Engels 200 anos
O trabalho na
dialética da natureza
JOÃO QUARTIM DE MORAES*
Ontólogos contra naturam
Em seu importante estudo sobre a ecologia de Marx, John Bellamy Foster
assinalou a deriva filosófica dos pensadores ocidentais das ciências humanas,
marxistas e não marxistas, que na ânsia de esconjurar os assustadores espectros do
mecanicismo, determinismo, positivismo, biologismo e outros avatares, rejeitaram
o materialismo para sustentar que “o mundo social construía-se, na integralidade
de suas relações, pela prática humana [...] negando pois simplesmente os objetos
de conhecimento [...] que são naturais e existem independentemente de seres
humanos e construções sociais”. Essa “guinada numa direção idealista” consistia
em opor Engels, culpado de “uma concepção materialista da natureza”, a Marx,
para o qual a dialética só se relacionaria com a práxis, portanto “com o mundo
humano-social” (Foster, 2005, p.21-22).
Exemplo peculiar dessa operação ideológica é o oferecido por Nicolas Tertulian
num artigo consagrado à apresentação da pleonástica “ontologia do ser social”
(literalmente: teoria do ser do ser social) de Lukács” (Tertulian, 1996, p.54-69).1
O autor anuncia “o objetivo de distinguir o pensamento autenticamente ontológico
de Marx da interpretação dada por Engels”, acusado de “responsável, de certa
forma, pela deformação staliniana do marxismo” e reproduz uma passagem de
Lukács que não deixa dúvidas a esse respeito: “Eu acredito [...] no fato de que
* Professor titular aposentado colaborador do Departamento de Filosofia da Unicamp. E-mail: jqmoraes
@gmail.com
1 Sobre a origem neoescolástica do termo ontologia, ver Quartim (2005, p.36, nota 14).
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Engels e depois dele alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da
sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais
de que fala Marx” (ibid., p.58-59). A frase pode sugerir posições revolucionárias,
mas um autor que em todos os aspectos merece mais crédito do que o ontólogo
romeno, assim se pronunciou a respeito de Lukács:
Há três sintomas dessa doença (infantil do comunismo) na excelente revista O
comunismo. O n.6 (de 1º de março de 1920) contém um artigo do camarada G.L.
intitulado “A questão do parlamentarismo” [...] do qual se dissocia nitidamente
o camarada B.K., autor do artigo “A questão de pôr em prática o boicote do
parlamentarismo” (n.18, de 8 de maio de 1920) [...]. Esse artigo de G.L. é muito
esquerdista e muito ruim. Seu marxismo é puramente verbal, a distinção que faz
entre a tática “ofensiva” e a tática “defensiva” é totalmente imaginária; nela não
achamos análises concretas de conjunturas históricas bem definidas [...]. (Lenin,
1961, p.167) 2
Que o “camarada G.L.” e seu discípulo romeno tenham aproximado Engels de
“alguns social-democratas” não tem importância maior do que a distinção entre
tática “ofensiva” e tática “defensiva”. O discípulo Tertulian garante, entretanto,
que o “pôr teleológico”, “célula geradora” da “vida social”, de Lukács “torna
impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é
dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a
segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos” (Tertulian, 1996,
p.63). Essa volatilização do marxismo, que o reduz, na acima referida expressão de
Foster, “ao mundo humano-social”, em última análise, portanto, a uma doutrina das
relações intersubjetivas, prosperou na vertente dita existencialista do idealismo do
século XX, em especial na filosofia da consciência de Sartre, que também gastou
tinta para desqualificar Engels. Tentativas semelhantes têm reaparecido em auto-
res anticomunistas do chamado “marxismo ocidental” contemporâneo. Quanto à
compulsão de salvar o homem de sua animalidade, dissipando a confusão “entre
a vida da natureza e a vida da sociedade”, ela sugere motivações metafísicas e
teológicas (o homem não se reduz à natureza, é composto de matéria e espírito, é
um animal racional; um intelectual cristão acrescentaria: é atormentado por uma
sede de transcendência).
Vale, entretanto assinalar que o próprio Lukács (2004) não manifestava
desapreço por Engels, reconhecendo-lhe o grande mérito de ter mostrado que o
homem se autoproduziu pelo trabalho e que nem todos os seus epígonos repeliram
a natureza para longe das relações intersubjetivas e da esfera da dialética. Como
2 A data deste comentário de Lenin é 12 de junho de 1920. O comunismo era a revista da Interna-
cional Comunista em língua alemã para o sudeste europeu. G.L. é Georg Lukács e B.K. Bela Kun,
o “organizador e dirigente do poder dos sovietes da Hungria em 1919” (Lenin, 1961, p.566 e notas58 • Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.
