Comuna de Paris faz 150 anos: a democracia popular durou 72 dias
A Comuna de Paris de 1871 teve existência efémera, mas a sua forma de democracia directa continua a fazer sentido, numa altura em que cada vez mais nações adoptam experiências de democracia participativa.
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dia 18 de Março de 1871, faz hoje 150 anos, os parisienses rebelaram-se
contra o seu governo. Durante 72 dias, a capital de França pertenceu à
Comuna, vista por muitos historiadores como o primeiro exemplo de
governo popular, composto predominantemente por operários. A revolução,
ou a insurreição, conforme o ponto de vista, acabaria com um banho de
sangue, pondo ponto final ao que foi a primeira experiência moderna de
democracia directa. A Comuna de Paris aparece-nos hoje demasiado
longínqua no tempo, bem como os motivos, políticos e sociais, que
levaram àquela fugaz independência de Paris. Mas, século e meio depois,
há pelo menos uma semelhança que não podemos nem devemos ignorar: a
insatisfação dos cidadãos com as instituições que os governam. Numa
altura em que a democracia representativa atravessa uma crise de
confiança global que a pandemia só veio agravar, terá chegado finalmente
a altura de olhar para outras formas de democracia?
Naquele
mês de Março de 1871, a insatisfação dos parisienses com os seus
governantes atingiu o ponto de ruptura. A Guerra Franco-Prussiana levou,
em pouco mais de seis meses, à captura do Imperador Napoleão III (em
Setembro de 1870), ao colapso do Segundo Império Francês e ao início da
Terceira República, que estabeleceu a capital em Tours, já que Paris
estava sitiada havia quatro meses. A cidade acabou por render-se e o
armistício com os prussianos foi assinado a 28 de Janeiro de 1871. O
acordo previa a realização de eleições, seguidas da convocação de uma
assembleia nacional que teria de decidir a aceitação da paz definitiva.
As
eleições decorreram apressadamente a 8 de Fevereiro de 1871, por
sufrágio muito pouco universal. Estávamos ainda em pleno século XIX e as
mulheres não foram autorizadas a votar... Tal como não puderam votar os
500 mil soldados que foram feitos prisioneiros pela Prússia ou que
estavam incapacitados de o fazer. Ainda por cima, nos 43 departamentos
que estavam sob ocupação prussiana, os franceses também não puderam
votar. Em resultado disso, dos 638 deputados eleitos, quase 400 são de
tendência monárquica, pouco mais de 200 pertencem a diferentes famílias
republicanas e 30 são bonapartistas. Em Paris, são eleitos 37
republicanos de um total de 43 deputados, entre eles figuras como Victor
Hugo ou Georges Clemenceau. Se a província maioritariamente monárquica e
camponesa aceita a paz com a Prússia, na republicana e operária Paris, o
armistício é pouco menos do que insuportável. A
capital é também um autêntico viveiro de contestação operária. Já uma
grande cidade de 1,8 milhões de habitantes, 57% da sua população vive do
trabalho industrial e 12% da actividade comercial. Além disso, Paris é,
desde a revolução de 1848, palco regular de greves, um direito obtido
em 1864, e de revoltas populares, resultado das terríveis condições
materiais em que vive grande parte dos parisienses, agravada pela Guerra
Franco-Prussiana e pelo cerco.
A revolta e a Comuna
O
governo feito de monárquicos, bonapartistas e republicanos que sai das
eleições, liderado por Adolphe Thiers, não é aceite pelas organizações
operárias de Paris. O rastilho é decididamente ateado a 16 de Março,
quando Thiers decide desarmar a cidade para a purgar de “todos os
vermelhos”. O Exército confisca 227 canhões à Guarda Nacional – que
defendera a cidade durante o cerco – e os parisienses oferecem resistência, recebendo fogo em resposta. Chegara o ponto de não retorno.São
erguidas barricadas por toda a cidade e os insurgentes, apoiados pela
Guarda Nacional, expulsam as forças legalistas da capital francesa. A 26
de Março, após a realização de eleições democráticas, é instituída a
Comuna de Paris, composta por 92 membros, um para cada 20 mil
residentes. O programa é socialista e claramente extremista para a
época. Entre as medidas defendidas pela Comuna estão a separação entre o
Estado e a Igreja, a adopção da bandeira vermelha como símbolo
nacional, a substituição da polícia pela Guarda Nacional, o fim do
serviço militar obrigatório e do exército regular, a abolição da pena de
morte, a instituição da igualdade civil entre os géneros, a
secularização e gratuidade da educação para toda população, a criação da
Segurança Social, a redução da jornada de trabalho e o fim do trabalho
nocturno, a fixação de salários mínimos para os trabalhadores, a
desapropriação de residências e fábricas sem uso e o controlo dos preços
dos alimentos.O
governo da República não está, naturalmente, disposto a aceitar esta
“independência” e desde cedo prepara a reconquista de Paris. No início
de Maio, o Exército cerca a cidade e, a 21 de Maio, começa a ofensiva
final, que entraria para a história como a semaine sanglante, a semana sangrenta, que põe frente a frente 130 mil soldados da República contra os pouco mais de 50 mil communards,
entre eles mulheres e crianças. Com a derrota cada vez mais inevitável,
os soldados da Comuna optam pela táctica da terra queimada, neste caso
dos palácios queimados. A capitulação chega a 28 de Maio, mais de sete
mil mortos depois, 1700 deles por fuzilamento. A Comuna de Paris morreu
ao fim de 72 dias.
Festejar o quê?
