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sábado, 29 de dezembro de 2018

Mas onde estão os líderes da esquerda francesa nas lutas actuais?

por Rémy Herrera
Numerosos coletes amarelos dizem e repetem: eles não têm líderes – e também não querem. O espontaneísmo tem as suas virtudes e os encantos, com certeza, mas igualmente os seus limites e as suas ilusões, portadores dos perigos mais terríveis. A história contemporânea já o mostrou reiteradamente, desde a Revolução Espartaquista alemã até os recentes levantamentos a "Primavera árabe". Se pretendem desembocar em avanços sociais concretos, todo levantamento popular precisa – além da energia, determinação e coragem do povo – uma certa unidade, uma organização partidária, um programa político. Ora, o mínimo que se pode dizer é que, na França actual, em rebelião generalizada, o desmembramento das forças progressistas é extremo e é mantido por querelas de chefes muitas vezes mais pessoais do que políticas. Na tragédia da divisão da esquerda francesa, que a enfraquece por completo, acrescenta-se ainda o paradoxo de que esta situação ocorre no preciso momento em que se construiu uma unanimidade popular para rejeitar não só as políticas neoliberais, mas também o próprio presidente Macron.

Actualmente o mais bem colocado na batalha interna da esquerda é sem dúvida o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon. Este realiza efectivamente o verdadeiro feito de chegar a reunir no seu nome cerca de 20% dos votos aquando da primeira volta das eleições presidenciais de Abril/2017 – ou seja, quatro pontos e algumas decimais menos do que o candidato autorizado finalmente a mudar-se para o Palácio do Eliseu. O Partido Comunista, apesar de dissensões persistentes, tomou a opção de se alinhar sob a sua bandeira. Na realidade, para terminar à frente os votos que lhe faltaram – ironia da sorte – foram os dos seus "velhos amigos": socialistas por um lado (Benoît Hamon obteve 6%)... e trotskistas (Nathalie Arthaud [do Lutte ouvrière] e Philippe Pouton [do Nouveau Parti anticapitaliste], registaram respectivamente 1% e 0,6% dos votos).

Após esta derrota eleitoral consumada e dolorosamente digerida, J.-L. Mélenchon não perdeu a oportunidade que se lhe apresentava com o surgimento da mobilização dos coletes amarelos. É verdade que ele precisava recuperar uma popularidade seriamente maculada por uma série de processos judiciais (relativos a suas contas de campanha, nomeadamente, em que os media dominantes se deleitaram), mas também por uma insurreição afectando a direcção do seu próprio movimento (provocando a demissão de vários dos seus lugar-tenentes). Em consequência, e após hesitação, ele postou nas redes sociais, já em Novembro, seu apoio aos coletes amarelos e sua intenção de desfilar entre eles – mas "discretamente", segundo disse.

O papel político de Jean-Luc Mélenchon foi, nestes últimos anos, eminentemente positivo para o conjunto da esquerda francesa. E mesmo para além dela. Seus talentos reais de tribuno souberam reunir as multidões, remotivá-las, recolocá-las em movimento, dar nova esperança, insuflar novamente a ideia de que uma mudança progressista para o país é não só necessário mas, sobretudo, possível. Correctamente, e melhor do que ninguém, ele formulou, sistematizou, radicalizou as críticas contra "o sistema". Teve o mérito de falar novamente no internacionalismo, especialmente em relação à América Latina em luta. Nestes tempos particularmente difíceis, é uma felicidade para a esquerda francesa que um homem político como ele estivesse actuante.

Alguns não esquecem que Jean-Luc Mélenchon foi, durante mais de 32 anos, membro (conselheiro geral, senador, ministro!) de um Partido Socialista que traiu absolutamente tudo quanto podia quanto às expectativas do povo de esquerda e que, além disso, escravizou o país a uma União Europeia ultraliberal, atlantista, antidemocrática, destruidora das conquistas sociais e da soberania nacional. O anticomunismo exacerbado de alguns de seus próximos recorda que ele militou algum tempo na Organização Comunista Internacional, grupo trotskista de choque que doou à França homens tão "notáveis" como Lionel Jospin – o primeiro-ministro socialista que privatizou tanto quanto a direita havia feito antes dele – ou Jean-Christophe Cambadélis – ex-braço direito do "lamentado" Dominique Strauss-Kahn. Como ele próprio gosta de repetir, o modelo de J.-L. Mélenchon permanece sempre François Mitterrand – antigo presidente da República (condecorado em sua juventude com a Ordem da Francisque pelo marechal Pétain), o qual foi o introdutor do neoliberalismo em França, tal como uma Margaret Thatcher ou um Ronald Reagan. Esta tarefa suja foi cumprida em 1983 graças aos cuidados de um primeiro-ministro, Laurent Fabius – ou seja, o "socialista" tornado ministro das Relações Exteriores trinta anos depois que queria ir à guerra contra a Síria! E foi este "camarada Fabius" que J.L. Mélenchon optou por apoiar como candidato do PS nas eleições presidenciais de 2007... Como será compreendido, há muito pouco risco de que o líder da França Insubmissa tome a iniciativa de uma eventual ruptura anti-capitalista. Ele que, em 1992, apelava a votar "sim" ao Tratado de Maastricht porque acreditava nela perceber "um começo da Europa dos cidadãos". Pode-se enganar durante a vida, mas não quase toda a vida.

