LABEMUS
Por Gabriel Peters
Afinal, o que é (in)consciente no sonho?
Como escrevemos no primeiro e no segundo posts desta série, a sociologia dos sonhos de Bernard Lahire é também uma heurística sociológica do onírico.
Hein?
Traduzo: Lahire não somente usa ferramentas sociológicas para elucidar
os sonhos, mas também extrai, do estudo do sonho, lições mais gerais
para a sociologia. Na medida em que as porções de consciência e inconsciência que movem os agentes humanos são
uma questão-chave para o conjunto das ciências sociais, não surpreende
que o sonho se torne para o autor, então, um fenômeno privilegiado no
repensar crítico de perspectivas centrais na teoria sociológica.
De
maneira geral, Lahire lança mão da experiência onírica para questionar
abordagens que superestimam o papel da consciência reflexiva na produção
da ação humana e negligenciam, assim, a extensão multifacetada da
operação do inconsciente em nós.
Tal ênfase lahiriana é
atravessada, no caso do sonho, por distinções conceituais finas que
terminam frequentemente negligenciadas na discussão quanto ao que é
“consciente” ou “inconsciente” na psique sonhadora. Eis o caso, por
exemplo, da diferenciação entre o sonho como experiência consciente vivida pelo sonhador, de um lado, e o sonho como uma produção psíquica cujos mecanismos são inconscientes, de outro.
O sonho é uma experiência consciente
A
experiência do sonho se produz independentemente da vontade do
sonhador. Ela também se desenrola, pelo menos na grande maioria das
vezes, por caminhos sobre os quais o indivíduo que sonha não possui
nenhum controle deliberado. A rigor, não sonhamos o sonho; o sonho é que
sonha em nós. Não bastasse, o sonho raramente é vivenciado como
sonho, mas sim como uma experiência real, cuja “irrealidade” só
descobrimos após acordar. Finalmente, o próprio significado do que foi
sonhado em nós nos escapa frequentemente.
Diante de tudo isso, é
compreensível que os sonhos tenham sido frequentemente interpretados,
nos mais diversos cenários sócio-históricos, como mensagens oriundas de
entidades outras que não o próprio sonhador, tais quais ancestrais,
espíritos ou divindades (Ribeiro, 2019).
Em sua independência da
intencionalidade, a ocorrência do sonho se assemelha, nos seres humanos,
a funções orgânicas como a circulação sanguínea ou a digestão.
Diferentemente dessas funções, entretanto, o sonho como tal é uma experiência da consciência, mesmo que sua emergência e seu desenvolvimento sejam governados por mecanismos inconscientes.
Lahire rejeita, portanto, concepções segundo as quais a noção de
“consciência” se aplicaria somente à experiência da vigília. Se o termo
“inconsciência” pode até descrever o estado característico dos momentos
de sono sem sonhos, a aparição do sonho já consiste no brotar da consciência dentro do sono, i.e., de experiências conscientes de cunho sensorial, representacional, emocional etc.
O sonho é uma produção inconsciente
Isto
dito, tal como acontece com a própria experiência consciente durante a
vigília, a consciência que sonha só é capaz de operar sob a influência
de uma variedade de processos inconscientes. A lista do que vai nesses
processos é longa:
“O fato de que o sonhador está consciente não
significa que ele saiba que está no processo de sonhar ou que o sonho
seja intencionalmente produzido,…que as motivações ou os determinantes
por trás do sonho sejam conhecidos pelo sonhador, que seus cenários
sejam controlados, que os processos que governam sua produção sejam
conscientes ou que, ao acordar, o sonhador saiba exatamente o que seu
sonho significa. O sonhador não está, de modo algum, consciente do
processo inteiro e dos vários mecanismos que o levam a sonhar um sonho
particular, mas ele, não obstante, está totalmente consciente do sonho e
o experimenta até mesmo como se estivesse acordado” (s/p).
