«O QUE ANDO A LER
A Coreia do Norte é um problema sério, já o sabemos. Não obstante o simplismo contido na tentação de resumir tudo a uma questão de mais ou menos loucura dos seus dirigentes. Como se fosse possível esquecer a dimensão política sempre contida nos comportamentos e relações entre os países. A Coreia do Sul, a outra metade de um país artificialmente dividido, tem passado entre os pingos da chuva. O Sul progrediu de um modo radicalmente diferente do Norte. Construiu uma sociedade já incapaz de se identificar com o vizinho/irmão, mas foi, ao longo de décadas terreno fértil para ditaduras brutais e inomináveis massacres convenientemente silenciados. Não por distração. É tão só a geopolítica a funcionar. Han Kang, notável escritora sul-coreana, autora de um assombroso livro já publicado em Portugal, “A Vegetariana”, surge agora com “Atos Humanos”.
É uma obra cuja ficção surge ancorada numa realidade tremenda: o massacre de Maio de 1980 perpetrado nas ruas de Gwangju, terra natal da autora, contra quantos reclamavam uma democratização do país e o fim da lei marcial. Foram dizimados, com recurso a lança-chamas, baionetas, ou bastões, estudantes, civis, crianças e todos quantos surgissem à frente das tropas do ditador de serviço, o general Chun Doo-hwan. Foram dias consecutivos de violência infame e nunca até hoje foi possível alcançar um consenso sobre o número de vítimas mortais. Han Kang não escreve um livro de história. Serve-se da literatura para construir uma série de capítulos que se vão interligar, cada um deles com uma nova personagem como protagonista. Se tudo começa com o jovem Dong-ho, que procura o seu amigo morto enquanto se ocupa da catalogação de cadáveres que se amontoam no ginásio municipal, há depois uma perturbante viagem através de outras histórias construídas a partir de um selecionado grupo de vítimas ou sobreviventes, situados em tempos diferentes.
Somos assim conduzidos até o prisioneiro que, em 1990, é convencido, em benefício de uma tese académica, a reviver os horrores sofridos durante dias de tortura. Uma operária, em 2002, recupera a memória da brutalização a que foi submetida e o modo como isso afetou toda a sua personalidade. São váriashistórias de perda, de sofrimento, de horror, com a autora a assumir um epílogo para dar o seu próprio testemunho. Tinha nove anos quando aconteceu o massacre. O acaso fizera com que a sua família tivesse saído da cidade uns meses antes. Ainda criança, como descreveu em entrevista ao Expresso Diário, descobre, escondido em casa, um livro de fotografias tiradas por jornalistas estrangeiros. “Como é que seres humanos podem fazer isto a outros seres humanos?”, foi a questão que lançou a si própria e talvez este livro seja, tantos anos depois, uma forma de tentar uma resposta para o inominável, para a brutalidade contida no absurdo quotidiano.»
in Expresso curto
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