A subversão de conceitos por
Prabhat Patnaik [*]
Picasso, 1951. Considere duas declarações: "A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão do capital" e... "A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão de corporações multinacionais". Muitos considerariam as duas declarações mais ou menos idênticas, sendo a segunda apenas uma forma mais específica de exprimir a primeira. Mas eles estão errados: há um mundo de diferença entre estas duas declarações.
Picasso, 1951. Considere duas declarações: "A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão do capital" e... "A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão de corporações multinacionais". Muitos considerariam as duas declarações mais ou menos idênticas, sendo a segunda apenas uma forma mais específica de exprimir a primeira. Mas eles estão errados: há um mundo de diferença entre estas duas declarações.
O
capital, como uma relação social, tem certas tendências imanentes.
Estas actuam por si próprias através das acções de agentes económicos,
cada um dos
quais é obrigado a actuar de modos particulares pela lógica do sistema.
Por exemplo: o facto de capitalistas acumularem não é porque eles
necessariamente pretendam fazer isso, mas porque a lógica do sistema
obriga-os a assim fazer. Capitalistas, em suma, não
são agentes livres, livres para fazerem qualquer coisa que pretendam,
mas são eles próprios coagidos pela lógica do sistema. Eles também são
seres alienados sob o capitalismo, simplesmente a executar um roteiro
ditado pelo sistema. Karl Marx chegou a referir-se
ao capitalista como "capital personificado".
As
corporações multinacinais não são entidades diferentes, quanto a isto,
do capitalista individual. Elas não são sinónimas do capital mas sim
agentes através
de cujas acções, ditadas pela lógica do sistema, as tendências
imanentes do capital actuam por si mesmas. Tratá-las como sinónimo do
"capital" é apagar toda esta concepção de capital com suas tendências
imanentes, eliminar todo este discurso acerca da lógica
do sistema e da sua "espontaneidade" – e operar efectivamente com uma
teoria muito diferente.
Profundas implicações políticas
Mas
esta mudança de "tema" de um "assunto conceptual", nomeadamente o
capital, para um "assunto tangível", nomeadamente corporações
multinacionais, não
é apenas uma mudança teórica. Ela tem profundas implicações políticas. O
capital com suas tendências imanentes tem de ser transcendido como
categoria social, através de um derrube do capitalismo, se estas
tendências imanentes – tais como a centralização do
capital, a tendência contínua para mercantilizar todas as esferas da
vida social, a destruição da pequena produção, a tendência para produzir
riqueza num pólo e pobreza em outro – tiverem de ser afastadas.
Reconhecer o capital como "tema" conceptual da dinâmica
social portanto implica necessariamente uma agenda de revolução social
como condição para a liberdade humana. Mas limitar a nossa atenção às
corporações multinacionais como as impulsionadoras, ou o "tema", da
dinâmica social dá a impressão de que eles podem
ser restringidas, controladas, domadas, persuadidas e forçadas a actuar
de modos benevolentes ("responsabilidade social corporativa") para
melhorar o resultado e a direcção destas dinâmicas. Desta perspectiva, o
que se segue é uma agenda de reforma, uma agenda
liberal progressista. Portanto, uma mudança do "tema conceptual" para
um "tema tangível" não é apenas uma mutação teórica; é também uma
mutação de agenda, de uma agenda socialista para uma agenda liberal
progressista.
Naturalmente,
no discurso habitual do dia-a-dia, nós não ficamos a falar acerca de
"capital" mas falamos ao invés de corporações multinacionais, de bancos
multinacionais, mesmo de estabelecimentos industriais individuais como
os Tatas, os Birlas e os Ambanis como as entidades contra as quais as
lutas dos trabalhadores são travadas. Isto é como tem de ser, uma vez
que "temas conceptuais" são alvos polemicamente
difíceis, ao passo que "temas tangíveis" são mais palpáveis e portanto
fáceis de compreender. E, mesmo na prática, a luta do dia-a-dia, tal
como a actuação de um sindicato, é sempre contra uma entidade particular
tangível, contra uma "personificação do capital",
como dizia Marx, ao invés de ser directamente contra a entidade
conceptual chamada "capital" (pois isso ocorre com uma lucidez de
compreensão só em períodos de luta de classe revolucionária). Mas a
questão aqui é diferente, nomeadamente que uma substituição
de um "tema conceptual" por um "tema tangível" por conveniência
política ou devido à particularidade do contexto da luta (tal como uma
acção sindical numa fábrica de propriedade de Ambani) nunca deve
implicar uma substituição no âmago da teoria.
Qualquer
substituição teórica assim, ou qualquer tendência para permanecer mais
ou menos confinado a "assuntos tangíveis" ainda que reconhecendo
formalmente
o "assunto conceptual" (o qual implicitamente equivale a uma tal
substituição teórica" é com efeito substituir uma agenda socialista por
uma agenda liberal progressista. Há certamente liberais progressistas
que não são socialistas e que, inteiramente consistentes
com suas crenças políticas, não reconhecem "assuntos conceptuais". Eles
rejeitam declarações como a "pequenas produção esta a ser esmagada pela
intrusão do capital", mencionada no princípio, como elevando algo
místico chamado "capital" ao status de um "sujeito".
