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Marxismo em Portugal: o contributo de José Fernandes Alves
Em Fevereiro de 1931, faleceu em Lisboa uma “figura grada” na história do marxismo em Portugal. Seu nome era José Fernandes Alves.
Além de traduzir e divulgar, ele utilizou o marxismo como referência teórica na sua ação, salientando-se na defesa do feminismo e da autonomia de classe do movimento operário.
Foi um destacado sindicalista, no seu sector profissional (operário gráfico) e na velha Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa (um protótipo de central sindical, que já vinha de 1873).
Ainda participou, em 1914, na fundação do que viria a ser a CGT (Confederação Geral do Trabalho, inicialmente chamada União Operária Nacional).
A nível político foi dirigente do antigo Partido Socialista Português (fundado em 1875), e chegou a ser um autarca da cidade de Lisboa, como secretário da Junta de Freguesia de S. Engrácia (hoje integrada na freguesia de S. Vicente).
A Voz do Operário
José Fernandes Alves distinguiu-se sobretudo pelo seu contributo na imprensa. Em particular a partir de 1903, quando assumiu a redação do que seria o maior jornal operário português (com uma tiragem que iria chegar a atingir setenta mil exemplares): A Voz do Operário.
Ele foi também, em 1908, um dos principais responsáveis por uma segunda experiência de diário operário em Portugal, intitulado A Greve. Onze anos antes de surgir o mais célebre e duradouro jornal A Batalha.1
Em 1930, Fernandes Alves ainda foi um dos fundadores e primeiros diretores da revista antifascista Pensamento, sediada no Porto. A qual acabou encerrada pela ditadura na mesma altura que o jornal O Diabo (no final de 1940).
A primeira versão portuguesa de O Capital de Marx
Foi com José Fernandes Alves à frente da sua redação que A Voz do Operário publicou a primeira edição em língua portuguesa de O Capital de Karl Marx – num formato de folhetim semanal, entre Agosto de 1911 e Abril de 1912.
Quando surgiram em Lisboa duas edições em livro, ainda em 1912, uma delas reproduziu essa tradução que já tinha saído em A Voz do Operário.
É certo que era apenas uma versão resumida (pelo socialista francês Gabriel Deville), e somente do livro primeiro de O Capital. Mas tratou-se ainda assim de um resumo substancial (com 180 páginas no formato em livro). E não só foi esta a primeira versão em língua portuguesa de O Capital de Marx como terá sido porventura a maior até hoje, considerando que A Voz do Operário tinha nessa altura uma tiragem de 52 mil exemplares.
A tradução parece ter ficado a cargo de um operário da Imprensa Nacional, Albano de Morais.
A mulher e o socialismo de August Bebel
Uma das particularidades do pensamento e da ação de José Fernandes Alves foi a defesa da causa feminista. Com uma postura muito avançada, num contexto em que a Primeira República negava o direito de voto às mulheres.
Era um tempo em que mesmo alguns dirigentes sindicais e operários ainda pretendiam negar o direito das mulheres ao trabalho remunerado, não só por uma influência cultural retrógrada mas também numa postura defensiva face a práticas de dumping social. Entre o patronato não faltava quem empregasse mulheres como tática para baixar o nível salarial, o que foi particularmente vincado, por exemplo, no sector da indústria tabaqueira em Lisboa.
A preocupação feminista esteve bem presente na divulgação do marxismo em Fernandes Alves. Foi sob a sua responsabilidade, e com uma tradução feita por ele próprio, que a A Voz do Operário publicou a obra A mulher e o socialismo, de August Bebel – no mesmo formato e pela mesma altura da referida edição de O Capital.
Trata-se aqui de um dos livros marxistas mais divulgados na época anterior à Primeira Guerra Mundial (1914/18). Além de expor uma perspetiva geral de revolução social, foi um marco no abraço do movimento socialista internacional à causa da emancipação feminina, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.2
Este livro teve um significado acrescido pelo prestígio do seu autor: próximo de Marx e de Engels, August Bebel foi um dos “pais fundadores” do movimento operário na Alemanha e a nível internacional, várias vezes preso político, amplamente admirado pela sua coragem e coerência. Quando faleceu, em 1913, até Lenine, já então tão crítico da velha social-democracia, lhe dedicou uma biografia no Pravda, enaltecendo Bebel como um “modelo” na defesa do marxismo.
Fernandes Alves também traduziu e publicou textos de diversas figuras centrais na história do marxismo no seu tempo, como Paul Lafargue, Karl Kautsky e Eduard Bernstein. E foi um dos primeiros divulgadores de uma obra de Lenine em Portugal.3
De outros autores, ele trouxe à língua portuguesa textos com títulos como “Resumo das três principais teorias do marxismo”, “Karl Marx e a sua obra” ou “Bosquejo do socialismo científico”.
Determinismo económico
Na história do marxismo em Portugal, José Fernandes Alves tem este lugar de divulgador e tradutor. Mas ele admirava Marx enquanto teórico e igualmente como homem de ação, em particular na Associação Internacional dos Trabalhadores (a Primeira Internacional, fundada em 1864).