Sem
descurar das especificidades do sonho, Lahire utiliza a vivência onírica
como exemplar de outras tantas experiências humanas, inclusive aquelas
transcorridas quando estamos acordados. Diferentemente do que acontece
com os rumos do meu sonho, por exemplo, posso decidir conscientemente
arrumar meu quarto, me levantar para pegar um copo d’água ou mandar uma
mensagem para um amigo. O caráter consciente dessas condutas como tais
pode coexistir, contudo, com minha inconsciência de seus motores
subjetivos: tenho consciência de um forte impulso para organizar meu
ambiente sem saber porque o sinto tão intensamente; tenho consciência da
minha sensação de sede enquanto ignoro os complexos processos
fisiológicos pelos quais a sede é despertada em mim; sinto uma vontade
consciente de contatar um amigo enquanto ignoro vastíssimas fatias dos
processos socializadores em função dos quais nossa amizade se
desenvolveu (por exemplo, as várias experiências de um e de outro que
explicam as “afinidades disposicionais” ou “disposições eletivas” que
sustentam nossa amizade). E assim por diante…
Aprendizado inconsciente e amnésia da origem
No
que toca ao papel do inconsciente entre os seres humanos, não apenas no
sonho como nas condutas e experiências da vigília, a principal crítica
de Lahire a Freud alveja a identificação freudiana do inconsciente ao reprimido.
O inconsciente lahiriano não é fundamentalmente um depósito de
conteúdos reprimidos, como em Freud, mas o passado de socialização
incorporado ou, para falar como Pierre Bourdieu, a “história feita corpo”;
em suma, o estoque de disposições de ação, pensamento e sentimento que
são a experiência pregressa “depositada” ou “sedimentada” na
subjetividade. As causas do caráter inconsciente desse repertório
disposicional interiorizado são múltiplas, mas não derivam, pelo menos
em sua maior parte, da operação de um mecanismo de repressão.
Para começar, nossos bolsões de inconsciência envolvem o que o citado Bourdieu chamou de amnésia da origem.
Mesmo que saibamos ler, falar e andar de bicicleta ou, ainda, que
sintamos ansiedade e irritabilidade com frequência na vida cotidiana,
simplesmente não temos a lembrança explícita das n experiências situadas nas quais essas disposições motoras, cognitivas, afetivas etc. foram instiladas e reforçadas.
Para
além dessas experiências episódicas, algumas das quais até poderiam ser
recuperadas por outras vias (p.ex., um vídeo mostrando uma cena, da
qual o indivíduo não mais se lembrava, na qual ele está aprendendo a
falar ou andar com mamãe), a “memória-hábito” (Bergson) dos atores
humanos é construída por um processo similar a uma “abstração”: as
singularidades de experiências socializadoras são “filtradas” de modo a
deixarem uma espécie de “média” comum a essas experiências.
Por
exemplo, as múltiplas situações particulares em que me comuniquei em
português, desde a infância, são fontes causais das disposições
linguísticas que continuo a utilizar. No entanto, essas disposições
certamente não me permitem lembrar de cada uma daquelas
situações vivenciadas como lembranças conscientes ou, para usar a
linguagem de certa ciência cognitiva, “memórias episódicas” (Tulving,
2001).
Não bastasse a amnésia da origem, diversas das disposições
incorporadas pelo agente em suas experiências socializadoras já são
absorvidas, desde o início, em estado tácito, prático,
inconsciente. Para voltar ao exemplo linguístico, eu e você aprendemos a
construir sentenças em que o sujeito vem antes do predicado muito antes
de ouvirmos falar, na escola, do que são “sujeito” e “predicado”. De
modo similar, uma criança que percebe olhares de raiva no seu pai quando
derrama comida no chão é capaz de interiorizar a regra “não derrame
comida no chão” em estado implícito. O cuidado especial em não deixar
cair comida no chão, quando sedimentado em uma disposição durável, opera
como uma tendência comportamental inconsciente não devido a uma
repressão a posteriori, mas porque já foi incorporado e reforçado no estado de infraconsciência.
