5. O RADICALISMO ESQUERDISTA
Os anos 60 conheceram no mundo uma vaga de radicalismo
esquerdista. Causas internacionais e causas específicas em cada país
explicam o fenómeno.
A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril
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Uma primeira observação há a fazer, lembrando que, segun-
do um pensamento célebre na época, o esquerdismo é a «expia-
ção dos pecados oportunistas». Os acontecimentos confirmam tal
observação.
É necessário aprender com eles. Se, num momento dado, se
verifica uma reanimação do esquerdismo e do súbito interesse pelo
seu radicalismo sobretudo entre os jovens, os comunistas devem
perguntar a si próprios se não cometeram pecados oportunistas,
que expliquem o fenómeno.
De facto, no início da segunda metade do século XX , regista-
ram-se fortes tendências oportunistas no movimento comunista
internacional. A teoria da «passagem pacífica do capitalismo para
o socialismo», lançada pelo XX Congresso do PCUS em 1956, es-
timulou, em numerosos partidos, ilusões sobre o capitalismo e o
afastamento de concepções revolucionárias. Em Portugal, como te-
remos ocasião de examinar neste ensaio, a «política de transição»
e da «solução pacífica do problema político português», foram con-
sideradas ulteriormente pelo PCP como «o desvio de direita nos
anos 1956-59».
Apareceram, uns atrás dos outros, numerosos partidos, gru-
pos, jornais e publicações clandestinas, afirmando-se «comunistas»
e «marxistas-leninistas». Na quase totalidade, acusavam o PCP de
«revisionismo» e assumiam-se como os reais portadores dos ide-
ais de uma revolução socialista.
Foram muitos os grupos assim criados. Uns que tiveram pou-
ca duração. Outros que sobreviveram anos. No conjunto, tiveram
apreciável influência em Portugal nos últimos anos da ditadura e
no acidentado e tempestuoso curso da Revolução de Abril.
Havendo diferenças e rivalidades entre eles, tinham a iden-
tificá-los muitos traços comuns. A Frente de Acção Popular (FAP)
é talvez o mais representativo do esquerdismo nos anos 60. Por
duas razões: por ter resultado do abandono do PCP por um en-
tão quadro dirigente do Partido (Francisco Martins Rodrigues), que
a seguir se ligou à China e fundou o novo partido; e, por as suas
concepções, mais elaboradas que as de outros partidos e grupos
esquerdistas, serem mais próximas das predominantes nos parti-
dos «maoístas», que mundo fora, resultaram de cisões em parti-
dos comunistas.
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Uma ideia central, absorvente em todos eles, era conside-
rarem como tarefa e missão histórica o lançamento imediato de
acções armadas, para o desencadeamento a curto prazo da insur-
reição.
Esta ideia central preenchia a maior parte dos textos que
publicavam.
A FAP indicava, no concreto, o tipo de acções a realizar: sa-
botagens e atentados «respondendo em toda a parte à força com
a força». Acusava o PCP de as não realizar, mas (salvo raríssimas
excepções, e a FAP não foi uma delas) todos estes defensores da
acção armada imediata escreveram resmas de papel com palavras
exaltadas sobre a matéria, mas não consta que tenham realizado
uma só acção daquelas que entendiam ser sua tarefa central.
A realização das acções armadas exigia, segundo eles, a for-
mação de grupos de combate, «a criação de um corpo popular
armado» (Revolução Popular, n. o 1, Outubro, 1964), de «um exér-
cito popular» pronto para intervir e assaltar o poder. Exército que
«tem que ser criado no interior do país, no seio das massas po-
pulares, através do lançamento das acções de agitação, auto-defe-
sa e combate» (Acção Popular, n. o 3, Janeiro, 1965).
Já antes da formação de grupos maoístas, que vieram a ser
predominantes, o radicalismo pequeno-burguês apontava a urgên-
cia do desencadeamento de acções armadas indo até mais longe
na perspectiva optimista. O povo português (diziam) estava pronto
a travar essa luta. As acções armadas imediatas eram, segundo eles,
«o centro de gravidade» da acção revolucionária na situação exis-
tente.
O MAR (Movimento de Acção Revolucionária, cujos dirigen-
tes eram Lopes Cardoso e Manuel Lucena) afirmava que «o Povo
Português está preparado para a luta armada e que existe uma con-
juntura que permite desencadear uma ofensiva vitoriosa contra o
fascismo» (Boletim do MAR, n. o 2, Março, 1963).
O desencadeamento e desenvolvimento imediato das acções
armadas era apresentado não como um fim em si, mas como o
caminho para a insurreição popular a muito curto prazo.
