“Vemos no QAnon muitos dos elementos de ideologia que Hannah Arendt descreve”
Samantha Rose Hill é uma estudiosa do percurso e das ideias de Hannah Arendt. Assina uma nova biografia deste vulto do século XX, uma filósofa-poeta com quem “podemos pensar”.
Rejeitava todo e qualquer pensamento ideológico. Denunciou o anti-semitismo e os excessos do sionismo. Criticou o totalitarismo (quando viu o parlamento alemão a arder, em 1933, soube que tinha de agir) e descreveu, com enorme actualidade, como ele se instala nas sociedades. Defendeu que o mal pode ser uma prática banal e burocrática – e pôs meio mundo intelectual contra ela. O pensamento de Hannah Arendt foi fecundo, tanto como a sua vida, marcada pela perseguição nazi aos judeus e pelas ligações a gigantes do pensamento e das artes, de Martin Heidegger a Walter Benjamin.
Hannah Arendt – Uma Biografia, livro editado pela Relógio D’Água, conta a vida de uma das mais importantes filósofas políticas do século XX. A autora, a norte-americana Samantha Rose Hill, membro sénior do Hannah Arendt Center for Politics and Humanities, com sede em Nova Iorque, tem dedicado boa parte da sua investigação à pensadora nascida na Alemanha, em 1906. É convidada da iniciativa Meet the Author, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e do PÚBLICO, no dia 29 de Novembro, pelas 18h30, no auditório da FLAD, em Lisboa.
O que a atraiu em Hannah Arendt para fazer dela o seu grande tema de estudo?
Apaixonei-me por Hannah Arendt quando era caloira na universidade. Descobri A Condição Humana [1958] por acaso, na biblioteca. Tinha uma linguagem diferente de qualquer livro de filosofia política que já tinha lido – e eu lia Nietzsche desde os 13, lia Hegel… Ela escrevia de forma tão bela: é uma pensadora poética.
Passei a maior parte da minha vida universitária a estudar Arendt e os seus antecedentes. Leio-a há muito tempo, ela é uma companhia, é alguém com quem podemos pensar. Nunca nos deu uma moldura pela qual podíamos olhar. Provoca no espírito de Sócrates.
Junta vários elementos diferentes, que poderíamos não imaginar juntos, quando está a falar de coisas como o totalitarismo: solidão, desenraizamento existencial, as formas como a propaganda política é usada pelos líderes de massas, a privatização das instituições políticas, por que razão as pessoas são influenciáveis por homens fortes. É uma abordagem muito poética. Atraiu-me muito. [risos]
As Origens do Totalitarismo (1951) ganhou uma nova actualidade com a Presidência de Donald Trump. O republicano recorreu a soluções fáceis, a narrativas simplificadas, que ignoram os factos ou inventam outros, à exploração do isolamento do indivíduo, que são elementos do totalitarismo, segundo Arendt. Há outros livros dela que ressoam no mundo actual?
Uma das perguntas que as pessoas me fazem frequentemente é que obra [de Arendt] é mais relevante para o mundo contemporâneo. E a minha resposta é sempre A Condição Humana. Em muitos aspectos, é o reverso de As Origens do Totalitarismo. Fala de algumas das questões políticas, sociais, culturais e económicas mais prementes com que estamos a lidar, desde as guerras culturais à ascensão do populismo de direita, às preocupações ambientais, ao espectro da tecnologia, ao que significa aparecer perante outras pessoas no mundo e ser reconhecido no discurso e na acção.
Ela não é esperançosa nesse livro. Sempre que o ensino a adultos no Brooklyn Institute for Social Research aviso: se lerem este livro na esperança de serem confortados de alguma forma, vão ficar horrivelmente desapontados porque Arendt não tem a certeza de que a liberdade possa ser salva no mundo moderno.
As Origens do Totalitarismo é sobre a perda da liberdade. A Condição Humana tem que ver com a forma como podemos proteger os espaços de liberdade. E ela não tem esperança de que o possamos fazer porque tudo foi tomado pelo crescimento daquilo a que chama o “social”, que é também a mercantilização de tudo: desde as relações interpessoais aos objectos que medeiam a nossa vida quotidiana, tudo tem valor de uso, o que esvazia o sentido.