Engels e depois dele alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da
sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais
de que fala Marx” (ibid., p.58-59). A frase pode sugerir posições revolucionárias,
mas um autor que em todos os aspectos merece mais crédito do que o ontólogo
romeno, assim se pronunciou a respeito de Lukács:
Há três sintomas dessa doença (infantil do comunismo) na excelente revista O
comunismo. O n.6 (de 1º de março de 1920) contém um artigo do camarada G.L.
intitulado “A questão do parlamentarismo” [...] do qual se dissocia nitidamente
o camarada B.K., autor do artigo “A questão de pôr em prática o boicote do
parlamentarismo” (n.18, de 8 de maio de 1920) [...]. Esse artigo de G.L. é muito
esquerdista e muito ruim. Seu marxismo é puramente verbal, a distinção que faz
entre a tática “ofensiva” e a tática “defensiva” é totalmente imaginária; nela não
achamos análises concretas de conjunturas históricas bem definidas [...]. (Lenin,
1961, p.167) 2
Que o “camarada G.L.” e seu discípulo romeno tenham aproximado Engels de
“alguns social-democratas” não tem importância maior do que a distinção entre
tática “ofensiva” e tática “defensiva”. O discípulo Tertulian garante, entretanto,
que o “pôr teleológico”, “célula geradora” da “vida social”, de Lukács “torna
impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é
dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a
segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos” (Tertulian, 1996,
p.63). Essa volatilização do marxismo, que o reduz, na acima referida expressão de
Foster, “ao mundo humano-social”, em última análise, portanto, a uma doutrina das
relações intersubjetivas, prosperou na vertente dita existencialista do idealismo do
século XX, em especial na filosofia da consciência de Sartre, que também gastou
tinta para desqualificar Engels. Tentativas semelhantes têm reaparecido em auto-
res anticomunistas do chamado “marxismo ocidental” contemporâneo. Quanto à
compulsão de salvar o homem de sua animalidade, dissipando a confusão “entre
a vida da natureza e a vida da sociedade”, ela sugere motivações metafísicas e
teológicas (o homem não se reduz à natureza, é composto de matéria e espírito, é
um animal racional; um intelectual cristão acrescentaria: é atormentado por uma
sede de transcendência).
Vale, entretanto assinalar que o próprio Lukács (2004) não manifestava
desapreço por Engels, reconhecendo-lhe o grande mérito de ter mostrado que o
homem se autoproduziu pelo trabalho e que nem todos os seus epígonos repeliram
a natureza para longe das relações intersubjetivas e da esfera da dialética. Como
2 A data deste comentário de Lenin é 12 de junho de 1920. O comunismo era a revista da Interna-
cional Comunista em língua alemã para o sudeste europeu. G.L. é Georg Lukács e B.K. Bela Kun,
o “organizador e dirigente do poder dos sovietes da Hungria em 1919” (Lenin, 1961, p.566 e notas
28 e 29).
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assinalou pertinentemente Silva (2016, p.322) em sua bem elaborada síntese so-
bre ontologismo e “antiengelsismo”, István Mészáros, o mais conhecido, senão
o mais importante continuador da linha de pensamento dita lukacsiana, observou
com ironia que
uma das maneiras pelas quais se procurou alijar do marxismo a objetividade das
determinações dialéticas consistia em declarar que eram uma criação de Engels, o
qual falava sobre dialética não apenas na história, mas, horribile dictu, também na
natureza. Isto, insistiam, devia ser rejeitado como incompatível com os próprios
escritos de Marx. No entanto, os próprios fatos, mais uma vez, dizem outra coisa.
Se alguém é “culpado” nesse aspecto certamente é o próprio Marx, que escreveu
a Engels, quase dez anos antes de este último começar a escrever sua Dialética da
natureza: “Você também perceberá, pela conclusão do meu capítulo III [do Capital],
[...] que no texto eu afirmo que a Lei que Hegel descobriu, de mudanças puramente
quantitativas se transformando em mudanças qualitativas, vale tanto na história
como nas ciências naturais”. (Mészáros, 1996, p.330-331, apud Silva, 2016, p.322)
A carta a que Mészáros se refere está datada de 22 de junho de 1867, pouco
menos de três meses antes da publicação do primeiro volume do Capital (em 14
de setembro). Em carta que lhe enviara em 16 de junho, Engels tinha comentado
a “nova teoria química” de August von Hoffman, que trouxe
grande progresso em relação à antiga teoria atomística, mostrando que a molécula,
enquanto a menor categoria da matéria capaz de ter uma existência autônoma, é
uma categoria inteiramente racional, um “nó” como diz Hegel, na série infinita
de partículas, em que ela não põe um termo, mas na qual ela marca uma diferença
qualitativa. O átomo (outrora representado como limite da divisibilidade) nada
mais é agora do que uma relação. (Marx; Engels, 1981, p.387-388; os grifos são
do original)
Em sua resposta de 22 de junho, após dizer que concordava inteiramente com
o amigo a respeito de Hoffman, Marx relacionou a lei hegeliana da transformação
das mudanças quantitativas em qualitativas à “teoria molecular”, e reitera que ela
é válida, tanto na história como nas ciências naturais (ibid., p.390-391).