Herdeiro de uma longa história feita de resistências anti-fascistas e anti-colonialistas heróicas, o Partido Comunista Francês conserva bases militantes significativas e ainda administra, o melhor que pode, várias municipalidades com perfis sociológicos populares e complicados. Mas o apagamento da sua direcção actual, amplamente reformista e com estratégia demasiado estreitamente eleitoralista, conduziu o PCF ao seguidismo mais raso e sem brilho, substituindo a luta das classes pela "luta dos lugares". Outrora "na vanguarda do proletariado", o PCP encontra-se agora, sob a batuta dos seus dirigentes sem convicções, a reboque de sociais-democratas que estão eles próprios completamente desorientados e transformados na maior parte em medíocres neoliberais. A miríade de minúsculos partidos comunistas (que permanecem autênticos) que gravita em torno do PCF – e contra a sua direcção – está dilacerada entre os "por" e os "contra" os coletes amarelos. O que equivale a dizer que as suas diversas tomadas de posição sobre as mobilizações em curso passam dramaticamente desapercebidas.

Os líderes dos partidos trotsquistas – singularmente numerosos em França – estão pelo seu lado amuralhados em rivalidades e sectarismos que beiram o ridículo, que os dividem profundamente e os afastam cada vez mais da perspectiva de uma responsabilidade política qualquer, mesmo local. No comment sobre sua ausência de posições internacionalistas. E os ecologistas? Conduzidos por fervorosos neoliberais, grosseiramente maquilhados (tais como Nicolas Hulot, que foi ministro de Emmanuel Macron até Setembro/2018, ou o indescritível Daniel Cohn-Bendit...), eles nem sempre compreenderam que a causa mais fundamental das devastações sofridas pelo ambiente se encontra no próprio sistema capitalista. Ainda precisam de tempo para isso. Finalmente, os chefes dos movimentos anarquistas permanecem encerrados nas contradições entre um activismo útil (aquando dos movimentos de ocupação da última Primavera, nomeadamente) e um programa de acção extraordinariamente confuso – para não dizer contraproducente.

As bases destas diversas forças progressistas estão portanto, por assim dizer, entregues a si próprias. E convidadas pelas suas respectivas lideranças a entreter entre si todas as desconfianças. Os ódios. Isto é certamente totalmente absurdo e suicida. Esta triste constatação é tanto mais terrível quando segmentos inteiros da população francesa pauperizada hoje não são mais representados por todas estas organizações de esquerda. Dentre outros: "novos pobres", como são chamados, imensamente numerosos, batidos pelo desemprego e pela precariedade; pequenos agricultores familiares crivados de dívidas, isolados, desesperados; jovens dos arrabaldes, sem objectivos, guetizados, abandonados por todos (excepto os polícias, os traficantes de drogas e salafistas ricos...) – ainda que estes jovens constituam muito provavelmente o mais forte baluarte contra o racismo no país, e que já se tenham levantado durante os motins de 2005-2007 –; famílias saídas da imigração, deixadas à margem da sociedade; gente sem domicílio fixo, sem tecto e direito, "intocáveis" do nosso país, desumanizados, espectros errantes com rostos distorcidos pela miséria que se vêem por toda parte, mas que já não olhamos... Tantos outros ainda. Um lumpem-proletariado? São sobretudo milhões de franceses cuja existência foi sacrificada no altar do capitalismo moderno. Como os responsáveis dos nossos partidos progressistas puderam desistir de se baterem também por todos eles? O que aconteceu nas nossas fileiras para que abdicarmos até este ponto?

Face ao espectáculo lamentável apresentado por esta esquerda-nebulosa pulverizada, a burguesia francesa jogo sobre veludo. Por enquanto, pelo menos. A direita certamente implodiu. Sua componente que chamaremos "centrista" – neste caso, o Partido Socialista – vendeu sua alma desde há mais de três décadas (e com a presidência de F. Mitterrand) convertendo-se aos dogmas do neoliberalismo e alinhando-se em posição de combate atrás dos exércitos da NATO, como se viu. Quanto ao outro componente da direita, que chamaremos de "tradicional" – representado no momento por Les Républicains –, ela liquidou (sob a presidência de Nicolas Sarkozy) seus antigos ideais intervencionistas e nacionalistas para se prosternar aos pés da alta finança globalizada e do hegemonismo belicista dos EUA.

