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domingo, 6 de março de 2022

ÉTICA- Prolegómenos - O Apocalipse de todos os dias

Fragmento de entrevista a António Guerreiro sobre Ecologia e Apocalipse ao jornal Público

(...) 

Mas todos os seres vivos têm um impacto no planeta. Os animais têm impacto e as plantas têm impacto, destruindo algumas coisas e preservando outras. E há a ideia de que se nós, humanos, recuássemos, de repente um equilíbrio natural ressurgiria. Nós é que provocámos um desequilíbrio excessivo no meio disto tudo...
Esse desequilíbrio acelerou imenso. Nós estamos, no nosso tempo, a sofrer os efeitos do que já começou com a Revolução Industrial. Os efeitos foram diferidos no tempo, razão pela qual também não se sabe muito bem se mesmo as medidas, por mais radicais que elas sejam, tomadas hoje podem reverter o que já foi desencadeado há muito tempo, se não é já tarde de mais. Ninguém sabe. Nos últimos anos, deu-se uma aceleração enorme dos efeitos que já estavam em marcha. Segundo Andreas Malm, em Janeiro de 2016 a temperatura média na Terra era 1,15º Celsius mais elevada do que durante o período que vai de 1951 a 1980.

Essa pergunta — será tarde de mais? — é a pergunta fulcral que, se calhar, noutros momentos históricos não foi feita.
Desde pelo menos meados do século XX que há bastantes avisos sobre o aquecimento climático, sobre os efeitos provocados pela alteração da composição da atmosfera por causa da libertação de dióxido de carbono. Mas ninguém quis ouvir esses avisos. A surdez foi generalizada porque ainda não eram tão visíveis os efeitos como são hoje.

Nos últimos anos, os avisos multiplicaram-se, as provas e os sintomas tornaram-se evidentes para quase toda a gente. E a partir daí formou-se uma consciência colectiva e o tema invadiu o próprio espaço público. Ainda há 15 anos, ou talvez menos, havia dúvidas sobre se as alterações climáticas eram provocadas pela acção humana ou pela própria evolução geológica da Terra.

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Ao criticarmos a nossa acção, e inacção, ao mesmo tempo, começamos a questionar o nosso próprio pensamento, o racionalismo, toda uma forma de olhar o mundo, a ideia de progresso, que seria uma coisa positiva e que neste momento já pode ter uma conotação negativa. Até onde é que esta crítica nos pode levar?
Há uma palavra que serve para designar esse racionalismo e essa lógica de construção e formatação do mundo em que vivemos, que é o geoconstrutivismo. A ideia de que nós construímos o mundo, que este é o resultado de acções de engenheiros e arquitectos. Este geoconstrutivismo foi e continua a ser dominante na formatação do mundo. No fundo, é o que diz o mito de Prometeu. É tão poderosa a força do geoconstrutivismo que se criou a ideia de que, tal como tínhamos o poder de construir, também tínhamos o poder de reparar aquilo que de mau estava feito.

A ideia de omnipotência...
Exactamente. As soluções que se tenta encontrar para nos salvarmos, para não chegarmos a um grau em que a vida na Terra seja impossível, são ideias que advêm dessa lógica geoconstrutivista. Queremos fazer a reparação com os mesmos meios que serviram para criar o desastre. Um exemplo anedótico disso são os meios artificiais tentados por alguns cientistas para provocar a chuva ou para reflectir os raios solares e impedir que a Terra aquecesse. Enfim, uma série de medidas que derivam dessa lógica geoconstrutivista.

As nossas habituais grelhas de leitura do mundo como a da luta de classes estão a ser penetradas por outras questões — veja-se as classes ecossociais, um conceito do filósofo francês Bruno Latour, a ideia de que os ricos conseguirão escapar e os pobres não.
Como já disse, a questão da luta de classes analisada pela grelha marxista pode ser transferida para as novas classes definidas em função da exposição às transformações climáticas. Nem todos vão sofrer da mesma maneira, nem todos vão sofrer os mesmos efeitos ao mesmo tempo. E, de certo modo, existe hoje muita gente para quem o apocalipse climático já aconteceu. Simplesmente, essas pessoas não têm voz suficiente para virem dizer que já foram vítimas do desastre.

A nossa ideia de colapso é uma ideia muito marcada por esse imaginário bíblico do dilúvio, qualquer coisa que acontece num determinado momento e provoca um desastre repentino. O que estamos a ver é que o desastre não é repentino. Os dinossauros também não se extinguiram de um momento para o outro.

Os filmes-catástrofe representam a catástrofe como um fenómeno que irrompe subitamente, que destrói tudo indistintamente. Isso foi responsável pelo modo como imaginamos esse tipo de acontecimentos catastróficos. Mas o que estamos a ver é que eles podem suceder de outra maneira, mais lenta, tanto sob a forma de desastre localizado como sob esta forma de catástrofe serena como é o céu azul e o sol permanente, mesmo no Inverno.

Amitav Ghosh [escritor indiano, autor de The Great Derangement – Climate Change and the Unthinkable] diz que nós temos dificuldade em reconhecer que o problema já está aqui e fala dos limites do pensamento e da linguagem contemporâneos e da “frustração do poder cognitivo sobre um mundo que julgávamos conhecer”. Defende que temos que sair da linguagem das Luzes, na busca de uma forma alternativa de pensar o mundo. E aí enquadra-se toda a ideia do olhar indígena, do pensamento mágico, que também começa a surgir como uma via alternativa em vários pensadores — se conseguíssemos olhar o mundo dessa maneira, se fôssemos como os indígenas ou como os monges budistas, em sintonia com o planeta, talvez nos salvássemos...
Um antropólogo como [o brasileiro] Eduardo Viveiros de Castro, autor de Há Mundo Por Vir?, que estudou, por exemplo, a relação dos índios com os animais, que é uma relação de continuidade, de integração, que não consiste no nosso modo de ver, no qual os animais são sempre exteriores a nós... Não é possível pôr-nos a pensar de uma maneira que não faz parte da nossa cultura. E mais uma vez aqui estamos sujeitos à ideia de que há uma construção cultural da qual não nos podemos subtrair. Não é possível, a não ser de uma maneira completamente artificial, procedermos como os índios. Não conseguimos reproduzir aqui um tipo de vida como a que seria a dos índios na Amazónia.

Há, no entanto, na cultura ocidental muita gente a perseguir um qualquer pensamento mágico. Há um caminho que passa, entre outros, pela ecologia queer e a vontade de acabar com a lógica binária que se aplicaria aos géneros, mas que pode ser alargada à dicotomia Homem/Natureza, progresso e atraso e, em última instância, o Bem e o Mal.
Sendo que, antes, o Bem era o Homem e o Mal era a Natureza e agora tende-se a pensar exactamente o contrário. Há um texto do [filósofo francês, Jean-Paul] Sartre em que ele refuta a ideia de que a Natureza possa ter qualquer espécie de violência. Pode destruir, naturalmente, mas a violência implica uma intencionalidade que a Natureza não tem. Pode provocar efeitos catastróficos, mas, do ponto de vista do Sartre, ela nunca seria violenta. O Homem é que seria violento porque o faz com uma intencionalidade.

A Natureza não tem intencionalidade nem culpa. A culpa estaria do lado do Homem...
Exactamente.

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