É à luz da dialética da transformação das mudanças quantitativas em qualita-
tivas, que Marx, alheio à retórica do idealismo intersubjetivo (“pôr teleológico”,
“célula geradora da vida social” etc.), expõe sinteticamente no Capital a tese
de que o uso e a criação dos meios de produção caracterizam especificamente o
trabalho humano. Evidentemente, não cabia numa crítica da economia política
burguesa proceder ao estudo aprofundado das modalidades pré e extra-humanas
do trabalho; por isso, o ponto de partida do Capital é a forma de trabalho própria
à espécie humana, mas o leitor é advertido de que
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a situação (Zustande) em que o trabalhador se apresenta no mercado como ven-
dedor de sua própria força de trabalho deixou para o fundo dos tempos primitivos
a situação em que o trabalho humano ainda não se tinha desfeito [grifos nossos,
JQM] de sua primeira forma instintiva. Pressupomos [Wir unterstellen; grifos
nossos] o trabalho numa forma em que ele pertence exclusivamente ao homem.
(Marx, 1983, p.149)
A categoria pressuposição tem sentido forte em Marx. A despeito do estágio
elementar dos conhecimentos arqueológicos de seu tempo, ele deixou aberta a
perspectiva de uma história natural da hominização ao assinalar que, no “fundo
dos tempos primitivos”, os hominídeos ainda não haviam ultrapassado a “primeira
forma instintiva” do trabalho. Longe de inventar um cordão sanitário separando
metafisicamente o “pôr teleológico” da técnica rudimentar de muitas espécies de
viventes, Marx observa que “o emprego e a criação dos meios de trabalho, embora
se encontrem em germe (im Keim) em algumas espécies animais (grifos nossos,
JQM), caracterizam o processo de trabalho especificamente humano” (ibid.,
p.151). Com efeito, a capacidade de fabricar instrumentos, que “levou Franklin a
definir o homem como ‘a tool making animal’”, embora se encontre também em
germe em algumas outras espécies animais (inclusive o chimpanzé), caracteriza
o modo humano de trabalhar (ibid.).
A difícil assimilação do darwinismo
A ideia de que o homem se autoproduziu pelo trabalho, de origem hegeliana,
incorporou-se à formação filosófica de Marx e de Engels. Nos Manuscritos de
1844, Marx fala em “engendramento do homem pelo trabalho” (Marx, 1962, p.99)
e saúda a “grandeza da Fenomenologia de Hegel”, que concebe “o homem como
resultado de seu próprio trabalho. Mas o único trabalho que Hegel conhece e
reconhece é o trabalho abstrato do espírito” (ibid., p.132-133; grifos do original).3
A história concreta da autoprodução concreta do homem estava ainda para ser
escrita. Coube ao transformismo conferir materialidade ao princípio hegeliano de
que o real é intrinsecamente processual.
Até a passagem do século XVIII para o XIX, predominara inconteste no estudo
da vida a concepção dita fixista das espécies orgânicas. Com exceção de Buffon
(1707-1788), que anteviu a transformação das espécies no século XVIII,4 os gran-
des biólogos seus contemporâneos, notadamente Cuvier e Lineu, continuaram a
aceitar o princípio, até então um dogma entre filósofos e médicos (além do senso
comum), de que as espécies eram imutáveis. Foram os estudos de Jean Baptiste
Lamarck, consolidados em sua Filosofia zoológica (1809), que romperam com o
3 B. Naccache (1980, p.68) reuniu e comentou estas passagens a propósito da produção da mão pelo
trabalho.
4 Ver logo adiante a avaliação da obra de Buffon por Darwin.
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dogma do “fixismo”, introduzindo na história natural o princípio de que as espécies
se transformam. As ideias de Lamarck, sobre cujo alcance revolucionário não nos
parece necessário insistir, difundiram-se nos círculos intelectuais esclarecidos da
Europa durante as primeiras décadas do século XIX.
Embora tenha, com razão, atribuído muito mais importância à obra de Darwin
do que à de Lamarck, Engels elogiou o grande naturalista francês no Anti-Dühring
(1878), salientando seus “grandes méritos”, mas ressalvando que
no tempo dele a ciência estava longe de dispor de materiais suficientes para poder
responder à questão da origem das espécies de outra maneira que não fossem as
antecipações, quase profecias. Além dos imensos materiais reunidos desde então
nos domínios da botânica e da zoologia descritivas e anatômicas, vimos aparecer,
após Lamarck, duas novas ciências [...] o estudo do desenvolvimento dos germes
vegetais e animais (embriologia) e o dos vestígios orgânicos conservados nas di-
versas camadas da crosta terrestre (paleontologia). [...] Mas a teoria da evolução é
ainda muito jovem e não devemos duvidar de que as pesquisas futuras modificarão
muito sensivelmente as ideias atuais. (Engels, 1963, p.107)
Darwin consagrou a Lamarck uma página do prefácio (“historical sketch”) da
Origem das espécies, em que expõe sinteticamente as primeiras ideias científicas
modernas sobre a transformação das espécies orgânicas. Ele se refere inicialmente
a Buffon, o primeiro autor moderno “que tratou a questão com espírito científico”,
mas
como suas opiniões flutuaram muito em diversos períodos e ele não trata das cau-
sas ou meios da transformação das espécies, não preciso entrar aqui em detalhes.