Da deliquescência inevitável destes dois componentes desnaturados – a "falsa esquerda" que era o PS do presidente François Hollande e a "nova direita" sarkozista –, com visões do mundo e programas intercambiáveis, surgiu logicamente a sua síntese: a "ficção Macron". Ou seja, o ideal da renovação impossível da burguesia. Será que esta última será constrangida a lançar contra o povo francês em revolta, quando chegar o momento, tal como soube fazer alhures um milhar de vezes no século XX, o cão de guarda do capitalismo que para ela sempre foi a extrema-direita? Este molosso que o poder burguês alimenta com xenofobia e aversão, mantendo-o firmemente na trela.

O quadro sombrio da esquerda francesa que aqui se desenha não proporcionará amizades, smileys e polegares para cima. Sem dúvida. Infelizmente, é provável que seja compartilhado por muitos coletes amarelos, assim como pelo grupo desavergonhado de camaradas que, por nojo ou esgotamento, deixaram de militar para se dissolverem na invisibilidade dos 50% de franceses que preferem se abster de votar nas eleições. Este inventário não pretende ofender, muito menos desmoralizar; ele recorda a exigência de uma ultrapassagem das divisões e da união dos progressistas ao serviço de um povo que luta e mostra o caminho; visa compreender a raiva que hoje anima este povo e as razões da sua rejeição dos próprios partidos de esquerda. Isto, deixando bem claro que as razões profundas da rebelião francesa não se resumem, longe disso, apenas às insuficiências das forças progressistas, por mais patentes que elas sejam. O que é reclamado é uma mudança completa de sistema. Na esquerda, contudo, ainda são raros aquelas e aqueles que o dizem muito claramente: é uma saída do capitalismo destruidor que se impõe.

Nestas condições, no fundo não há nada de espantoso em que os coletes amarelos – e com eles grandes porções das bases sindicais – lutem sozinhos. E frequentemente contra "os políticos", infelizmente. Também não é surpresa – uma vez que as forças de esquerda não têm o menor programa de saída do capitalismo (nem mesmo do euro!) – que as reivindicações dos coletes amarelos sejam díspares, vão em todas as direcções: rever em baixa todos os impostos, mas restabelecer o imposto sobre a riqueza; diminuir as contribuições patronais e aumentar a ajuda financeira do Estado às empresas; mas desenvolver o Estado social; revalorizar as pensões, mas uniformizar os diferentes sistemas de reforma (como o governo quer!); suprimir o Senado (como se o problema estivesse [apenas] nele!), mas contabilizar os votos brancos nas eleições; criar assembleias de cidadãos que decidam leis por democracia directa, mas permitir referendos por iniciativa dos cidadãos; aumentar os salários, mas o que quanto aos dos quadros superiores e dirigentes?; aumentar as despesas sociais, mas reduzir o assistencialismo; adoptar uma verdadeira política de protecção ambiental, mas abandonar o imposto sobre o carbono; diminuir os preços do gás e da electricidade, mas sem nacionalizar os sectores de energia?, suprimir os ágios bancários, mas deixar intacto o poder ditatorial das finanças?, recuperar a soberania nacional, mas permanecer na União Europeia?, etc. Esta bela desordem é ridicularizada pelos "peritos" da burguesia, que se divertem a apontar contradições demasiado gritantes. Mas o importante está alhures: um ponto de não retorno parece ter sido atingido; a inteligência popular saiu da masmorra ou era mantida agrilhoada; um povo de coletes amarelos se ergueu; uma palavra libertada, democrática, oh quanto salutar, invadiu as telas da televisão, e exige que as regras do jogo sejam alteradas. Finalmente.

Em 1789, a igualmente óbvia dispersão das reivindicações formuladas nos "Cadernos de queixas" ("Cahiers de doléances") do campesinato e dos sans-culotte que produziram a Revolução Francesa não contribuiu de modo algum para travar a inevitabilidade da mesma. Porque – coisa incongruente? – nesta cólera que sobe e que se generaliza por toda parte em França, chega-se aqui e ali a falar novamente de... revolução. Em rotundas bloqueadas, nos piquetes de greve, nas redes sociais..., é mesmo de uma revolução que se fala. Estamos muito longe, certamente. Sem um líder de envergadura e sincero, sem partido organizado, sem programa consequente e, dever-se-ia acrescentar, sem teoria, a grande noite da revolução certamente não é para amanhã.

