Ecossocialismo por Michael Löwy
Crítico ao capitalismo verde, que anseia
tornar o capital menos agressivo ao meio ambiente, o cientista social
brasileiro radicado na França, Michael Löwy, enfatiza
em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos On-Line que é
preciso reorganizar o modo de produção e consumo, atendendo às
necessidades reais da população e à defesa do equilíbrio ecológico.
Löwy propõe romper com o capitalismo e
transformar as estruturas das forças produtivas e do aparelho produtivo.
“Trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de
poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo:
ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado.
Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo
proletariado e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser
estruturalmente transformado”, esclarece.
Michael Löwy é cientista social e leciona
na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da Universidade de
Paris. Entre sua vasta obra, estão Revoluções (Boitempo, 2009), Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann (Boitempo, 2005).
Confira a entrevista na íntegra:
O que o senhor entende por ecossocialismo? Quais as ideias principais dessa corrente?
Michael Löwy– O
ecossocialismo é uma proposta estratégica que resulta da convergência
entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista.
Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista: há um
movimento ecossocialista internacional, que recentemente, por ocasião do
Fórum Social Mundial de Belém (janeiro de 2009), publicou uma
declaração sobre a mudança climática; e existe no Brasil uma rede
ecossocialista que publicou também um manifesto, há alguns anos. Ao
mesmo tempo, o ecossocialismo é uma reflexão crítica.
Em primeiro lugar, crítica à ecologia não
socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera
possível reformar o capitalismo, desenvolver um capitalismo mais verde,
mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de
superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a
perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de
classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção.
Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico,
por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu
rapidamente com o processo de burocratização e o resultado foi um
processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente.
Há outras experiências socialistas, porém, mais interessantes do ponto
de vista ecológico – por exemplo, a experiência cubana (com todos seus
limites).
O projeto ecossocialista implica uma
reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo, baseada em
critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da
população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isto significa uma
economia de transição ao socialismo, na qual a própria população – e não
as leis do mercado ou um “burô político” autoritário – decide, num
processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos.
Esta transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma
sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas
também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização,
ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo
artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de
mercadorias inúteis.
Em que consiste o Manifesto Ecossocialista Internacional?
Michael Löwy – O
Manifesto Ecossocialista Internacional, redigido em 2001 porJoel Kovel e
por mim, foi uma primeira tentativa de resumir, em algumas páginas, as
ideias principais do ecossocialismo, como projeto radicalmente
anticapitalista e antiprodutivista, e como crítica às experiências
socialistas não ecológicas do século XX.
A tentativa de aplicar o socialismo no mundo fracassou. Será possível vingar o ecossocialismo? Por quê?
Michael Löwy – As
experiências de corte social-democrata fracassaram porque não sairam dos
limites de uma gestão mais social do capitalismo e, nos últimos anos do
neoliberalismo, as experiências de tipo soviético ou stalinista
fracassaram por ausência de democracia, liberdade e auto-organização das
classes oprimidas. As duas tinham em comum uma visão produtivista de
exploração da natureza, com dramáticas consequências ecológicas.
O ecossocialismo parte de uma visão
crítica destes fracassos e propõe um projeto democrático, libertário e
ecológico. Nada garante que possa vingar. Depende das lutas ecossociais
do futuro.
Sob quais aspectos a crise ecológica é mais grave do que a econômica?
Michael Löwy – A crise
econômica tem consequências sociais dramáticas – desemprego, crise
alimentar etc. –, mas a crise ecológica coloca em perigo a sobrevivência
da vida humana neste planeta. O processo de mudança climática e
aquecimento global, provocado pela lógica expansiva e destruidora do
capitalismo, pode resultar, nas próximas décadas, numa catástrofe sem
precedente na história da humanidade: desertificação das terras,
desaparecimento da água potável, inundação das cidades marítimas pela
subida do nível dos oceanos etc.
Como pensar em ecossocialismo se a Modernidade é capitalista? Seria o ecossocialismo uma proposta para romper com o capital?
Michael Löwy – Absolutamente!
Uma das ideias fundamentais do ecossocialismo é a necessidade de uma
ruptura com o capitalismo. Uma ruptura que vai mais além de uma mudança
das relações de produção, das relações de propriedade. Trata-se de
transformar a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do
aparelho produtivo. Há que aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica
que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da
Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem
apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do
proletariado; não é possível, porque o aparelho do Estado burguês nunca
vai estar a serviço dos trabalhadores.
Então, trata-se de destruir esse aparelho
de Estado e de criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser
aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído,
ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente
apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado e posto a trabalhar a
seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado. É impossível
separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas
fontes de energia, em particular do Sol – alguns ecossocialistas falam
do comunismo solar, pois entre o calor, a energia do Sol e o socialismo e
o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.
Como o ecossosialismo pode se
sustentar em economias emergentes, que ainda não conquistaram um status
de bem-estar social das economias desenvolvidas?