Lamarck foi o primeiro homem cujas conclusões sobre o assunto atraíram muita
atenção. [...] ele foi o primeiro a prestar o eminente serviço de despertar atenção para
a possibilidade de que toda mudança no mundo orgânico, bem como no inorgânico,
era resultado de lei e não de miraculosa interposição. (Darwin, 1968, p.xxi-xxii)
Dentre as ressalvas que faz em seguida a Lamarck, duas teriam muito impacto
no pensamento da evolução. A primeira concerne aos “meios de modificação”
(das espécies): além da “ação direta das condições físicas” e do “cruzamento de
formas já existentes”, a mais importante era “o uso e desuso”, isto é, “os efeitos
do hábito”. A este último meio, “ele parece atribuir todas as belas adaptações na
natureza, tais como o pescoço longo da girafa, que lhe permite alcançar os ramos
das árvores”. A segunda remete aos princípios filosóficos do conhecimento da vida:
Lamarck “acreditou também numa lei do desenvolvimento progressivo”; todas as
formas deveriam então progredir, mas para dar conta da “existência, em nossos
dias, de produções simples” (= organismos que não progrediram), ele sustenta
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que estas são “geradas espontaneamente” (ibid., p.xxii). Essa crítica darwiniana
da teleologia assume a firme defesa da objetividade científica.
É provável que Engels só tenha estudado Lamarck após a leitura da Origem das
espécies. O impacto dessa obra maior de Darwin, publicada em 24 de novembro
de 1859, foi enorme. Os 1.250 exemplares da tiragem inicial esgotaram-se naquele
mesmo dia. Engels logo comprou o seu: em 11 ou 12 de dezembro ele escreveu
a Marx de Manchester dizendo que
este Darwin, que estou lendo, é inteiramente sensacional. Havia ainda um lado
pelo qual a teleologia não tinha sido demolida; a coisa agora está feita. Além disso,
nunca havia sido levada adiante uma tentativa de tal envergadura para demonstrar
que há um desenvolvimento histórico na natureza. (Marx; Engels, 1975, p.445)
Um ano depois, em carta de 19 de dezembro de 1860, Marx conta ao amigo que
tinha lido, entre outros, “o livro de Darwin sobre a Natural Selection”; a despeito
da “bem inglesa falta de fineza no desenvolvimento, esse é o livro que contém,
no plano da história natural, o fundamento de nossa concepção” (Marx/Engels,
1978, p.248; grifos nossos, JQM). Em carta de 21 de janeiro de 1861 a Ferdinand
Lassalle, ele diz que o livro “é extremamente importante e me convém como
embasamento científico da luta de classes histórica” (ibid., p.265-266). Nos anos
seguintes, entretanto, criticando as pretensas “leis” de Malthus sobre a população,
ele e Engels assinalaram o que lhes parecia uma influência do malthusianismo no
pensamento de Darwin. Em carta a Engels de 18 junho de 1862, Marx observou
ironicamente que a seleção natural “reconhece nos animais e nas plantas sua própria
sociedade inglesa [...] e sua luta malthusiana pela vida” (Tort, 2007, p.97). Engels
retomou a questão em carta a F. A. Lange de 29 março de 1865, declarando ao
grande historiador do materialismo que os elementos de malthusianismo no estudo
que este publicara em 1865 sobre a questão operária mostravam “quão grande
vergonha para a sociedade burguesa moderna era não ter se elevado acima das
formas econômicas que encontramos nos animais” (Naccache, 1980, p.118-119).
Vale lembrar que a pretensa “lei” de Malthus sobre a diferença entre a taxa
meramente aritmética de crescimento da produção dos meios de consumo e a ta-
xa geométrica de crescimento da população estava provocando acirrado debate.
Darwin constatou, na trilha de Malthus, que a capacidade reprodutiva de cada
espécie tende a gerar mais indivíduos do que a capacidade de sobreviver. Este
“excesso” está inscrito na própria lógica da seleção natural: as espécies de fraca
capacidade reprodutiva tendem a ser eliminadas. Mas a ruptura do equilíbrio eco-
lógico de uma população, pondo em risco sua sobrevivência, pode advir dos mais
diversos fatores. Para muitas espécies, as maiores ameaças não provêm da escas-
sez de alimentos, mas do excesso de predadores. No caso da espécie humana, o
domínio (sempre relativo) que ela adquiriu sobre as forças naturais permite con-
trabalançar o crescimento populacional pelo aumento da produtividade agrícola.