"E ao mesmo tempo" (conforme a fórmula afectada de Emmanuel Macron), os tablóides populares ficam maravilhados com o gosto requintado da "primeira-dama", Brigitte, cujos vestidos Louis Vuitton, penteados da moda e generosas recepções elísianas fazem "a alegria de todos"... É como estar de volta à epoca da rainha Maria Antonieta que, ao ver o populacho parisiense aglomerado diante do Palácio de Versalhes a gritar que não tinha mais pão, lança: "que comam brioches!".
28/Dezembro/2018
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O LADO OCULTO
ANTÍDOTO PARA A PROPAGANDA GLOBAL
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O MEDÍOCRE DESEMPENHO DAS UNIVERSIDADES PORTUGUESAS

2018-12-27
Alameda da Universidade, Lisboa
Jorge Fonseca de Almeida*, Especial para O Lado Oculto
A recente atribuição do Prémio Pessoa a Miguel Bastos Araújo, um académico de renome, o segundo investigador português mais citado de sempre, torna a colocar a questão da qualidade no nosso ensino superior quando se sabe que, tendo concorrido para uma vaga em Portugal, foi rejeitado por motivos fúteis (não ter indicado o nome dos país na carta de motivação, prática desconhecida no mundo académico internacional mas evidentemente indispensável no país das “cunhas”, em que o nome de família é mais relevante do que o mérito).
Naturalmente rejeitado em Portugal foi acolhido na Dinamarca, no Reino Unido e em Espanha, onde tem vindo a desenvolver o seu labor intelectual.
Vamos analisar comparativamente os resultados de Portugal procurando situar o nível da nossa educação superior. Analisamos os três mais prestigiados rankings universitários da atualidade: o do Times, o QS e o da Universidade de Xangai.
Podemos pensar em três grandes níveis: os dos países que colocam as suas universidades entre as 100 melhores do mundo em todos os rankings – aqui teremos o ensino de excelência. Os países que surgem logo de seguida, ie. os países que têm um ensino de segunda qualidade; e os restantes países, cujo ensino evidentemente não atinge a qualidade mínima.
Vejamos então onde se incluiu Portugal.
Ranking do Times 2019
O Times publica anualmente um ranking das melhores universidades de todo o mundo, o The World University Ranking, cuja classificação de 2019 já está disponível para consulta.
Apesar de algo enviesado em relação às Universidades anglo-saxónicas, não deixa de ser um bom mapa da qualidade geral das universidades dos vários países. O ranking lista as 200 melhores universidades e depois agrupa as seguintes 200 em grupos de 50, considerando não ser possível, a esse nível, uma identificação de qualidade mais individualizada. A partir das 400 agrupa-as em grupos de 100 de igual valia.

Universidade de Cambridge
A melhor universidade portuguesa – a Universidade do Porto – surge no grupo das 401 a 500. Um resultado que reflecte o desinvestimento português no ensino superior e na investigação. Um resultado decepcionante, tendo em conta os níveis de outros países.
Nos primeiros lugares, os Estados Unidos dominam garantindo mais de 40% das 100 melhores. Pequenos países como a Holanda, a Suíça, a Suécia, a Bélgica e a Finlândia conseguem também colocar as suas universidades nas 100 melhores (ver quadro 1)
Quadro 1
Número de Universidades nos 100 primeiros lugares do Ranking
por país

Interessante constatar a emergência da Ásia, com a China a incluir seis universidades no top 100 mas também o Japão, duas, a Coreia do Sul, duas, e Singapura, outras duas. Assim as melhores universidades repartem-se pela América do Norte, a Europa e a Ásia.

Universidade de Pequim
Portugal fica atrás de países como a Turquia, Arábia Saudita, os Emirados, a Índia, a Malásia, o Irão, a Jordânia e a generalidade dos outros países europeus como a Itália, a Espanha, a Estónia, o Chipre, a Áustria, a Noruega. Na América Latina, o Brasil apresenta também universidades melhor classificadas do que Portugal.
As nossas universidades depois de perderem a competição com os países europeus, estão também a perdê-la com as instituições académicas asiáticas e com as do Médio Oriente. Um perfil que não nos pode orgulhar, apesar de concordarmos com a afirmação de que estamos a melhorar. Mas o facto permanece que muitos outros conseguem melhorar mais depressa (ver Quadro 2).
A verdade é que muitas destas instituições que agora surgem à frente das universidades portuguesas não existiam sequer há algumas décadas atrás. Mas com uma política de contratação de professores estrangeiros, de atracção de um leque de estudantes talentosos, de uma diversidade de nacionalidades, de um equilíbrio entre pesquisa e ensino, foi possível a muitos países melhorarem o seu sistema universitário de forma rápida, ultrapassando aqueles que não quiseram ou não puderam investir no conhecimento.
A generalidade das universidades portuguesas foi avaliada, mas os resultados foram reveladores (Quadro 3). A melhor, a Universidade do Porto, quedou-se no grupo das “401 a 500” as restantes em grupos ainda mais afastados dos primeiros lugares, revelando a distância que precisamos de percorrer nas áreas do saber, da ciência e da investigação.
Se pensarmos que as elites políticas e económicas portuguesas tendem a frequentar a Universidade Católica Portuguesa, e ao verificarmos a sua posição em termos internacionais (grupo 601 a 800,) podemos perceber a qualidade da formação dessas pessoas.