Escreve que Arendt tinha uma relação complicada com a intelectualidade, apesar de ser uma intelectual e de ter privado com parte importante da elite do pensamento e das artes do seu tempo, na Alemanha, em Paris e Nova Iorque. Que relação tinha ela com os intelectuais?
Ela rejeitou a ideia de ser etiquetada uma intelectual pública, disse que “intelectual” é uma palavra odiosa. Estudou com três dos maiores filósofos do século XX: os dois pais do existencialismo alemão, Martin Heidegger e Karl Jaspers, e com Edmund Husserl, que foi um fenomenólogo espantoso. Já em 1929 ela estava politicamente sintonizada com o que estava a acontecer na Alemanha e era muito crítica da nazificação das instituições sociais, políticas e educacionais. Viu todos estes pensadores profissionais, filósofos, amigos e mentores serem levados pela maré do fascismo. E eram os pensadores profissionais, as pessoas que dedicaram as suas vidas ao estudo de questões morais, sobre como agir quando as coisas ficam mal, sobre o que significa viver uma vida boa, sobre o que significa fazer mal! E falharam!
Os pensadores profissionais não estavam mais bem equipados do que qualquer outra pessoa para combater a maré crescente do fascismo. É por isso que ela diz que não quer ter mais nada que ver com esse meio. Em vez disso, diz que todos são capazes de pensar. Pensar não é uma actividade profissional que existe à parte do mundo numa torre de marfim: pensar é a responsabilidade moral de cada cidadão de se responsabilizar pelos seus actos – não só individualmente no mundo, mas em relação aos outros no mundo. Estar no mundo com os outros. Isto é muito importante para Arendt. É por isso que ela deixa a academia. Ela escrevia para a [revista] New Yorker e várias publicações sobre verdade e política, sobre os Pentagon Papers, sobre o macarthismo.
Ela tenta que olhemos em frente para que vejamos o que se está a desenrolar. Contava uma história com o filósofo Tales. Ao caminhar numa rua, estava tão fixado nas estrelas que não via o que estava à sua frente e caiu num poço. Uma rapariga trácia viu tudo e riu-se. Arendt é como essa rapariga trácia [risos]. Ela encontra sempre o humor, é incrivelmente irónica, mas também tenta sempre que olhemos em frente. Diria que é um trabalho intelectual diferente. Ela seria igualmente céptica e crítica da classe intelectual que guia os debates de hoje como era face à do tempo dela.
Também sublinha o facto de Arendt não ter professado nenhuma ideologia naquele que foi o “século das ideologias”. Como é que ela era vista pelos diferentes campos?
As pessoas ainda a tentam colocar em caixas. As Origens do Totalitarismo foi o primeiro grande relato do hitlerismo e do estalinismo. Teve recensões favoráveis nos Estados Unidos e desfavoráveis na Europa por ser demasiado simpática com Marx ou por não ser suficientemente simpática. Ela foi a maior pensadora política feminina do século XX e não queria ter nada que ver com o feminismo. Evidentemente, o outro exemplo é Eichmann em Jerusalém [relato do julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto], que causou celeuma internacional. [risos]
Hannah Arendt – Uma Biografia
Autoria: Samantha Rose Hill
Editora: Relógio D’Água
248 págs., 18€
Foi a sua obra mais famosa pelo menos até ao revivalismo recente de As Origens do Totalitarismo.
Quando foi publicado em 1963, [Eichmann em Jerusalém] ofuscou tudo. Foi censurado por toda a sociedade literária nova-iorquina e Arendt foi acusada de escrever coisas que não tinha escrito. O principal problema era o tom: ninguém conseguia compreender como ela podia escrever sobre o Holocausto com um sentido de ironia tão grande. Era uma abordagem crítica que lhe dava distância e pensamento.
Saíram muitos artigos e livros a argumentar que Arendt se enganou acerca de Eichmann: dizem que ela não assistiu ao julgamento completo, que não viu Eichmann por quem ele realmente era. Ela lida com as consequências do livro sobre Eichmann para o resto da sua carreira.