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Como em muitas outras espécies, os comportamentos migratórios podem ter
efeitos análogos. Nem a capacidade reprodutiva, nem o ambiente, são dados está-
ticos; as leis da população são históricas, condicionadas pela evolução econômica,
notadamente pela produtividade do trabalho. Por apegar-se unilateralmente ao
descompasso entre a mecânica genética e a massa de alimentos disponíveis, Mal-
thus é incapaz de levar em conta a adaptação de uma espécie ameaçada a novas
condições mais propícias.5
Engels e depois Marx criticaram com acerto as “leis” malthusianas, por separar
abstratamente demografia e economia. Mas bem menos razão tiveram ao amal-
gamar as teses de Darwin com as de Malthus, aproximando-as também da guerra
de todos contra todos de Hobbes e da concorrência econômica de Adam Smith.6
Isso os levou a avaliar inadequadamente o conteúdo da descoberta científica
darwiniana, como ficou claro na carta que Engels enviou em 12 de novembro de
1875 ao escritor Piotr Lavrov, um dos teóricos do populismo russo. Sintetizando
sua visão do darwinismo, ele frisou que aceitava “a teoria da evolução”, mas
considerava o “método de demonstração (luta pela vida, seleção natural), apenas
uma primeira expressão [...] de um fato que vinha de ser descoberto” (Marx; En-
gels, 1971, p.309).7 Essa avaliação não leva em conta que são muitas as doutrinas
evolucionistas, mas as que importam, do ponto de vista do conhecimento, são
as que contribuem para explicar o fato básico a que Engels se refere: a transfor-
mação das espécies. A contribuição científica fundamental de Darwin consistiu
exatamente em mostrar qual é a mecânica da transformação. Vale examinar mais
de perto esse ponto decisivo.
A seleção natural articula a transmissão do código genético de uma geração a
outra às condições ambientais. Darwin não estava a par das leis da hereditariedade
descobertas por seu contemporâneo Mendel (que só post mortem foi reconhecido
como pioneiro da genética científica8); mesmo, porém, que delas tivesse notícia,
isso não teria afetado sua teoria: vantagens seletivas não são qualidades intrín-
secas dos indivíduos, mas relações entre eles e o meio ambiente. Não é preciso
5 Foi exatamente essa incapacidade de pensar a complexidade da evolução que marcou o limite da
influência inicialmente exercida por Malthus sobre Darwin. Vale ler as observações de J. Bellamy
Foster (2005, p.255-263) sobre esse tópico.
6 Naccache (1980, p.86-98 e 118-119) expõe pormenorizadamente as dificuldades, oscilações e
equívocos na assimilação do darwinismo por Marx e Engels, notadamente a respeito dos supostos
modelos de Hobbes, de Adam Smith e de Malthus.
7 Engels desenvolveu essas ponderações na Dialética da natureza (onde estão reunidos estudos de
1870 a 1882, publicados somente em 1927 por Riazanov).
8 Só no final do século XIX a importância das descobertas de Mendel tornou-se consensual nos meios
científicos. Elas foram confirmadas pelo colossal desenvolvimento da genética nos últimos 150 anos,
apoiado na biologia molecular, notadamente pela descoberta e identificação do ADN, iniciada em
1869 e progredindo passo a passo ao longo do século XX. (Não há de configurar excesso de zelo
patriótico designar por ADN o ácido desoxirribonucleico, em vez de empregar a sigla em inglês
DNA, como faz a maioria por aqui. Os portugueses, que defendem melhor do que nós o próprio
idioma, escrevem Sida e não Aids, como no Brasil, para designar a doença transmitida pelo vírus
da imunodeficiência.)
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saber como se explicam as variações individuais para constatar que, deixando de
lado as malformações congênitas (sempre desvantajosas), é o meio ambiente que
determina, em cada situação ecológica, quais diferenças são vantajosas, desvan-
tajosas ou indiferentes (trifling na expressão de Darwin, isto é, irrelevantes para
a seleção natural). Uma espécie se transforma quando concentra uma “massa
crítica” de portadores de variações individuais que propiciam melhor adaptação.
Com efeito, não são os indivíduos tomados isoladamente que se adaptam, e sim
as populações: em milhares de anos, as vantagens seletivas tornam-se norma da
espécie; é ela quem evolui.
Nos questionamentos e oscilações da opinião de Engels e Marx a respeito do
darwinismo houve uma notável discrepância entre eles, suscitada pelos escritos
de Pierre Trémaux, um autor hoje esquecido, mas cuja obra Marx considerou
apressadamente, em carta a Engels de 7 de agosto de 1868, “importantíssima”,
chegando a dizer que ele corrigia e aprimorava Darwin (Marx; Engels, 1981,
p.304). Engels, mais atento, respondeu em 2 de outubro ao “Querido Mouro”,
que a teoria de Trémaux “é desprovida de conteúdo, porque ele não entende de
geologia, nem é capaz da mais trivial crítica histórico-literária” (ibid., p.318-319).
Eles voltaram ao tema nas cartas seguintes, Marx em 3 de outubro, Engels dois
dias depois, sem alterar substancialmente suas posições respectivas. O interesse
dessa discrepância entre os dois amigos está bem menos nos escritos de Trémaux,
que a posteridade julgou tão severamente quanto o havia feito Engels, do que em
ilustrar como eles acompanhavam com atenção as grandes questões científicas
de sua época.9
A mão, o cérebro, a linguagem
A pré-história natural do homem, que Marx deixou pressuposta no Capital,
porque seu ponto de partida era o processo de trabalho especificamente huma-
no, foi reconstituído, em seus traços fundamentais, na obra pioneira de Engels
(1968)10 sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem
(Menschwerdung). As descobertas arqueológicas que se acumularam depois de
1876 (quando ele redigiu seu estudo) retificaram algumas de suas hipóteses, que
ele tinha apresentado com prudente espírito científico:
Há milhares de anos atrás [sic], em um tempo ainda impossível de determinar com
certeza desta era da história da Terra que os geólogos chamam de terciária, prova-
9 Há uma boa síntese do caso Trémaux, buscando elucidar as implicações teóricas do debate, em
Dória (2007, p.110-127).