Nem tudo (nem mesmo a maior parte) do que é inconsciente é reprimido
As
sedimentações que formam o inconsciente, deduz Lahire das considerações
anteriores, podem comportar tanto experiências ordinárias quanto
vivências traumáticas e perturbadoras, tais como aquelas que Freud
considerou decisivas na etiologia das neuroses. No entanto, mesmo quando
experiências traumáticas se tornam fontes inconscientes de perturbações
psíquicas na fase adulta, continua Lahire, o que as singulariza não é
seu status de inconsciente em si, mas justamente o fato de que esse inconsciente é portado como mais problemático nas suas consequências existenciais para o indivíduo.
A
contraparte do teorema freudiano da repressão, com efeito, é uma
superestimação do que seria a capacidade mnemônica dos seres humanos
caso mecanismos repressivos não habitassem sua psique. Freud dá a
impressão, segundo seu crítico sociólogo, “de que, não fosse pela
repressão, os pacientes seriam capazes de lembrar de absolutamente todas
as suas experiências” (s/p).
Uma vez mais,
Lahire tenta qualificar suas críticas mediante uma contextualização das
fontes de que brotaram as teorias de Freud. A transposição
generalizante do “patológico” ao “normal” que marca a psicanálise
freudiana, embora louvável em sua intenção, teria continuado a carregar
os vieses de sua primeira e fundamental âncora: a análise de “pacientes
sofrendo de significativos distúrbios psicológicos, como a histeria e a
paranoia” (s/p). Tal fonte empírica das teses psicanalíticas de Freud
teria contribuído para sua atribuição de um papel demasiado amplo à
repressão na composição do inconsciente humano como tal:
“As
experiências traumáticas, fossem sexuais ou de outra natureza,
vivenciadas na infância por seus pacientes e muito difíceis de trazer de
volta à memória, marcaram [Freud] em tamanha extensão que, para ele, o
conceito de inconsciente tornou-se inextricavelmente ligado àquele de
repressão” (s/p).
A crítica da importância conferida por Freud ao
vínculo inconsciente-repressão se desdobra, assim, em uma reavaliação
crítica do papel da censura na produção dos sonhos.
Sonhos sem (ou com pouquíssima) censura
Afinal,
por que os sonhos são frequentemente tão difíceis de entender,
inclusive para aqueles que os sonham (ou em quem “eles são sonhados”)?
Segundo Freud, a resposta é: o trabalho psíquico da censura,
responsável pelos disfarces e ocultações que mascaram o desejo realizado
na experiência onírica. Para Lahire, a explicação é inversa: o relaxamento da censura,
ao alcançar o seu grau máximo nos sonhos em comparação com quaisquer
outros cenários de operação da nossa consciência, fornece a chave das
peculiaridades da esfera onírica.
A interpretação freudiana dos sonhos é um trabalho de decodificação. Como já vimos,
trata-se de encontrar, por trás do “significado manifesto” do sonho,
seu “significado latente”. A decodificação proposta por Freud tem uma
premissa bem precisa: o significado latente do sonho é a realização
disfarçada de um desejo reprimido, o que torna as estranhezas do
significado manifesto desvendáveis como modalidades daquele disfarce.
Lahire
é suficientemente atento aos movimentos do texto freudiano, por outro
lado, para notar passagens nas quais Freud reconhece que a censura não é
o único fator a contribuir para as propriedades peculiares dos sonhos. Tais fatores incluem, por exemplo, uma espécie de coação à visualidade:
“um…fator…cuja participação na transformação dos pensamentos oníricos
em conteúdo do sonho não deve ser subestimada: a consideração da
representabilidade no material psíquico peculiar a que o sonho recorre,
ou seja, nas imagens visuais, geralmente” (Freud, 2019: 356;
grifos meus). A despeito de tais passagens, entretanto, Lahire afirma
que é principalmente à censura que Freud retorna continuamente na
explicação das características formais do mundo onírico, i.e., “para dar
sentido às simbolizações, condensações, deslocamentos, substituições,
esquecimentos e lacunas que ele observa em seu tratamento dos sonhos”
(s/p).