Valores das propinas da U. Católica em Dezembro 2018
Quadro 2
Países não representados no top 100
Universidade Melhor Classificada


Quadro 3
Classificação Universidades Portuguesas


Não admira, pois, que cada vez mais jovens apostem na formação em universidades estrangeiras, o que funciona também como uma forte selecção negativa – os melhores e mais dotados alunos partem os restantes ficam em Portugal.
QS University Ranking 2019
Esta classificação é produzida pela Quacquarelli Symonds e é uma das mais respeitadas
É uma classificação é mais abrangente, estando mais países representados nos 100 primeiros. Surgem aqui a Argentina, a Rússia, a Dinamarca, a Nova Zelândia e Taiwan, mas os restantes países são os que são indicados pelo ranking do Times. O peso dos EUA é menor, descendo dos 41% para os 31%, e a China tem maior peso com 10 universidades nas 100 primeiras, situando-se imediatamente atrás dos EUA e do Reino Unido.
Aqui a Universidade do Porto surge um pouco melhor, na 328ª posição, mas claramente atrás de universidades da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, México), da Ásia e do Médio-Oriente (ver quadro 4).
Também neste ranking a Universidade Católica, berço das nossas elites, surge nos últimos lugares (751) (ver Quadro 5). A concentração de alunos provenientes das classes mais altas na Católica explica-se pela selectividade que pratica, baseada praticamente em exclusivo na capacidade de pagar propinas elevadas e na oferta de cursos inexistentes noutras universidades, como é o caso de Teologia.
Cursos mais técnicos, como as engenharias, foram recentemente encerrados por falta de alunos, pois os cursos não eram reconhecidos, dada a sua insuficiente qualidade, pela Ordem dos Engenheiros.

Universidade do Porto
 
Quadro 4
Países não representados no top 100
Universidade Melhor Classificada


Universidade Nacional da Colômbia

Quadro 5
Classificação Universidades Portuguesas


Academic Ranking of World Universities
A primeira e mais respeitada classificação de universidades. Elaborada pela Universidade Jiao Tong de Xangai.
Esta classificação confirma também a superioridade anglo-saxónic,a elegendo 46 universidades americanas, 8 britânicas, 6 australianas e 4 canadianas para o top 100.
É a que dá melhor nota a uma universidade portuguesa, ao colocar a de Lisboa no grupo 151-200. As outras, contudo, são relegadas para posições mais modestas (Quadro 6).

Quadro 6
Classificação das Universidades Portuguesas
Ranking de Jiao Tong 2018


Comparações
Apenas 13 países surgem simultaneamente no top 100 das três mais respeitadas classificações mundiais das universidades (Quadro 7). Estes países claramente possuem um ensino superior de excelência. Podemos identifica-los como uma primeira divisão selecta. Os Estados Unidos destacam-se e a sua predominância é indiscutível. O Reino Unido surge sistematicamente em segundo lugar. A China começa a aproximar-se dos melhores, ocupando uma terceira posição dividida com a Austrália, a Alemanha e a Holanda.

Universidade de Harvard
Um grupo de 4 países consegue incluir universidades no top 100 de pelo menos duas classificações: a Rússia, a Coreia do Sul, a Finlândia e a Dinamarca (Quadro 8). Podemos considerar que estes países também dispõem de um ensino superior de excelência.
Quadro 7
Países que surgem no top 100 das 3 classificações
Número de Universidades


Quadro 8
Países que surgem no top 100 de 2 classificações
Número de Universidades


Depois surgem 6 países que conseguem entrar para as 100 primeiras numa única classificação (Taiwan, Argentina, Israel, Noruega, Malásia, e Nova Zelândia) (Quadro 9).
Quadro 9
Países que conseguem chegar ao top 100 numa única classificação


Estes já não os podemos considerar ao mesmo nível dos anteriores. Vão incluir-se num segundo grupo de países que consistentemente obtém boas classificações. (Quadro 10)
Quadro 10
Países sempre melhor ou igual que Portugal em todas as classificações
Excluindo os que entram para o top 100 de qualquer das classificações

NP= Não Participa nesta avaliação.

Neste grupo, a par de países europeus, vemos surgir vários países árabes como o Líbano, a Arábia Saudita e os Emirados, confirmando o atraso português face a esta realidade emergente.
Ainda consideramos os países que ficam à frente de Portugal em duas das três classificações utilizadas (Quadro 11).
Quadro 11
Países melhor que Portugal em duas das três classificações


A Estónia, um pequeno país báltico, aparece a par com a Índia e a África do Sul neste grupo.
Ao conjunto destes países que consistentemente têm universidades melhores que Portugal mas não têm ainda um ensino de excelência considerámos uma segunda divisão. Estes 17 Estados constituem o grupo intermédio entre Portugal e os países mais avançados cientificamente (lista completa no Quadro 12).
Em resumo podemos identificar 17 países com um ensino de excelência, um segundo grupo de outros 17 estados que ainda não atingem a excelência, mas obtêm bons resultados, e finalmente os restantes onde Portugal se incluiu.
Quadro 12
Lista de países intermédios