10 O papel do trabalho na transformação do macaco em homem (Anteil der Arbeit an der Menschwer-
dung des Affen, escrito por Engels em 1876 e publicado post mortem, em 1896, em Die Neue Zeit,
órgão da Internacional Socialista. Foi mais tarde incorporado à Dialética da natureza. Citamos a
versão eletrônica, tradução francesa de Émile Bottigelli (Paris: Éditions sociales, 1968). A referência
da edição padrão é: Karl Marx; Friedrich Engels. Werke (Band 20. Berlin: Dietz Verlag, 1962).
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velmente no final, viveu em algum lugar na zona tropical, presumivelmente em um
vasto continente submergido hoje no Oceano Índico, uma raça de macacos antro-
poides que tinha atingido um desenvolvimento particularmente elevado. Darwin
nos deu uma descrição aproximada desses macacos que seriam nossos ancestrais.
Eram completamente peludos, tinham barbas e orelhas pontudas e viviam em bandos
nas árvores. (ibid., p.152-153)
É provável que a hipótese do continente submerso tenha sido sugerida para
explicar porque até então não se conheciam espécies intermediárias entre os
macacos peludos e o Homo faber. Não foi encontrado nenhum continente nas
profundezas do Oceano Índico, mas em compensação foram descobertas, a partir
dos anos 1930, não longe da costa africana, na Tanzânia e no Quênia, as espécies
fósseis do muito dialético Australopithecus (que já não era mais macaco, mas
ainda não era homem), bem como do Homo habilis.
No essencial, entretanto, as teses centrais de Engels não foram desmentidas.
Ao contrário, continuam a oferecer, um século e meio após terem sido enunciadas,
a mais consistente linha de explicação da hominização. O ponto de partida é a
conexão da diferenciação funcional das mãos com a marcha vertical:
Em razão de seu modo de vida, que exige, para subir nas árvores, que as mãos
exerçam funções diferentes das dos pés, esses macacos começaram a perder o
hábito de se apoiar nas mãos ao caminhar no solo, adotando cada vez mais uma
postura vertical. Foi essa a etapa decisiva da passagem do macaco ao homem.
(Engels, 1968, p.153; itálico no original)
Evidentemente, há lacunas nessa explicação, que até hoje são objeto de dis-
cussão: o que levou aqueles macacos barbudos e orelhudos a abandonar a vida
arborícola? Não faltam hipóteses plausíveis (a começar da escassez relativa de
árvores), mas a lógica objetiva da evolução é clara: ao arriscar-se pelas savanas
infestadas de grandes felinos, eles desenvolveram a postura vertical. Ao se con-
solidar nos hominídeos, essa postura permitiu-lhes liberar plenamente as mãos.11
Engels menciona as capacidades manuais dos chimpanzés, mas enfatiza a diferença
que as separa da mão humana, “altamente aperfeiçoada por milhares de séculos
de trabalho”, ponderando que “jamais a mão de um macaco fabricou a mais rudi-
mentar faca de pedra”. Liberadas, as mãos puderam se especializar, tornando-se
“não apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele” (ibid., p.153-154).
Engels supõe, muito razoavelmente, que entre a aquisição da postura ereta
liberando as mãos (segundo ele, o “passo decisivo” da hominização) e a primeira
11 Na trilha de Engels, Tran-Duc-Thao considera “essencial notar que a mudança fundamental não
consiste na aquisição da bipedia em geral, mas da bipedia enquanto ela libera a mão. Tanto assim
que os gibões andam muito bem sobre os dois pés, mas são obrigados a estender os braços para
manter o equilíbrio: não há, pois, liberação da mão” (Tran-Duc-Thao, 1973, p.68, nota 2).
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moldagem de um fragmento de pedra para fabricar uma faca, transcorreu um lon-
go período, comparado ao qual “o período histórico que nós conhecemos parece
insignificante” (ibid., p. 154). Não há teleologia imanente na lógica materialista da
evolução: o condicionante (bipedia) viabiliza o condicionado (destreza manual),
mas não o contém em embrião como os ovos contêm a ninhada.