A
Comuna de Paris não é, 150 anos depois, assunto pacífico para os
franceses. A capital francesa não se poupou nos festejos e a câmara,
liderada pela socialista Anne Hidalgo, programou mais de 50 eventos,
entre exposições, instalação de placas evocativas e outras manifestações
culturais. No início de Fevereiro, uma sessão da assembleia municipal
mostrou que consenso é coisa que não existe em relação à Comuna de
Paris. “Os seus valores são os nossos”, lançou Laurence Patrice,
vereadora do PCF. Do outro lado Antoine Beauquier, do Groupe Changer
Paris, republicano e centrista, afirmou não querer celebrar “um momento
triste de guerra civil em que os parisienses se mataram uns aos outros”.A
verdade é que, passado século e meio, a Comuna de Paris continua a
fazer parte da consciência colectiva dos franceses. Lançado em Janeiro, o
livro La Commune de Paris 1871: Les acteurs, l’événement, les lieux, obra de 1400 páginas coordenada pelo historiador Michel Cordillot, esgotou em poucas semanas, tornando-se um inesperado best-seller.
A memória da Comuna de Paris está presente no movimento dos coletes
amarelos, assim como na Nuit Debout, movimento social formado em 2016
que chegou a rebaptizar a Praça da República, em Paris, como a Praça da
Comuna.“É
o momento da história da França com mais pessoas da classe operária em
postos de decisão política”, afirma a historiadora Mathilde Larrère em
declarações à AFP. “Não é a Comuna que continua actual, mas sim as
reivindicações sociais e de democracia directa que apresentou”,
acrescenta. O mesmo diz Alice de Charentenay, outra historiadora que
utiliza o Twitter para narrar o dia-a-dia da Comuna de Paris. “É
engraçado ver como uma parte do programa da Comuna se tornou tão banal
que até a direita o partilha”, refere.
Salvar a democracia
A
democracia directa posta em prática pela Comuna de Paris há 150 anos
parece, aos olhos contemporâneos, nada mais do que uma utopia. Mas a
verdade é que a perda de confiança na democracia representativa é um
sintoma que não podemos ignorar. No início deste ano, um estudo da
Universidade de Cambridge mostrou que o mundo nunca esteve tão insatisfeito com a democracia
como agora. O trabalho da universidade britânica, apresentado como o
mais abrangente de sempre sobre o sentimento em relação à democracia
como sistema político, ouviu quatro milhões de pessoas em 154 países.
Conclusão: a insatisfação com a democracia no mundo cresceu de 48% em
1995 para 58% em 2019.
A
solução para o cansaço democrático poderá estar noutras formas de
democracia, já praticadas em pequena escala um pouco por todo o mundo,
com resultados positivos: a democracia participativa e a democracia
deliberativa. É precisamente em França que podemos encontrar uma das
propostas mais revolucionárias. O movimento Sénat Citoyen propõe a
transformação do Senado actual num senado de cidadãos, escolhido por
sorteio e representativo da população francesa, que serviria como uma
espécie de contrapoder à Assembleia Nacional, com a capacidade de, em
casos extremos, dissolver o Parlamento eleito.
A
ideia será demasiado radical, mesmo para estes tempos pouco normais,
mas há exemplos que mostram como a democracia participativa tem tudo
para resultar. Em 2016, a Irlanda mostrou as possibilidades deste tipo
de democracia, com o estabelecimento da Citizens’ Assembly, assembleia de cidadãos
reunida para deliberar sobre os temas mais fracturantes da sociedade
irlandesa, ainda que sem carácter vinculativo. Foi reunido um grupo de
100 cidadãos seleccionados aleatoriamente — ou quase, já que era preciso
cumprir alguns critérios de representatividade, como sexo, idade,
origem e classe social — com o objectivo de
recolher a informação, analisá-la, debater e, finalmente, estabelecer
recomendações através de um processo de deliberação.
A
discussão da oitava emenda da Constituição irlandesa, estabelecida em
1983 e que criminalizava o aborto, um tema extremamente sensível num
país maioritariamente católico, foi o assunto mais mediático que a
Citizen’s Assembly debateu. Durante vários meses, aquela centena de
cidadãos analisou documentos, ouviu opiniões de especialistas e casos
pessoais. A sua deliberação — de que a emenda devia ser alterada —
levou o Governo de Dublin a levar avante um referendo à liberalização
do aborto, aprovado por 66% dos irlandeses. Estamos longe da experiência
de democracia directa da Comuna de Paris, mas a devolução, real, do
poder aos cidadãos parece cada menos uma utopia.
Manipulação e propaganda
Governo
popular à parte, a Comuna de Paris foi também pioneira na manipulação
de imagens para efeitos de propaganda. No início da década de 1870 a
fotografia ainda se encontrava na sua infância, mas a revolta e
subsequente estabelecimento da Comuna foram talvez o primeiro grande
acontecimento a merecer uma cobertura fotográfica digna desse nome. A
técnica disponível ao tempo ainda não permitia captar o movimento, pelo
que as muitas fotos que retratam a época foram tiradas com os
protagonistas em pose. Ernest-Charles Appert foi, juntamente com o
seu irmão, Eugène-Léon Appert, um dos pioneiros da foto-reportagem.
Foi, também, um dos primeiros grandes manipuladores. Claramente hostil à
Comuna, Appert utilizou como ninguém fizera até então a fotomontagem,
com a intenção de retratar os communards como vulgares assassinos. Muitas das suas fotomontagens, que reuniu no álbum Crimes de la Commune, retratam fuzilamentos e massacres perpetrados pelos homens da Comuna. As
fotomontagens são, naturalmente, toscas. A perspectiva nem sempre é
levada em conta e as cabeças “coladas” aos corpos são amiúde
desproporcionais, mas são os primórdios do deep fake...
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