Mas para um socialista, substituir no âmago da teoria um "assunto
conceptual" por um "assunto tangível" equivale a abandonar a raison
d'être da sua crença socialista.
Contudo,
a propensão nesse sentido é particularmente alta nestes dias porque há
um grande número de grupos activistas e ONGs, os quais são militantes e
bem intencionados mas não socialistas. Eles estão empenhados bastante
intensamente em lutas sobre questões particulares que afectam o povo e
com os quais a esquerda deve fazer causa comum. Uma vez que os alvos
destas lutas são "assuntos tangíveis", o empenhamento
contínuo em tais lutas ao lado deles por parte da esquerda traz o risco
de empurrar a teoria, e com ela todo um conjunto de "assuntos
conceptuais", para segundo plano. A esquerda, estou a argumentar, deve
precaver-se contra isto é permanecer comprometida com
o seu projecto socialista.
Um
segundo conceito que está em perigo de ser analogamente subvertido é
"imperialismo". O termo "imperialismo" refere-se a uma rede de
relacionamentos,
envolvendo os países capitalistas avançados e os subdesenvolvidos.
Estes relacionamentos mudam ao longo do tempo, conduzidos não só pelas
tendências imanentes do capital como também pela resistência do povo. A
administração Reagan, ou a administração Bush
ou a administração Obama são "assuntos tangíveis" através de cujas
acções o "assunto conceptual" a que chamamos "imperialismo" opera na
prática. Mas precisamente porque imperialismo não é tangível enquanto
todas estas entidades através das quais ele opera
o são, a tendência é substituir o termo "imperialismo" por estas outras
entidades, exactamente do modo como o termo "capital" tende a ser
substituído por expressões como "corporações multinacionais", "bancos
multinacionais" e semelhantes.
Por
vezes são utilizadas expressões como o "Império americano", ou o
"Império do mal", ou "Hegemonia estado-unidense", ou apenas "Império"
utilizada por
Hardt e Negri numa obra bem conhecida, ao invés de "imperialismo". Se
bem que estas expressões descrevam certos relacionamentos, ao contrário
de expressões como "administração Obama" que simplesmente se referem a
entidades particulares existentes, elas também
recusam-se a dar qualquer sugestão de ligação com as tendências
imanentes do capital. O problema mais uma vez não é com a utilização
destas expressões per se mas com a substituição da expressão
"imperialismo" pelas mesmas, isto é, com o apagamento da teoria
a qual decorre de um entendimento das tendências imanentes do capital e
que, portanto, encara a transcendência do capitalismo e, por
implicação, destas tendências imanentes do capital, como uma condição
para a liberdade humana.
Aqui,
mais uma vez, desde que a esquerda tem de trabalhar junto com muitos
grupos activistas que são militantes sobre questões particulares
relativas, por
exemplo, à agressão dos EUA por todo o mundo, mas que não são
socialistas e para os quais estes "assuntos conceptuais" como
"imperialismo" decorrente das tendências imanentes do capital têm pouco
significado, ela enfrenta o perigo de uma subversão dos seus
conceitos e portanto de um deslizamento inconsciente para uma posição
intelectual de liberalismo progressista a partir de um compromisso com o
socialismo.
Isto
não é desprezo por tais lutas ou pela necessidade para a esquerda –
pela qual quero dizer todos aqueles que vêm a necessidade de transcender
o capitalismo
– de se juntar a liberais progressistas no decorrer destas lutas. De
facto, liberais progressistas muitas vez podem ser mais militantes em
lutas particulares do que a esquerda. A questão é que, ao assim fazer, a
esquerda nunca deve abandonar o seu próprio
entendimento teórico que se centra em torno de um conjunto de "assuntos
conceptuais".
Entendimento correto
Ela
deve aderir ao seu entendimento não apenas devido a alguma lealdade à
memória de Marx e Lenine, mas porque acontece que este entendimento é
correto.
O teste desta correção jaz no facto de que lutas específicas contra
"assuntos tangíveis", mesmo quando elas têm êxito, trazem apenas
vitórias temporárias as quais são negadas quando as tendências imanentes
do capital se afirmam. De facto, mesmo a mais maciça
"engenharia social" que foi imposta ao capitalismo pelas lutas da
classe trabalhadora na era do pós-guerra, a qual testemunhou a "gestão
da procura" keynesiana e mesmo anunciada festivamente como a "Idade de
ouro do capitalismo", foi revertida com a emergência
do capital financeiro internacional (um outro "assunto conceptual") em
consequência das tendências imanentes do capital. Só quando, através de
uma acumulação recursiva de lutas específicas, um desafio revolucionário
com êxito for montado contra este universo
de "assuntos conceptuais" como um todo, é que a humanidade se moverá
finalmente para além destas lutas específicas. Até então, contudo, a
esquerda deve manter-se fiel ao seu entendimento teórico baseado nestes
"assuntos conceptuais" e portanto precaver-se
contra qualquer subversão dos seus conceitos. 04/Setembro/2016
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0904_ pd/subversion-concepts . Tradução de JF. Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0904_
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