Conclusões
Portugal, por falta de investimento e atraso acumulado ao longo de séculos, queda-se nas comparações internacionais sobre a qualidade do seu ensino superior como um país que oferece aos seus alunos um ensino de fraca qualidade.
As suas Universidades estão classificadas longe dos lugares cimeiros e muitas das mais prestigiadas no nosso país, como a Universidade Católica, encontram-se mesmo entre as piores do mundo.
Apesar do grande orgulho que ostentam e propagam, as universidades portuguesas não são reconhecidas como tendo a qualidade necessária para ombrear nos lugares intermédios das principais e mais respeitadas classificações universitárias mundiais.
Portugal, preso nas regras orçamentais impostas pela UE/Alemanha, manietado pela recusa das grandes fortunas de pagar impostos adequados, incapaz de taxar os fundos escondidos nos offshores, não consegue mobilizar os recursos necessários para o necessário investimento na educação e na ciência.
Mas mesmo com os artificialmente limitados recursos actuais seria possível, com uma menor bazófia e um menor orgulho em resultados medíocres, com uma maior humildade, fazer melhor.
Como? Através de uma melhoria consistente do ensino secundário, de uma aposta na meritocracia (com critérios de selcção de alunos e docentes mais transparentes), e do envio de um maior número alunos aprender no estrangeiro nos países de ensino de excelência, para que possam aprender e regressar ao país. Com estas e outras medidas simples Portugal poderia aspirar a um lugar mais condigno na comunidade académica internacional.
Poderíamos, quem sabe, aspirar a ultrapassar o Líbano ou a Republica Checa. Mas para isso é necessária uma ambição que não parece compaginável com as actuais políticas e nem com as aspirações da elites económicas e governamentais.
Num mundo em que a técnica e a ciência assumem cada vez mais um papel importante na cadeia produtiva, a falta de preparação académica das novas gerações é sinal que o país continuará a regredir no seu posicionamento na divisão internacional do trabalho.
*Economista, MBA

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

nício / Artigos / Outras Análises | Ver Mais / Economia / A crise capitalista e a queda tendencial da taxa de lucro – Parte 1

