Voltamos sempre à mentalidade da "Guerra Fria". Voltamos porque ela esteve sempre cá. Ressurge espontaneamente no senso-comum porque é um elemento constitutivo deste senso-comum. É o preconceito. Imagem fabricada há muitos anos sobre o Outro. E o Outro fabricado é o inimigo ameaçador. Ameaça o "nosso" modo de vida, ainda que, grotescamente, esse modo de vida seja o do explorado e não do explorador.
Não se pode analisar as causas e os antecedentes da atual guerra na Ucrânia iniciada em 2014 sem que não se seja alvo dos preconceitos da Guerra Fria. Aquele que perspectiva o acontecimento é alcunhado automaticamente de "putinista".
E logo a associação vinda da Guerra Fria se realiza: "putinista" agora é sinónimo de "comunista", e "comunista é sinónimo de "estalinista". O raciocínio está expresso, porque sempre lá esteve : resume-se na doutrina do Estado totalitário. Putin não é comunista, nem a Rússia é mais URSS? Bem podes defender-te, que já não te livras. Quem contextualiza, passa a justificador, a defensor.
Este encadeamento de raciocínios que em rigor não são raciocínios mostra-se nas atitudes ofensivas de toda a Direita reacionária, evidentemente e naturalmente, mas também nas mesmas atitudes de uma certa esquerda "centrista".
Não é somente a emoção que explica, embora sejam as imagens que fazem detonar as atitudes. É também a mentalidade, vale dizer: a ideologia da Guerra Fria. As ameaças vêm do Leste e do Oriente...O Grande Inimigo é a Rússia na qual permanece vivo o totalitarismo. Fabrica-se uma história da Rússia e com ela fica agora da Ucrânia atual tudo explicado. Tudo se resumiria à maldade psicótica de um louco (a Rússia dos tiranos loucos), ao ódio dos ucranianos à maldade russa no passado e, portanto, ao direito que tinham de se autodefender através da NATO. O papel dos neo-nazis é obliterado.
Queres apontar o dedo ao imperialismo ocidental com a cabeça e a chefia nos EUA? Nem tentes! Porque cairás sob a acusação de defensor de uma guerra onde se vêm crianças a sofrerem a toda a hora de todas as 24 horas.
Ou o cérebro humano funciona por dualismos, ou continuamos em plena Guerra Fria.
Eu suspeito que as duas coisas andam juntas.
No fim quem perde é a raciocínio.
Uma outra esquerda, que se reivindica de leninista-revolucionária-bolchevique- não revisionista- não reformista, analisa o assunto da mesmo forma. O conteúdo é diferente, mas a forma é a mesma : não interessa nada ao povo russo que tenham bases da OTAN armadas até aos dentes à porta de casa, não importa nada a vontade de independência nacional e de segurança, não importa nada que os neo-nazis ocupem os postos de poder na Ucrânia e que liquidem os comunistas e sindicalistas, nada disso importa porque tudo se resume a dois imperialismos em confronto. Não vale a pena, deduz-se, que denunciemos as guerras diretas ou por procuração do imperialismo, porque afinal há dois, ou talvez três, imperialismos. Nada importa. O que importa. dizem, é a revolução socialista já!
O raciocínio é o mesmo : não há complexidades. Tudo é simples. Tão simples, tão esquemático, que já não é raciocinar.
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