolução.
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Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Cátedra de Educação Advocatícia da ESA-OAB/SP”, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Estado e forma política (2013), Crise e golpe (2018) e o mais recente Crise e pandemia (2020). É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, e de Fascismo, de Evguiéni B. Pachukanis, todos lançados pela Boitempo