A crise capitalista e a queda tendencial da taxa de lucro – Parte 1

Importante texto que retoma fundamentos da teoria econômica marxista para considerar o real peso da Lei da Tendência da Queda da Taxa de Lucro na explicação da atual crise capitalista.
[Este artigo foi originalmente publicado na edição de verão de nossa revista teórica In Defence of Marxism] Na última edição da revista In Defence of Marxism polemizamos contra a teoria do “subconsumo” como explicação da crise capitalista. Nesta edição, queremos nos deter sobre a lei marxista da tendência à queda da taxa de lucro.
Ultimamente, particularmente nos círculos acadêmicos, tem surgido uma confusão considerável sobre a tendência à queda da taxa de lucro. Esta confusão decorre de uma perspectiva unilateral, não dialética, que isola um elemento da teoria econômica de Marx e exagera seu significado muito além de sua intenção.
Durante os anos 1960, a defesa das ideias de Marx sobre a queda da taxa de lucro contra os críticos burgueses foi sem dúvida necessária e progressista. Hoje em dia, contudo, se desenvolveu uma espécie de paixão passageira, uma verdadeira obsessão de acadêmicos “marxistas” que carecem de qualquer conhecimento da dialética e são incapazes de ver o processo como um todo.
Nesses círculos, tornou-se moda reduzir toda a teoria da crise de Marx a um só elemento. O que Marx considerava como uma tendência (ele era muito cuidadoso ao usar este termo) foi elevada à categoria de princípio absoluto, a uma espécie de Pedra Filosofal da economia que aparentemente pode explicar qualquer coisa. Se as coisas fossem tão simples assim, perguntaríamos chocados porque Marx teve o trabalho de escrever três (na realidade, quatro) volumosos tomos para explicar o funcionamento do capitalismo.
Na realidade, a crise foi causada por uma série de fatores interagindo entre si, sendo que alguns deles são fundamentais, outros secundários, e um deles pode ser a queda da taxa de lucro. Contudo, para alguns, isto se tornou uma nova ortodoxia, a única razão da crise capitalista, mesmo ao ponto de reivindicarem serem capazes de prever quando, onde e porque uma crise eclode. Aparentemente, armados com o conhecimento das taxas de lucro, podemos prever quase tudo. Quando os lucros se elevam, estamos em um boom; quando os lucros vêm abaixo, estamos em uma recessão! Mas as coisas não são tão simples e mecânicas. A recuperação atual das taxas de lucro está acompanhada pelo aprofundamento da crise e pelo colapso da demanda na Europa. Isto, por sua vez, produziu uma desaceleração global, especialmente na China, Japão, Índia e Coréia do Sul. Isto é um reflexo da crise orgânica do capitalismo, como a que vivemos nos anos 1930.
Curiosamente, mesmo Marx, com anos de estudo por trás dele, foi incapaz de prever crises com precisão. Não era este o método ou a intenção de Marx. Pelo que parece, ele deveria ter esperado cem anos para ser instruído pelos “Profetas da Queda da Taxa”. Lamentavelmente, contudo, toda tentativa de prever crises capitalistas através desta panaceia acerta longe do alvo, incluindo esta novíssima crise. Alguns dizem ter previsto a recessão de 2008, mas vêm fazendo esta previsão todos os anos durante os últimos 20 anos! Tais “previsões” se vendem a uma dúzia por um centavo. Desnecessário dizer que um relógio parado marca corretamente a hora duas vezes a cada 24 horas.
Hoje, vemos o lamentável espetáculo de diferentes escolas acadêmicas “marxistas”, criadas para discutir sobre sua querida taxa de lucro, baseadas em suas interpretações e cálculos. Mas, como disse Mark Twain, “há mentiras, mentiras descaradas e estatísticas”. Como os escolásticos medievais argumentando sobre o sexo dos anjos, eles brigam a respeito das minúcias das estatísticas para provar que eles estão corretos, e não o outro lado. Desnecessário dizer que não nos tornamos mais sábios após este “debate” do que antes dele. Toda esta coisa é totalmente estéril e reveladora de uma abordagem mecânica, não dialética, deste e de outros temas.
Tentemos colocar a ideia de Marx em seu próprio contexto. Embora a lei da tendência da taxa de lucro de declinar fosse importante para Marx, nem ele nem Engels a consideravam como a principal causa da crise ou como o foco da economia marxista.
A teoria do valor-trabalho
No primeiro tomo de O Capital, Marx mostra como a mais-valia é produzida. Ele explica que o capitalista encontra no mercado uma mercadoria especial, que, diferentemente de todas as outras mercadorias, é fonte de valores superiores ao seu próprio valor. Esta mercadoria é a força de trabalho. Marx a definiu como o “conjunto das capacidades mentais e físicas que existem em um ser humano” [1]. A compra e o uso destas “capacidades mentais e físicas”, o músculo físico e mental do processo de trabalho, constitui a exploração da classe trabalhadora. Em contraste, o trabalho – ou o processo de trabalho – é o ato que adiciona valor às matérias-primas.
Após comprar a força de trabalho por um salário destinado a manter o trabalhador ou trabalhadora e sua família, o capitalista trata de colocar suas mãos alugadas para trabalhar. Embora o trabalhador tenha um contrato para trabalhar por, digamos, oito horas, ele cobre o valor de seu salário em talvez quatro horas. Este primeiro período, Marx o descreve como tempo de trabalho necessário. Mas, uma vez coberto o valor de seu salário, ele não para de trabalhar e continua a fazê-lo até o final de seu turno de oito horas. É neste período extra que ultrapassa a parte necessária, que o trabalhador produz a mais-valia para o capitalista, e é descrito por Marx como tempo de trabalho excedente. Este é trabalho não pago e é de onde surgem os lucros do capitalista.
O valor das matérias-primas e da energia utilizadas na produção da mercadoria não cria um valor novo, simplesmente transferem o seu valor para o novo produto. Isto inclui o uso e o desgaste das máquinas, que somente de forma gradual transferem seu valor, o que é conhecido como depreciação. O trabalho (combinado à natureza) é a fonte de todo valor novo, incluindo a mais-valia. Uma fábrica com máquinas e matérias-primas, se deixada ociosa, simplesmente enferruja e eventualmente ruirá. Contudo, tão logo o trabalho humano é aplicado a estas coisas, novas mercadorias e novos valores são criados. Esta é a fonte, e a única fonte da mais-valia. Uma máquina simplesmente eleva a produtividade do trabalho humano e permite que a força de trabalho seja consumida com maior intensidade.