Ao questionar o teorema freudiano da censura, o sociólogo
francês dá espaço a certos intérpretes do sonho que, já no século XIX,
sublinhavam que os controles internos da psique se encontram, durante a
vivência onírica, em seu estado mais fraco – intérpretes como
Antoine Charma, Karl Albert Scherner e Alfred Maury. Como indicado pela
frase “o sono da razão produz monstros” na famosa pintura de Goya, tais
autores deram sua chancela erudita a uma tese que já era amplamente
difundida no pensamento europeu. Trata-se da ideia de que o sonho seria o
cenário da emergência desimpedida de impulsos e paixões até então
mantidos sob controle, durante a vigília, pelas faculdades racionais da
mente: de necessidades escatológicas à fúria assassina, passando pelo
desejo sexual.
O curioso é que Freud não apenas era muito
bem-informado acerca dessa literatura como dizia concordar, em diversos
momentos, com a mesma visão de que a censura se acharia comparativamente
relaxada durante o sono. Ao tratar de fantasias diurnas, por exemplo,
Freud afirma que elas, “como os sonhos”, “beneficiam-se de certo
relaxamento da censura para suas criações” (2019: 490). Em outro canto
do mesmo livro, ele menciona também “o relaxamento noturno do dispêndio
de força da censura crítica” no “estado de sono” (Ibid.: 568). Do ponto
de vista lógico, poder-se-ia interpretar o argumento freudiano em termos
de uma “formação de compromisso”: a censura adquiriria uma intensidade
menor quando comparada aos momentos de vigília, porém estaria
suficientemente presente para fazer uso de todos aqueles mecanismos de
disfarce onírico discutidos na obra freudiana. No entanto, considerando
quão eficazes, variados, sutis e profundos mostram ser tais mecanismos
nos vários casos apresentados por Freud, o efeito cumulativo da
argumentação freudiana terminaria sendo, para Lahire, o de inconsistência:
“Ou
a censura está ausente ou extremamente fraca no sonho [de um lado] ou
ela o estrutura em tal medida que todos os seus pensamentos latentes são
transformados em pensamentos manifestos moralmente corretos [de outro].
Querer sustentar, ao mesmo tempo, ambas as visões requer uma ginástica
argumentativa. As técnicas de camuflagem são tão sofisticadas que
podemos nos perguntar em que medida a censura está de fato relaxada”
(s/p).
Questionando Freud e, em contraste, apresentando o sonho como uma instância de máximo afrouxamento das censuras
que a psique mantém sobre sua própria atividade mental, Lahire retoma o
teorema sociológico de que a intensidade dos autocontroles expressivos
dos seres humanos varia de acordo com as condições sociais nas quais
eles se encontram. De James Scott a Pierre Bourdieu,
diversos autores já observaram que as expressões humanas (p.ex., seus
modos de enunciação verbal) estão expostas a graus variáveis de censura a
depender das circunstâncias societais nas quais ocorrem. A extensão em
que os “interesses expressivos” de um agente são transfigurados, devido à
operação das censuras inerentes às condições de sua expressão, é maior
ou menor, portanto, de acordo com o que permitem tais condições.
Da
prova escrita de um concurso para o funcionalismo público até
interações face a face com colegas de trabalho, daí para conversas
íntimas com amigos próximos e, enfim, para o diálogo silencioso consigo
mesmo, os graus de controle exercidos por um indivíduo sobre seu próprio
modo de expressão se adaptam às exigências de seus contextos
expressivos. Se a ordem dos exemplos citados aponta, por óbvio, para um afrouxamento progressivo
dessas censuras, ela ainda não menciona a instância experiencial em que
esse afrouxamento progride em mais um nível: justamente o sonho, uma
comunicação de si a si liberta de quaisquer outras interações sociais
diretas.