Pois que dizer da leitura e uso que Fernandes Alves deu ao marxismo, enquanto “ferramenta” na sua própria ação militante?
Para defender uma reforma agrária coletivista em Portugal, usou como referência a abordagem de Marx ao impacto da revolução industrial na agricultura, em O Capital, por exemplo. Mas parece ter-se entusiasmado sobretudo com o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. A seu ver, este livro continuava a representar um programa do “socialismo ativo”.
Fernandes Alves não pôde porém conhecer uma parte substancial da obra de Marx, que só veio a ser publicada já depois da sua morte, incluindo trabalhos tão relevantes como os Manuscritos Económico-filosóficos de 1844 ou os Grundrisse.
Nesse contexto, subscreveu uma leitura mais determinista do marxismo que teve voga pela primeira metade do século XX. Afirmou mesmo que o regime capitalista estava condenado a um “fim fatal”, por uma evolução económica que conduziria “invariavelmente” ao coletivismo (em O Socialismo Internacional, 1930).
Este tipo de leitura tinha uma certa base em Marx, não apenas no Manifesto Comunista mas também em O Capital, onde, no capítulo sobre a tendência histórica da acumulação capitalista, se foi ao ponto de afirmar que o capitalismo “engendra a sua própria negação com a fatalidade que preside às evoluções da natureza” (na tradução de Albano de Morais).
Tal ideia dava certamente um élan de esperança. Mas houve quem contestasse. Foi o caso, por exemplo, de Rosa Luxemburgo, ao contrapor que “a vitória do socialismo não cairia do céu como uma fatalidade”. Perante a carnificina da Primeira Guerra Mundial, ela afirmou que o cenário real era o de “um dilema na história do mundo, uma alternativa ainda indecisa” entre socialismo ou barbárie.4
Esse grau de incerteza sublinhava, afinal, a “tarefa de transformação consciente da sociedade”, na expressão de Georg Lukacs.5
Solidariedade internacionalista
Uma das ideias de Marx mais evocadas por José Fernandes Alves era a que ficou consagrada na frase final do Manifesto Comunista e da Declaração Inaugural da Primeira Internacional: “Proletários de todo o Mundo, uni-vos!”
Todavia, perante a Primeira Guerra Mundial, ele foi mais um, de tantos, no movimento operário internacional (quer na antiga corrente social-democrata, quer no campo do anarquismo) que quebraram essa solidariedade universalista, tomando partido por um dos nacionalismos em conflito. Em Portugal, Fernandes Alves, e muitos outros, declararam apoio ao Estado francês e aliados, contra a Alemanha do kaiser Guilherme II.
Assim se desagregou e colapsou a Segunda Internacional, que tinha sido fundada em 1889. E havia prometido impedir a guerra, fosse por via de greves gerais ou mesmo de insurreições.
Mas houve quem, contra a corrente, se erguesse em defesa do internacionalismo. Não apenas marxistas como Rosa Luxemburgo e Lenine mas anarquistas como Emma Goldman e Enrico Malatesta. Em Portugal isso também aconteceu, com destaque para os anarquistas Neno Vasco, Aurélio Quintanilha e Manuel Joaquim de Sousa (futuro secretário-geral da CGT).6
Autonomia de classe
O aspeto no qual porventura terá sido mais visível o uso do marxismo como “ferramenta política”, em José Fernandes Alves, terá sido na análise do movimento republicano e do regime da Primeira República. Com uma postura de distanciamento crítico, e de ênfase na defesa da autonomia de classe do movimento operário.
Era um problema central. Nos últimos anos da monarquia, a dinâmica republicana cativou muitos elementos de diferentes correntes do movimento operário em Portugal. E na resistência a essa sedução não estiveram apenas socialistas e anarquistas. Mesmo sindicalistas republicanos, por exemplo no setor dos empregados do comércio, criticaram a postura de muitos trabalhadores se entusiasmarem com a política republicana, mas descurarem o seu sindicato e a defesa dos seus interesses laborais e de classe.
Fernandes Alves foi um expoente dessa resistência. Ele que, à semelhança de outros socialistas portugueses da época, como Angelina Vidal e Ladislau Batalha, até tinha começado por ser republicano, na sua juventude, antes de se tornar socialista.
A Voz do Operário, cuja redação ele assumiu em 1903, era um jornal onde colaboravam socialistas e republicanos. Até 1904. Ocorreu então um conflito laboral em Lisboa: de um lado proprietários de jornais, do outro lado operários das tipografias privativas desses jornais. Além de reivindicações ao nível de salário e horário de trabalho, estava em causa uma experiência pioneira de contratação coletiva.7
Aconteceu que os patrões republicanos alinharam com os patrões monárquicos, na renúncia ao acordo assinado com os trabalhadores. E partiram para um lockout – protegidos pelo Estado monárquico.