O pensamento dela sobre ideologias ganha especial sentido hoje. Basta pensar num movimento como o QAnon [baseado numa teoria da conspiração pró-Trump que alega a existência de uma rede de pedófilos adoradores de Satanás], que capitaliza a solidão dos nossos dias e oferece a muitos uma comunidade.
O QAnon é um exemplo fascinante. Vemos nele muitos dos elementos de ideologia que Arendt descreve nas Origens. Nem sei se lhe podemos chamar propaganda…
É uma história que se torna viciante para muitos.
Um dos elementos-chave das ideologias, segundo Arendt, é que afirmam às pessoas que existe uma verdadeira realidade por detrás da realidade que vêem todos os dias. Isso está no centro da teoria da conspiração do QAnon. Dá às pessoas uma sensação de controlo, de conhecimento, de se sentirem como alguém que sabe algo que outros não sabem. Dá-lhes um projecto, dá-lhes comunidade e dá-lhes...
Um propósito na vida?
Sim, um propósito. A questão que se coloca sempre com Arendt é: de onde vem o sentido? É da sua comunidade política? É da sua sinagoga? É dos seus hobbies, do trabalho? Neste momento, nos Estados Unidos e noutros países, há uma espécie de crise existencial de significado que tem muito que ver com tecnologia, entre outras coisas.
Partindo de Santo Agostinho, Arendt chega ao conceito de amor ao mundo, Amor Mundi. É um conceito simples e complexo ao mesmo tempo. Como o entende?
Uma das formas como eu leio Amor Mundi é quase como um axioma para que paremos e pensemos sobre o que estamos a fazer. Podes encontrá-lo em ti mesmo para afirmar a vida e continuar a agir e a pensar, e a manter o teu apetite pela vida, debaixo das circunstâncias mais impensáveis? É incrivelmente difícil agir a partir de um sítio de amor ao mundo, sabendo que o mal vai sempre existir, que haverá sempre tragédia e perda. Arendt tinha este apetite pela vida: amava a vida, amava a experiência! Um exemplo na sua biografia surge quando ela está a contemplar o suicídio num campo de concentração. Não concebe o futuro, não faz ideia do que vai acontecer, já perdeu quase tudo, e decide que ama demasiado a vida para desistir dela.
Ela volta sempre a este tipo de princípios básicos: nascemos, morremos, aparecemos e desaparecemos. Aparecemos num mundo que foi feito antes de nós e deixamos coisas no mundo que sobreviverão a nós. Existimos juntos, fazemos o mundo em comum e habitamos a Terra. Para ela, esses são os aspectos fundamentais da condição humana. Há esta responsabilidade de nos responsabilizarmos pelas nossas acções, pela forma como estamos perante os outros, por estarmos no mundo com os outros, e pela Terra.
Para Heidegger, o pensamento era estar sozinho no bosque e na cabana, pensar era algo que se fazia sozinho. E Arendt, através de Jaspers, Agostinho e Kant, critica Heidegger: ninguém pensa sozinho, estamos sempre a pensar com os outros.
Disse numa entrevista que Arendt também é contra uma certa ideia de modernidade, muito enformada pela Revolução Científica, que nos diz que não podemos confiar nos nossos sentidos, que a realidade está para lá do que experimentamos sensorialmente. Arendt pede-nos para valorizarmos os sentidos, para estarmos no mundo, a fazer o mundo, até porque não existe um lugar perfeito acima dele em que se pense nas coisas sem que sejamos parte delas?
Absolutamente. Todos os pensamentos derivam da experiência e nós experimentamos o mundo através dos nossos sentidos. Estar no mundo com os outros sintoniza-nos aos outros, mas também a nós próprios. Ela é muito crítica de Descartes, que ensina as pessoas a não confiarem nos seus sentidos. Precisamos de confiar nas nossas experiências sensoriais da realidade porque esta é uma das coisas que a ideologia capitaliza. É tentador querer saber, ter um sentimento de certeza, mas ela aceita a incerteza radical do que significa ser humano.
Gostaria de voltar a Eichmann em Jerusalém. O que significa a “banalidade do mal” que ela identifica em personalidades como Eichmann?
É a incapacidade de imaginar o mundo da perspectiva do outro. E é um falhanço da imaginação.
Muitos leram as palavras de Arendt como uma desvalorização dos crimes de Eichmann.