A FAP anunciava que «preparar e desencadear a insurreição
popular é o objectivo imediato da Frente de Acção Popular» (O Ca-
minho da Insurreição Antifascista e da Liberdade, 1-1-1964).
A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril
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A insurreição conduziria à «revolução proletária», à «conquista
do poder político pelo proletariado», ao «poder armado das mas-
sas populares insurgidas», à «substituição da ditadura burguesa pela
ditadura proletária» (Revolução Popular, n. o 3, Março de 1965).
«Revolução em Portugal [esclareciam] quer dizer que as
classes trabalhadoras, de classes dominadas passarão a classes do-
minantes». E precisavam: «Esta é uma tarefa que só as massas po-
pulares, agindo independentemente, podem levar a cabo» (Acção
Popular, órgão da FAP, Abril de 1965).
Apontada como tarefa a curto prazo a insurreição e a conquis-
ta do poder punha-se a questão de saber «por quem?». Respon-
diam: «pelas massas populares insurgidas». Punha-se a questão de
saber: para realizar que política? Respondiam que «a revolução an-
tifascista» deveria ser sinónimo de «revolução socialista», deveria
significar «a substituição da ditadura burguesa pela ditadura pro-
letária» (Revolução Popular, n. o 3, Março de 1965).
Estas ideias básicas eram envolvidas numa teorização cons-
tante e repetida, pretensamente marxista-leninista, directamente
ligada à cisão no movimento comunista, ao apoio directo da Chi-
na, às ideias de Mao-Tsé-Tung e à cisão em numerosos partidos
no mundo. A quase totalidade desses partidos e grupos afirmavam-
-se marxistas-leninistas (M-L), intitulavam-se «maoístas» e assim fi-
caram sendo conhecidos.
As efígies de Marx e Lénine eram praticamente utilizadas por
todos, acrescentando-lhes alguns, em numerosas combinações, as
de Engels, de Stáline, de Mao-Tsé-Tung e até de Enver Hodja, nes-
te último caso por um partido, cujo jornal era impresso em Tirana,
como o próprio jornal indicava. Terreno fácil para aparecerem no
mundo partidos com a fachada semelhante, mas lançados pela CIA
com missão provocatória.
Acusavam de «revisionismo» o Partido Comunista da União
Soviética e os partidos a ele ligados. Assim também o PCP. A ac-
ção política destes partidos e grupos concentrava-se na luta con-
tra o PCP e, tanto antes como depois do 25 de Abril, apareceram
sistematicamente a convergir e mesmo a colaborar directamente
com as forças contra-revolucionárias.
No terreno das ideias, o PCP no tempo do fascismo teria sido,
segundo eles, «um auxiliar da modernização do poder burguês»,
Álvaro Cunhal
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da «recomposição liberal da ditadura burguesa», e a revolução de-
mocrática e nacional proposta pelo PCP seria «a teoria e a prática
da passagem de Portugal dum capitalismo antiquado a um capita-
lismo moderno» (Revolução Popular, n.os 1, 2 e 3, de Outubro de
1964 e Janeiro e Março de 1965).
Acusavam o PCP de, ao serviço da ditadura, ser «melhor agen-
te de controle da classe operária do que qualquer organização
policial» (O Comunista, n. o 5). E sublinhavam que o governo fas-
cista só não legalizava imediatamente o PCP, porque «a ilegalida-
de lhe dava mais força» (ibid.).
Mas deixemos os ataques e as calúnias ao PCP e vejamos o
que propunham os esquerdistas ao povo português.
Ao abordar, neste ensaio, as propostas programáticas dos
vários partidos e correntes políticas, para o Portugal que deveria
suceder à ditadura fascista, defrontamos uma dificuldade relativa-
mente ao esquerdismo. É que os esquerdistas, em geral, não apre-
sentavam o que se possa chamar um Programa.
Sublinhavam as grandes linhas de orientação e acção: forma-
ção do próprio partido ou grupo como vanguarda revolucionária,
acção armada imediata, insurreição e conquista do poder.
Até aí tudo claro, teoricamente desenvolvido, repetido mil ve-
zes. E depois de terem conquistado o poder? Concretamente: o que
no tempo da ditadura propunham para Portugal? A dificuldade é que
os esquerdistas em geral não apresentavam um verdadeiro programa.
E, para nossa surpresa, quando indicaram algumas linhas programáti-
cas, não propunham nenhumas medidas de fundo que não estives-
sem expressas no Programa do PCP, que entretanto os esquerdistas
acusavam, e continuaram a acusar depois do 25 de Abril, de ser um
programa para o reforço do capitalismo e do poder da burguesia.
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