À frente do comité de luta dos trabalhadores estava José Fernandes Alves. Sofreu então a represália de ser despedido do seu posto de trabalho, na tipografia do Diário de Notícias.
Foi uma luta que os trabalhadores perderam, no momento, mas que terá despertado um incremento na organização sindical dos operários gráficos.
Veio pouco depois a Primeira República (em 1910). E rapidamente se tornou uma desilusão: pela falta de reformas que melhorassem as condições de vida da classe trabalhadora; e pela frequente postura repressiva contra organizações e lutas de trabalhadores.
Fernandes Alves diria que era, afinal, mais um “regime essencialmente burguês”. E reafirmava a necessidade da independência de classe do movimento operário – como já Marx e Engels haviam clamado no Manifesto Comunista.
Ministros socialistas
A ditadura de Sidónio Pais e de seguida uma tentativa de restauração monárquica que levou Portugal a uma guerra civil (em Janeiro de 1919), reaproximaram socialistas e republicanos.
No processo de desmantelar o regime sidonista e de travar a guerra monárquica, formou-se então um governo de unidade democrática. O qual, pela primeira vez, contou com um representante do movimento operário, como ministro do Trabalho: o dirigente socialista Augusto Dias da Silva.
Lançaram-se então as obras dos primeiros bairros sociais e foram preparados importantes avanços em termos de segurança social e horário de trabalho. Mas tudo isto pouco saiu do papel. Foi uma experiência efémera, que apenas durou quatro meses.
É que, uma vez restabelecido, o poder republicano logo teve uma recaída na sua pulsão repressiva contra a classe trabalhadora. Perante isso, Augusto Dias da Silva recusou ser conivente e demitiu-se imediatamente.
O antigo Partido Socialista Português conheceu então um momento de apogeu na sua influência. Beneficiou também do contexto internacional marcado pela Revolução Russa de 1917. Mas em pouco tempo defrontou uma crise interna, com divergências sobre a questão se devia voltar a aceitar uma participação minoritária num novo governo republicano, se isso seria uma boa via para concretizar algumas mudanças positivas.
Tais divergências acentuaram-se com duas novas experiências de participação ministerial em 1920, ainda mais efémeras e vazias de resultados, em que um socialista voltou ao posto de ministro do Trabalho (respetivamente Amílcar Ramada Curto e José António da Costa Junior).
Fernandes Alves foi uma das principais vozes que dentro do partido combateram a ideia de integrar governos “burgueses”, como dizia. A seu ver, tendo interesses “antagónicos” com os dos capitalistas, a classe trabalhadora devia era contar com as suas próprias forças, como sublinhou (em O Socialismo Internacional, 1930).
Estava, no fundo, a reafirmar a primeira frase dos estatutos da Primeira Internacional (elaborados por Marx): “A emancipação da classe trabalhadora deve ser conquistada pela própria classe trabalhadora”.
Coletivo
José Fernandes Alves é uma figura a recordar na história do marxismo em Portugal. Foi um tradutor e divulgador. Um militante que usou o marxismo como referência teórica na sua ação. Defendeu o feminismo e a autonomia de classe do movimento operário.
Não foi uma figura isolada. Integrou-se no contributo coletivo à difusão do marxismo por quadros do antigo Partido Socialista Português, no último quartel do século XIX e no primeiro terço do século XX.
Um coletivo no qual haverá que falar igualmente em nomes como Azedo Gneco e Nobre França, Manuel Luís Figueiredo (em Setúbal) e Manuel José da Silva (do Porto) – entre outros.
Perdeu-se muito “a memória das suas palavras”, apagadas pela borracha do “hiato que o Salazarismo produziu na «memória coletiva»”, como dizia Fátima Patriarca.8
Mas isso não será mais uma razão para serem recordados?
Luís Carvalho é investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.
Notas
1 - Antes de A Greve (em 1908) e de A Batalha (em 1919), uma primeira experiência de jornal operário diário em Portugal surgiu em 1900, com o título A Luta, e na esfera do antigo Partido Socialista Português. A não confundir com o jornal republicano do mesmo título, fundado em 1906 por Manuel Brito Camacho.
2 - Leszek Kolakowski vincou a importância desta obra de Bebel, em Main currents of Marxism (2008).
3 - Sobre o papel de Fernandes Alves como um pioneiro divulgador de Lenine, ver A Voz do Operário, Agosto 2020, “Uma obra de Lenine em Portugal, em 1912”, aqui: https://vozoperario.pt/jornal/2020/08/19/uma-obra-de-lenine-em-portugal-... (link is external)
4 - No seu livro A Crise da Social-Democracia.
5 - Em História e Consciência de Classe.
6 - Ver Carlos da Fonseca, em Para uma análise do Movimento Libertário e da sua história (1988).
7 - Como sublinha Francisco Canais Rocha, na sua biografia de Perfeito de Carvalho, um sindicalista da primeira República (2016).
8 - Em A questão social no Salazarismo, vol. I (1995).
in Esquerda net
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