Sexo, violência e outros conteúdos manifestos
Segundo
Lahire, Freud se aferrou à sua teoria da censura onírica mesmo diante
de uma variedade de fatos empíricos que a tornavam problemática, fatos
que ele buscou neutralizar por interpretações ad hoc ou ignorar
pela manutenção de um “discreto silêncio”. Ao tratar de sonhos nos
quais os indivíduos fazem, sofrem ou presenciam coisas terrivelmente
traumáticas, por exemplo, o psicanalista avançou a hipótese de que,
nestes casos, os conteúdos latentes teriam escapado completamente à
censura e se realizado sem modificação. Citando “os sonhos típicos da
morte de entes queridos”, Freud afirma que, “neste caso bastante
incomum”, “o pensamento onírico formado pelo desejo reprimido se esquiva
de toda censura e se transpõe de forma inalterada para o sonho” (2019:
278). Lahire rechaça essa tese, um tanto preguiçosamente, com uma
pergunta retórica: “Por que a censura variaria repentinamente em seus
efeitos?” – ignorando que o próprio Freud, a rigor, oferece uma hipótese
explicativa para essa variação particular[i]
Quanto
aos silêncios, eles são mais do que relevantes para a questão da
censura, pois dizem respeito principalmente a sonhos cujos conteúdos são
abertamente eróticos e mesmo pornográficos. O silêncio não é completo,
já que Freud dedica uma nota em Interpretação para afirmar que
evitou tratar de “sonhos de claro conteúdo sexual” (2019: 620). Em face
das pretensões generalizantes da teoria freudiana dos sonhos, contudo, a
evitação permanece curiosa, dada a alta frequência – amplamente
documentada – dessas vivências oníricas de cunho sexual em bancos de
sonhos já disponíveis desde a época de Freud (frequência que também
abarca, aliás, sonhos intensa e abertamente violentos).
Algumas
das considerações críticas de Lahire são baseadas, cabe notar, na
“documentação onírica” oferecida pelo próprio Freud – o que não deixa de
ser um testemunho (mais um!) do extraordinário talento narrativo do pai
da psicanálise. Vejamos.
Uma mulher estava apaixonada, conta
Freud antes de tratar do sonho dela, por um homem que ela vira pela
última vez no enterro de seu sobrinho Otto. Eis que ela sonha, então,
que revê o homem no enterro do outro filho de sua irmã: Karl, sobrinho
vivo na vida real, de quem ela gostava bem menos do que do falecido
Otto. Pois bem: Freud interpreta o sonho como expressão do “desejo de
rever uma pessoa amada” (2019: 262), em função do qual a mulher teria
associado o homem amado com a última situação na qual o vira. No
entanto, escreve Lahire,…
“…o que é mais extraordinário sobre este
sonho é que, embora sonhar com a morte de outra criança dificilmente
seja aceitável do ponto de vista moral, esse é, ainda assim, o modo pelo
qual a sonhadora escolhe expressar seu desejo de rever o homem. O
próprio fato de que ela gosta menos de Karl do que gostava de Otto
significa que ela não é atrapalhada por nenhuma censura e pode, assim,
fazer o primeiro morrer no sonho, já que apenas o efeito esperado dessa
morte, o de reencontrar esse homem…, importa a seus olhos. O sonho
condensa, portanto, seu relacionamento com Karl e seu desejo por um
homem, os quais estão ligados em sua mente” (s/p).
Em outro
caso, um homem sonha que chega em casa de mãos dadas com uma mulher. Lá,
ele encontra a polícia esperando para prendê-lo, explicam os policiais,
por “infanticídio”. Na noite anterior ao sonho, contou o homem a Freud,
ele fizera sexo com sua amante, pessoa casada como ele, e praticara
coito interrompido para evitar uma gravidez. Diante dessa informação,
Freud diz ao homem: “seu sonho é a realização de um desejo. Ele o acalma dizendo que o senhor não gerou um filho ou, o que é praticamente a mesma coisa, que o senhor matou a criança” (2019: 178; grifos meus). Como é, Freud?
Embora
a tese de que o sonho exprime o desejo do homem de não ter um filho
seja certamente plausível, Freud parece não se dar conta de que…
“…a atrocidade está muito mais no conteúdo manifesto do sonho do que no seu conteúdo latente
(não querer ter uma criança não é o mesmo do que sonhar que se matou
uma!). O que tal sonho prova é, na verdade, que o sonhador se soltou dos
reinos da censura e do controle social. Ele imaginou algo bem pior do
que o que efetivamente desejou, e é difícil ver o que ele estaria
escondendo (de si mesmo) nesse sonho” (s/p; grifos meus).