Ela disse que Eichmann tinha de morrer! Há muitas leituras da palavra “banal”. Ela não quis dizer “comum” ou “vulgar”, não quis dizer que todos são capazes de cometer este tipo de violência activa. Ela não sabe se o pensamento pode impedir o mal, mas, se há algo que pode impedir as pessoas comuns de fazer o mal no mundo, tal vai acontecer no seu pensamento – na imaginação, na forma como sentimos empatia, na forma como humanizamos os outros.
Ela fala sobre como Eichmann foi este palhaço burocrata anti-semita, capaz de levar a cabo atrocidades tão horríveis. Ele não era estúpido, banal não significa estúpido, significa que há uma estreiteza na mente de uma pessoa. Pensava que ele era um palhaço. Ela fugiu à Gestapo, fugiu de um campo de concentração, atravessou França a pé, fugiu para os Estados Unidos, finalmente tem a oportunidade de ficar cara a cara com o malfeitor e vê um tipo de fato, numa caixa de vidro [no Supremo Tribunal de Israel que o julgou], a dizer disparates. Ela percebeu: “Oh! O mal não é monstruoso, não é grandioso.” E a palavra que usou foi “banal”.
Ainda queremos pensar em quem faz o mal enquanto monstros porque isso significa que não somos como eles. É uma forma de não levar a questão a sério. São as pessoas que fazem o mal – não monstros. E isso é uma verdade difícil de suportar.
Arendt emigra para os Estados Unidos em 1941 e encantou-se com a ideia da América, um país que se fundamentava na Constituição, não em guerras territoriais ou numa etnia ou raça. A ideia de uma América enquanto terra de refugiados e imigrantes. A América encaixava no seu pensamento político?
Sim. Se olharmos para a sua correspondência com Karl Jaspers, ela estava muito apaixonada pela ideia da América como um país do Estado de direito, com a separação de poderes inventada por Montesquieu. Não era um país de uma nação, do nacionalismo, no sentido em que a Alemanha o era. Há uma carta bela em que ela diz a Jaspers que a ideia do caldeirão cultural é um mito: o que há de belo na América é ter todas estas pessoas diferentes, de todas as partes do mundo, que possuem as suas comunidades e culturas. Ela própria recusou-se a ser assimilada totalmente, à sua maneira: recusou-se a perder o sotaque, agarrou-se à sua língua materna.
Perto da sua morte, ela mostra-se muito preocupada com a erosão da separação de poderes, após o escândalo de Watergate. Diz que, se a tirania surgir na América, virá do ramo executivo. Foi bastante presciente: assistimos à consolidação dos poderes executivos a partir do 11 de Setembro [de 2001] e mesmo antes disso.
Organizou uma colecção de poemas de Hannah Arendt, que será publicada na Primavera do próximo ano. É um lado menos conhecido dela. Qual era o papel da escrita de poesia na vida de Arendt?
Os poemas serão muito interessantes para leitores dela ou pessoas interessadas na sua biografia porque ela manteve uma divisão rigorosa entre a sua vida privada e a sua vida pública. Para Arendt, as emoções, o amor, a tristeza, a saudade, pertencem ao privado, não vemos esse lado no seu trabalho político. Mas vemo-lo muito nos seus poemas. Há 71 poemas, que eu editei e traduzi. Ela é muito crítica do romantismo alemão, de Rousseau, do tipo de interioridade que o romantismo produz, mas, ao desvendar os seus poemas, encontramos uma Arendt romântica: são muito sobre o estado de espírito, sobre a atmosfera interior. Há poemas mais antigos que são poemas de amor para Heidegger e há um poema para Walter Benjamin depois de ela ir a Portbou [Espanha] para encontrar a sua sepultura. Há poemas sobre o regresso à Alemanha pela primeira vez após a guerra.
Quem me dera que houvesse um poema para Lisboa [risos]. Visitei a cidade há alguns anos para ver a casa onde ela esteve alguns meses à espera do navio [que partiu a 10 de Maio de 1941. Arendt viajou para Nova Iorque, onde ficou até ao fim da vida, em 1975]. Talvez alguém consiga descobrir mais informações sobre esse período da vida dela. Não temos muitas, infelizmente.
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