Stephen Jay Gould, um dos maiores biólogos estadunidenses, profundo co-
nhecedor do darwinismo, reconheceu o alcance e a consistência do princípio de
explicação de Engels, ao defender a tese de que “a postura fez o homem” (Gould,
1997, p.207-213). Criticando frontalmente a ideia muito arraigada de que nos-
sa evolução foi impulsionada por um cérebro em expansão (ibid., p.207-208),
contrapõe aos que insistem dogmaticamente no integral primado evolutivo da
expansão cerebral, o “brilliant exposé” de Engels sobre os fatores principais da
hominização (ibid., p.210), do qual cita uma passagem célebre:
a mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele. Foi somente
pelo trabalho, pela adaptação a operações sempre novas e novas funções, pela
transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido por múscu-
los, ligamentos e, em um período mais longo, também por ossos, e pela aplicação
sempre renovada dessas habilidades herdadas para funções novas e cada vez mais
complexas, a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que o tornou capaz
de dar vida, como por magia, às pinturas de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e
à música de Paganini. (Engels, 1968, p.154)
Ao reproduzir aprobativamente a afirmação de que a mão do homem atingiu
a sublime perfeição das grandes obras de arte graças à “transmissão hereditária”,
desde a mais longínqua pré-história, dos aperfeiçoamentos sucessivos que a
adaptaram a “operações sempre novas e novas funções”, Jay Gould não julgou
ser o caso de entrar na secular controvérsia sobre a “leis” do uso e desuso e da
transmissão hereditária das características adquiridas formuladas por Lamarck.
Entretanto, mesmo não admitindo essas “leis” e considerando cientificamente
estabelecido que mudanças no fenótipo não afetam as células germinativas, a
explicação de Engels é compatível com a perspectiva darwiniana: a destreza
manual traz uma vantagem seletiva que aumenta a capacidade de sobrevivência
e, portanto, de transmitir o genótipo aos descendentes.
Evidentemente, ao sustentar que a postura ereta e a habilidade manual cons-
tituíram os mais decisivos fatores da hominização, Engels não estava perdendo
de vista a complementaridade da mão e do cérebro na dinâmica evolutiva. Quem
nega essa complementaridade são os continuadores da velha concepção metafísica
segundo a qual a inteligência é a essência congênita do homem, sua diferença
específica. Esse velho preconceito está refletido na consagrada fórmula classifi-
catória de Lineu: Homo sapiens. Perante a revolução transformista, que relegou a
crença na perenidade das espécies ao museu das ideologias pré-científicas, a defesa
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O trabalho na dialética da natureza • 67unilateral da definição do Homo pela sapiência teve de se deslocar para o terreno científico, mantendo, porém, nesse deslocamento, a tese de que a hominização foi impulsionada pela expansão do cérebro. Sem dúvida, o crescimento gradual e constante da caixa craniana, exemplo recorrente para ilustrar a formação do gênero humano, é um fato cientificamente comprovado. Ele acompanha o desenvolvimento concomitante da capacidade cere-bral: o crânio dos australopitecos variava entre 400 e 500 cm3; o do Homo habilis tinha em média 600 cm3, o do Homo ergaster atingia entre 750 e 1.050 cm3; o Homo sapiens, cerca de 1.400 cm3. Mas está também cientificamente comprovado que essa concomitância é apenas parcial. O Homo neanderthalensis foi a espécie do gênero Homo que atingiu o maior volume craneano: 1.700 cm3, ao passo que o do Homo sapiens não foi muito além de 1.400 cm3. O que não impediu aquele de desaparecer e este de dominar o planeta. Os paleoantropólogos estimam que os mais antigos fósseis de neanderthalen-sis até agora encontrados têm cerca de 400 mil anos e que a extinção da espécie ocorreu há cerca de 25 mil anos. Mas não há acordo sobre as causas da extinção: são várias as hipóteses, todas expressando a pesada carga de contingência que pesa sobre a história natural da vida. Deles sabemos com certeza que produziram artefatos não somente líticos, mas também ósseos, notadamente alisadores de peles e couros. Há, porém, incerteza quanto a saber se a anatomia do aparelho fonador de que dispunham permitiria apenas uma protolinguagem (como espécies anteriores do Homo) ou uma fala articulada. O debate entre arqueólogos, primatólogos, paleolinguistas e outros especialis-tas permanece aberto, mas nada do que até agora eles descobriram ou formularam desmente a linha de explicação proposta por Engels, vinculando a aquisição da linguagem articulada ao “desenvolvimento do trabalho”, quenecessariamente contribuiu para estreitar os vínculos entre os membros da socie-dade multiplicando os casos de ajuda mútua, de cooperação comum [...] os homens em devir (die werdenden Menschen) chegaram ao ponto em que passaram a ter algo a dizer. A necessidade cria para si o órgão de que precisa (Das Bedürfnis schuf sich sein Organ): a laringe não desenvolvida do macaco se transforma lenta, mas seguramente, de modulação em modulação mais elevada, e pouco a pouco os órgãos da boca puderam exprimir sílabas articuladas, umas depois das outras. (Engels, 1968, p.137)A tese de que a necessidade cria o órgão tem forte ressonância lamarckiana, mas não é incompatível com o darwinismo, sobretudo se por “necessidade de se comunicar” entendermos a vantagem evolutiva que traz para uma população a eficácia de seus meios de trocar informações. Os indivíduos dotados de órgãos fonadores mais aptos