Nauseabundo
“Recuperar o controlo, garantir a segurança.” Poderia ser um slogan do "Brexit", ou de Trump, mas não: é o nome do programa securitário que outro liberal de serviço, Donald Tusk, deu ao anúncio de que a Polónia abandonará a Convenção de Genebra (1951) sobre direito de asilo. E fá-lo misturando, como sempre neste discurso, refugiados com migrantes. O primeiro-ministro da Polónia, que já foi presidente do Conselho Europeu (anos em que dizia aquelas vacuidades da eurocracia e que agora vem mostrar quão vazias eram), e que a UE apresentou como o homem que recuperara a Polónia para os “valores europeus”, depois de, em dezembro, ter posto fim a oito anos de governo da ultradireita racista e religiosa polaca, vem agora dizer: “Não respeitaremos nem implementaremos nenhuma ideia da UE se estivermos certos de que mina a nossa segurança. Ninguém me obrigará nem me convencerá a assinar o pacto migratório” – um documento, recorde-se, verdadeiramente nauseabundo que, apesar de prever a distribuição de refugiados que entrem em algum país da UE pelos vários Estados-membros, legaliza as práticas mais ofensivas dos direitos humanos dos refugiados e dos migrantes, prendendo requerentes de asilo em novos Guantánamos fora de território europeu (como agora faz a neofascista Meloni na Albânia). Nesta nova modalidade liberal de criticar a ultradireita ultrapassando-a pela direita, Tusk acha que o governo da ultradireita polaca foi o “mais pró-imigração da Europa” por ter permitido que o país se “inundasse” de imigrantes! Há hoje um milhão de estrangeiros no país, menos de 3% da população, e a enorme maioria dos quais bielorrussos ou ucranianos fugidos à guerra, pelo que só pode ser cinismo dizer que os polacos “têm um medo de carácter civilizatório” (que embuste!) dos imigrantes (El País, 12/10/2024).
Nauseabundo
Toda esta agressividade xenófoba (“medo” do outro que deixou de ser um ser humano porque no-lo apresentam como “civilizatoriamente” diferente) e racista (um “outro” feito de pura maldade, quer porque estrangeiro e/ou professa outra religião, quer porque membro de uma minoria étnica), desde sempre acompanhada do desprezo/medo do pobre, é certamente produto deste irracionalismo ambiente com que se falsifica a realidade. Mas não basta culpar as redes e as fake news, se os primeiros a mentir são os governantes que, apresentando-se como guardiões da democracia e do Estado de direito, competem diretamente no campo da mentira com os campeões dela. Tusk jura que “o problema da imigração ilegal é hoje a questão mais importante na Polónia, na Europa e no mundo”, mas isso não é o que acham os europeus, cujas preocupações, segundo o Eurobarómetro, são “o reforço do combate à pobreza e exclusão social (33%), a necessidade de reforçar o acesso à saúde e o consequente investimento em saúde pública (32%) e a economia e a criação de emprego (31%)”. A chamada “crise migratória” aparece apenas em sétimo lugar. “Para 55% dos portugueses inquiridos, a situação económica e o emprego são a principal prioridade” (Daniela Nascimento, Monde Diplomatique – edição portuguesa, setembro 2024).
Com liberais destes, como Tusk ou Macron, os neofascistas nem precisam de se esforçar. As direitas tradicionais e o centrão social-democrata que fazem a gestão da UE têm contribuído decisivamente para a banalização da agenda e do discurso racista. A capacidade de articulação política que o racismo tem hoje é comparável com aquela que teve nos anos 1920 e 30, os da ascensão do fascismo. A extrema-direita neofascista não é capaz sozinha de romper alguns dos fundamentos do Estado de direito e do direito internacional. O do direito de asilo é um deles. Centenas de milhões de europeus migraram dentro do continente e para fora dele (especialmente para as Américas) nos últimos 200 anos, procurando o mesmo refúgio e fugindo das guerras, perseguição e miséria de que fogem todos os migrantes e todos os refugiados em qualquer momento da história. A securitização das migrações e, em especial, do direito de asilo, é uma impostura nauseabunda na boca de quem quer acabar com a democracia pela política do medo que, desde o 11 de Setembro, continua a ser usada como instrumento de governo. E o governo pelo medo tem um nome. Ditadura.
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