Michael Löwy – As
economias dos países do Sul, da Ásia, África e América Latina devem se
desenvolver, mas isto não significa copiar o modelo de desenvolvimento
capitalista do Ocidente e seu padrão de consumo insustentável. Trata-se
de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na
agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos
transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação
igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria. O
modelo ocidental não so é absurdo e irracional, mas não é generalizável:
se os chineses quisessem imitar o American way of life, cinco planetas
seriam necessários.
A humanidade deve preocupar-se com o ecossocialismo ou com o capitalismo verde?
Michael Löwy – O
capitalismo verde é uma contradição nos têrmos. A lógica intrinsecamente
perversa do sistema capitalista, baseada na concorrência impiedosa, nas
exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, é
necessariamente destruidora do meio ambiente e responsável pela
catastrófica mudança do clima. As pretensas soluções capitalistas como o
etanol, o carro elétrico, a energia atômica, as bolsas de direitos de
emissão são totalmente ilusórias.
Os acordos de Kyoto, a fórmula mais
avançada até agora de capitalismo verde, demonstrou-se incapaz de conter
o processo de mudança climática. As soluções que aceitam as regras do
jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, que aceitam a
lógica de expansão infinita do capital, não são soluções, são incapazes
de enfrentar a crise ambiental – uma crise que se transforma, devido à
mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana. Como
disse recentemente o secretário das Nações Unidas, Ban Ki Moon: “Estamos
correndo para o abismo com os pés colados no acelerador”.
Em que sentido a crise ecológica atual pode ser entendida como um problema de luta de classes?
Michael Löwy – Por um
lado, a crise ecológica é um problema de toda a humanidade, pessoas de
várias classes sociais podem se mobilizar por esta causa. Por outro
lado, as classes dominantes são cegadas por seus interesses imediatos,
pensam exclusivamente em seus lucros, sua competitividade, suas partes
de mercado e defendem, com unhas e dentes, o sistema capitalista
responsavel pela crise. As classes subalternas, os trabalhadores da
cidade e do campo, os desempregados, o pobretariado têm interesses
conflitivos com o capitalismo e podem ser ganhos para o combate
ecossocialista. Não se trata de um processo inevitável, mas de uma
possibilidade histórica.
Nas últimas conferências do
clima, em Copenhague e Cancun, os movimentos sociais e ambientalistas
fracassaram? Por que não se vê perspectiva de avançar nas lutas
ambientais?
Michael Löwy – O que
fracassou em Copenhague e Cancun foram as políticas dos governos
comprometidos com o sistema, que demonstraram sua total incapacidade de
tomar qualquer decisão, mesmo a mais ínfima, no sentido de buscar
reduzir significativamente as emissões de CO2, responsáveis pelo
aquecimento global.
A manifestação de cem mil pessoas nas
ruas de Copenhague nem 2009, protestando contra o fracasso da
conferência oficial, com a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o
clima”, é um primeiro passo, alentandor, no sentido de uma mobilização
ecológica radical. Ainda estamos longe de ter uma luta ecológica
planetária capaz de mudar a relação de forças e impor as drásticas
mudanças necessárias. Mas esta é a única esperança de evitar a
catástrofe anunciada.
Considerando o contexto de capitalismo exacerbado, acredita que as pessoas estão preparadas para o ecossocialismo?
Michael Löwy – Existe um
sentimento anticapitalista difuso na América Latina, naEuropa e em
outras partes do mundo. O movimento altermundialista é uma das
expressões disto. Por outro lado, cresce a consciência ecológica, a
preocupação com as ameaças profundamente inquietantes que representa a
mudança climática. Mas é no curso das lutas ecossociais contra as
multinacionais destruidoras do meio ambiente e contra as políticas
neoliberais que poderá surgir uma perspective ecossocialista. Não há
nenhuma garantia; é apenas uma possibilidade, mas dela depende o futuro
da vida neste planeta.
Qual é o papel das populações originárias como os indígenas e quilombolas na consolidação do ecossocialismo?
Michael Löwy– Em toda a
América Latina – mas também na América do Norte e em outras regiões do
mundo – as populações indígenas estão na primeira linha do combate à
destruição capitalista do meio ambiente, em defesa da terra, dos rios,
das florestas, contra as empresas mineiras, o agronegócio e outras
manifestações da guerra do capital contra a natureza. Não por acaso os
indígenas tiveram um papel determinante na organização da Conferência de
Cochabamba em Defese da Mãe Terra e contra a Mudança Climática, em
2010, que contou com a participação de dezenas de milhares de delegados
de comunidades indígenas e movimentos sociais. Temos muito aaprender com
as comunidades indígenas, que representam outra visão da relação dos
seres humanos com a natureza, totalmente oposta ao ethos explorador e
destruidor do mercantilismo capitalista. Como diz nosso companheiro, o
histórico lider indígena peruano Hugo Blanco: “Os indígenas já praticam o
ecossocialismo há séculos!”
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