a articular os sons transmitem essa vantagem a seus des-cendentes, que tendem a se tornar mais numerosos do que os que não a têm, já Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 67Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 67 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:4468 • Crítica Marxista, n.51, p.57-70, 2020.que suas possibilidades de sobreviver e de gerar, por sua vez, mais numerosos descendentes, serão maiores. Reforça-se assim, de geração em geração, a evolução adaptativa do órgão, até configurar mudança de qualidade anatômica. O exem-plo da laringe, referido por Engels, mostra que a necessidade de se comunicar criou o órgão de que carecia, modificando o suporte anatômico de uma função orgânica já existente (controlar a entrada de ar) para torná-lo apto a exercer uma nova função (emissão de sons articulados), seletivamente vantajosa na luta pela sobrevivência. Engels acertou, pois, duplamente ao discernir na postura vertical o passo decisivo da hominização. Primeiro, porque ela liberou as mãos, permitindo que se especializassem na utilização de instrumentos, mais tarde na produção de ferramentas. Segundo, porque combinando-se à diminuição do volume do maxilar inferior, ela abaixou a faringe e alongou a laringe, permitindo o desenvolvimento das cordas vocais, fortemente estimulado pela vantagem seletiva proporcionada pela capacidade de articular sons. A conexão dinâmica do aumento da capacidade cerebral com a aquisição da linguagem articulada, viabilizada pela mudança anatômica que criou o aparelho fonador, é um fato filogenético cientificamente estabelecido. Mas a nos atermos a essa constatação, estaríamos apenas transferindo a dificuldade. Qual foi a di-nâmica dessa conexão evolutiva? Darwin procurou explicá-la em A filiação do homem, sustentando que a linguagem se origina “da imitação e modificação [...] de vários sons naturais, das vozes de outros animais e dos próprios gritos instintivos do homem” (Darwin, 1871, p.56). Ele atribuiu principalmente à sexualidade o impulso à imitação que teria originado a linguagem. “Uma analogia largamen-te difundida” na natureza viva permite-lhe afirmar que os homens primitivos produziam cadências musicais “especialmente exercidas durante o cortejo dos sexos”; “a imitação por sons articulados dos gritos musicais pode ter dado origem a palavras que expressavam várias emoções complexas” (Darwin, 1871, p. 56). Evidentemente (salvo para as espécies que se reproduzem sem combinação de gametas), as pulsões sexuais são condições sine qua non da natureza orgânica. Admitindo, com Darwin, que a emissão de sons desempenha papel importante no cortejo sexual, mas considerando que as emoções libidinais costumam se expressar por emissões guturais não articuladas, ficamos sem entender porque articular os sons teria constituído um vantagem na seleção sexual suficiente para explicar o salto formidável da história natural do Homo, que consistiu em passar do grito, do uivo, das demais vocalizações emocionais e da troca de sinais pela expressão corporal à transmissão de mensagens por palavras. É de Engels o mais consistente princípio de explicação daquele salto formidá-vel: a passagem das formas pré-humanas à forma humana do trabalho. O Homo se tornou faber ao inventar ferramentas que lhe permitiram impor aos materiais e meios de subsistência extraídos imediatamente da natureza ambiente uma configuração útil em conformidade com o esquema funcional que sintetizara no cérebro. A sinergia da destreza manual e da capacidade cerebral foi intensificada Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 68Miolo_Rev_Critica_Marxista-51_(GRAFICA).indd 68 04/11/2020 13:53:4404/11/2020 13:53:44O trabalho na dialética da natureza • 69pelo caráter cooperativo do trabalho, que torna a comunicação indispensável não somente para coordenar ações coletivas (a caça de grandes animais, por exemplo), mas também para a transmissão da experiência acumulada de geração para gera-ção. Associando um signo sonoro às atividades laboriosas mais comuns (“raspar”, “cortar”, “furar”, “esmagar”, “lançar”, “moer”, “polir” etc.), os homens primordiais inventaram seus modos próprios de trabalhar e de se comunicar, revolucionando suas forças produtivas. Foi este o ponto de chegada da Menschwerdung des Affen e o ponto de partida da história social da humanidade.Referências bibliográficasARISTÓTELES. Aristotelis Opera, edição Bekker de 1831 [reeditada por O. 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Não obstante, alguns dos mais eminentes cien-tistas e pensadores contemporâneos têm reconhecido a extraordinária importância de sua explicação evolucionista da autoprodução do homem pela tese de que a mão não é apenas o órgão do trabalho, mas também o produto dele. Discutimos também a assimilação crítica do darwinismo pelo pensamento evolucionista de Engels e de Marx. Palavras-chave: Engels, Marx, darwinismo, mãos, cérebro.AbstractAnti-naturalist authors, who intend to encapsulate Marxism in the context of intersubjective relations, seek to disqualify Engels’ original and decisive contri-bution to the dialectics of nature. Nevertheless, some of the most eminent con-temporary scientists and thinkers have recognized the extraordinary importance of his evolutionary explanation of man’s self-production by the thesis that the hand is not only the organ of the work, but also the product of it. We also discuss the critical assimilation of Darwinism by Engels’ and Marx’s evolutionary thought.Keywords: Engels, Marx, darwinism, hands, brain.