No mais, não importa quão forte fosse o desejo do homem em não ser pai, sonhar que se é preso por matar uma criança é uma maneira bem peculiar de “acalmar” o sonhador. Esse Freud…
Ensinamentos oníricos?
Lahire
não quer, entendamos bem, substituir o acento sobre o caráter
enigmático dos sonhos por uma ênfase na sua suposta transparência para o
sonhador, mas sublinhar que aquele caráter enigmático não se deve
principalmente à censura, e sim ao seu relaxamento.
Seu propósito
também não é o de abandonar a ideia de que os sonhos podem comunicar
algo de relevante e mesmo lúcido aos sonhadores – não só sobre seus
desejos, mas também sobre suas preocupações, medos, dilemas, indecisões,
atitudes quanto a outras pessoas e tutti quanti. De percepções
inconscientes a intuições confusamente sentidas, o material psíquico
experimentado na vida de vigília pode ser, por vezes, elaborado com mais nitidez durante os sonhos, de maneiras potencialmente instrutivas para os próprios sonhadores.
Por
exemplo, o senso de que um conhecido que admiramos como uma pessoa
bondosa tem também um lado cruel, percebido de modo mais ou menos
inconsciente na vigília, pode se tornar mais perceptível no sonho,
inclusive pelo exagero e pela dramatização (p.ex., em
vez do sutil veneno verbal, inconscientemente percebido nos comentários
da pessoa durante as interações da vigília, ela aparece no sonho
maltratando uma criança e praticando outras malvadezas bem mais
abertas).
Muitas outras ilustrações poderiam ser dadas.
As múltiplas funções do sonho
Em mais um de seus admiráveis parágrafos de suma crítica, Lahire conclui que…
“…a
teoria freudiana do inconsciente, indissociável da repressão, da
reemergência de desejos reprimidos e da noção de censura, levou o pai da
psicanálise a ver o sonho como a realização (disfarçada) de um desejo
(reprimido) deixado insatisfeito na vida de vigília. Essa generalização,
vista como infundada tanto por seus contemporâneos quanto por muitos
pesquisadores que o sucederam, o impediu de se dar conta de que o sonho
pode ser uma oportunidade de expressar um medo corrente ou
antecipatório, reviver uma situação traumática passada ou simplesmente
formular um problema, na mesma medida em que pode ser a chance de
realizar na imaginação um desejo que não foi satisfeito na vida de
vigília” (s/p).
A bem da verdade, como vimos em post anterior, a possibilidade da revivescência de “uma situação traumática passada” em sonhos foi reconhecida pelo próprio Freud em Para além do princípio de prazer (2010
[1920]: 127) – não por acaso, o texto mesmo que introduz na
psicanálise, sob o impacto devastador da Primeira Guerra Mundial, a
ideia da pulsão de morte. Lahire conhece esse argumento, mas fustiga
Freud, ainda assim, por não haver incorporado essa modificação de sua
teoria nas edições subsequentes d’A interpretação dos sonhos. (A rigor, em nota acrescentada ao livro em 1925, Freud menciona a questão, embora de passagem [2019: 185]).
Seja
como for, um dos aspectos gratificantes da leitura desse tijolaço de
Lahire é sua recuperação de comentadores da teoria freudiana dos sonhos
como Théodore Flournoy e Marcel Foucault (isso: Marcel), os quais
restavam um pouco esquecidos, mas já haviam antecipado muitas das
críticas lahirianas fundamentais. O último, por exemplo, aplicara aos
sonhos a noção dual do humano, lembrada um dia desses por Hartmut Rosa, como uma criatura movida não só “positivamente” por desejos, mas também “negativamente” por medos.
Fora
de qualquer visão mística, mágica ou religiosa dos sonhos, Marcel
Foucault registrou a função pragmática “antecipatória” de várias
experiências oníricas, em particular daquelas nas quais o medo de
desenlaces negativos cumpre uma espécie de papel preparatório (p.ex., o
aluno sonha que chegou atrasado em sua prova, revelando sua preocupação
temerosa com a necessidade de comparecer no horário preciso aos seus
exames).
Mesmo esse esquema dual é ainda demasiado redutivo, no entanto, para dar conta da pluralidade de fontes psíquicas dos sonhos e, por conseguinte, de suas funções expressivas, as quais são tão variadas, no fim das contas, quanto aquelas da linguagem ordinária:
“Como
a linguagem ordinária, a linguagem dos sonhos não tem apenas uma
orientação. Dizer que o sonho está restrito à expressão de desejos
inconscientes corresponde a dizer que a linguagem verbal nos permite
exprimir apenas os desejos dos sujeitos ou falantes. No entanto, a
linguagem – seja visual e onírica ou verbal e utilizada durante a vida
de vigília – desempenha todo um conjunto de funções, expressando
desejos, raiva, ansiedade, medo, dúvida, ambivalência, ordens etc.”
(s/p)
Como de costume, Lahire reserva um momento
para contrabalançar suas críticas a Freud com um reconhecimento das
contribuições da psicanálise, inclusive das maneiras pelas quais os
aspectos nela criticáveis são, com frequência, o “preço analítico” a
pagar por alguns de seus avanços.
Para Freud, apegar-se à teoria
do sonho como satisfação disfarçada de desejos reprimidos era, afinal,
um modo de manter à distância tanto o reducionismo neurológico quanto a
hipótese da ininteligibilidade onírica. De lambuja, Freud dava-se uma
chave para mapear os mecanismos que explicavam por que tal
ininteligibilidade era uma propriedade frequentemente aparente – mas
apenas aparente – dos sonhos.
Ainda assim, já se valendo dos
achados na seara desbravada por Freud, Lahire sustenta que a chave
interpretativa da psicanálise freudiana “abre apenas uma pequena porta de um imenso edifício que não pode ser acessado desse modo” (s/p; grifos meus).
Conclusão: afinal, o que é “geral” em uma teoria geral dos sonhos?
Mas Lahire não quer chegar, como Freud, a uma “teoria geral” do sonho?
Sim,
caso isso signifique a formalização de procedimentos metodológicos
pelos quais sonhos particulares podem ser interpretados, com base na
reunião das informações mais relevantes para explicá-los.
Não, caso isso signifique negar a variedade empírica das fontes expressivas da experiência onírica, reduzindo-as forçosa e falsamente a “uma única linha de explicação”.
Quer mais detalhes, então, sobre aqueles procedimentos metodológicos e informações explicativas relevantes?
Se sim, nos vemos de hoje a quinze.
Notas
[i]
“Parece-me que esses sonhos são favorecidos por dois fatores: em
primeiro lugar, não existe desejo do qual parecemos estar mais
distantes; acreditamos que desejar isso ‘não nos ocorreria nem mesmo no
sonho’, por isso a censura do sonho não está preparada para essa
monstruosidade, semelhante à legislação de Sólon, que não soube
estabelecer uma pena para o parricídio. Em segundo lugar, porém,
justamente aqui, um resto diurno vem ao encontro do desejo reprimido e
não intuído na forma de uma preocupação pela vida da pessoa querida.
Essa preocupação só pode se inserir no sonho recorrendo a um sonho
correspondente; o sonho, porém, pode se esconder por trás da preocupação
manifestada durante o dia. Se acreditarmos que tudo isso transcorre de
modo mais simples, que à noite e no sonho continuamos apenas o que
iniciamos durante o dia, excluímos assim os sonhos da morte de pessoas
queridas do contexto da explicação dos sonhos, preservando
superfluamente um enigma que poderia muito bem ser solucionado” (Freud,
2019: 278-279).
Referências
FREUD,
Sigmund. “Além do princípio do prazer”. Obras completas. Volume 14.
História de uma neurose infantil (“o homem dos lobos”), Além do
princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
________A interpretação dos sonhos. Obras completas. Volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LAHIRE, Bernard. L’interprétation Sociologique des rêves. La Découvert, 2018.
_______The sociological interpretation of dreams. Polity, 2020.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
TULVING,
E. Episodic versus semantic memory. In: WILSON, R.; KEIL, F.C. The MIT
Encyclopedia of the cognitive sciences. Cambridge: MIT Press, 2001.