Todo o valor existente decorrente de trabalho anterior contido nas matérias-primas etc., é transferido para as novas mercadorias. A isto Marx chama de “trabalho morto”, em oposição ao novo valor adicionado, que Marx descreve como “trabalho vivo”. Ele compara aquele a um vampiro sugador de sangue. “Capital é trabalho morto”, explica Marx, “como um vampiro, somente vive se sugar trabalho vivo, quanto mais vive, mais trabalho suga” [2].
A força motriz do capitalismo é a produção de mais-valia. O capitalista está determinado a espremer até a última gota de lucro do trabalho não pago da classe trabalhadora. Ele faz isto através de uma combinação de meios: prolongando a jornada de trabalho, aumentando a velocidade das máquinas, introduzindo máquinas poupadoras de trabalho, através da racionalização, de acordos de produtividade, de novos turnos, de estudos de tempo e movimento, servindo-se de novas tecnologias etc. Estes métodos tornaram-se familiares aos trabalhadores, particularmente nos últimos 30 anos, aproximadamente.
O capital total investido pelo capitalista foi considerado por Marx como se segue. O capital constituído de meios de produção, matérias-primas, energia etc., é considerado capital constante, que simplesmente transfere seu valor para as novas mercadorias. O valor que eles transferem é fixo. Entretanto, o capital representado pela força de trabalho (salários) é considerado capital variável, enquanto fonte de todo valor novo. A quantidade de valor que ele transfere não é fixa, mas expansiva. Consequentemente, o capital total pode ser representado como c + v, onde c é a parte constante e v é a variável. Segue-se que o valor total de todas as mercadorias é composto de c + v + s, onde s representa a mais-valia. Enquanto a mais-valia estiver “aprisionada” dentro da mercadoria, o capitalista somente pode realizar este valor excedente quando as mercadorias são vendidas. Dessa forma, a mais-valia é criada somente na produção, e realizada somente na troca, no mercado.
Se a jornada de trabalho é dividida entre trabalho necessário e trabalho excedente, a taxa de mais-valia é a razão entre as duas porções da jornada de trabalho. Quanto maior a porção excedente, maior a taxa. É exatamente a mesma razão entre o valor excedente e o capital variável, quer dizer s/v. Em termos simples, a taxa de mais-valia é a taxa de exploração do trabalho pelo capital, ou dos trabalhadores pelo capitalista. A classe capitalista força a classe trabalhadora a executar mais trabalho do que se requer para cobrir seus meios de subsistência, produzindo assim mais-valia.
Naturalmente, os capitalistas tentam dissimular esta exploração. Dizem que compram o trabalho dos trabalhadores em vez de sua força de trabalho. Mas isto não é verdade. Os capitalistas não empregariam trabalhadores se não pudessem obter um lucro, e o trabalho não pago dos trabalhadores é a fonte desse lucro. Enquanto a exploração era transparente sob o feudalismo, quando o servo trabalhava a terra do senhor de graça por tantos dias, sob o capitalismo, o trabalho excedente e o trabalho necessário, realizados pelo trabalhador, não se separam no tempo e no espaço. Portanto, não é tão óbvio.
“A diferença essencial entre as várias formas econômicas da sociedade, entre, por exemplo, uma sociedade baseada no trabalho escravo e uma baseada no trabalho assalariado”, explicou Marx, “descansa somente no modo pelo qual este trabalho excedente é em cada caso extraído do produtor real, o trabalhador” [3].
Naturalmente, estas categorias são rejeitadas pelos economistas burgueses, cujo papel é o de mascarar a exploração existente. Assim, os conceitos de Marx são um anátema para eles.
Através da concorrência, o capitalista é forçado a investir para produzir mercadorias mais baratas que seus rivais. O capital é, portanto, um valor autoexpansível. A acumulação é uma lei obrigatória do capitalismo. O capitalismo se tornou “acumulação para a acumulação”, como explicou Marx. “Produção para a produção”. Aquelas indústrias onde a produtividade do trabalho fica para trás da média são excluídas do negócio por aquelas que usam os métodos mais atualizados. Desta maneira, a introdução de maquinaria aumenta a produtividade do trabalho e reduz o tempo de trabalho necessário (e, através disso, aumentando o tempo de trabalho excedente). Isto permite àqueles que introduziram novas tecnologias vender seus produtos acima de seu valor individual, mas inferior ao custo médio, e, através disso, obtendo superlucros.
A concorrência leva à concentração e centralização do capital. Este processo resulta em maiores e maiores fábricas com os mais modernos equipamentos e tecnologia. Enquanto que, no passado, a empresa gigante da química ICI iria gastar dois milhões de libras por uma fábrica, atualmente pagaria em torno de 600 milhões de libras. Esta acumulação de capital é uma característica fundamental do capitalismo; e constitui missão histórica do capitalismo desenvolver as forças produtivas. A força motriz da produção capitalista não é a satisfação das necessidades humanas, mas a produção de valor excedente a um ritmo sempre crescente, grande parte do qual deve ser acumulado e incorporado em novos meios de produção.
Esta pressão para introduzir máquinas que permitem poupar trabalho conduz, no entanto, a uma diminuição relativa do capital variável (força de trabalho) em comparação ao capital constante (meios de produção, matérias-primas etc.). Embora haja um relativo decréscimo em força de trabalho para aquele que investiu em capital constante, tal fato, no entanto, resulta em mais investimento sendo colocado ao alcance de cada trabalhador empregado. Em última instância, contudo, a quantidade de mais-valia obtida pelos capitalistas depende de duas coisas: da taxa de mais-valia e do número de trabalhadores empregados.
Evidentemente, a introdução de maquinaria tende a reduzir o número de trabalhadores e, dessa forma, muda a razão entre capital variável e capital constante, a relação entre trabalho morto e vivo. Marx descreveu este processo como uma elevação da composição orgânica de capital. Isto inevitavelmente conduz, se tudo permanece igual, a um declínio da taxa de lucro. “Daí, a aplicação de maquinaria para a produção de mais-valia”, explica Marx, “implica uma contradição que lhe é inerente” [4].
Os Grundrisse
Marx não foi o primeiro a descobrir a tendência da taxa de lucro a cair. Os fundadores da economia política clássica, mais notavelmente Adam Smith e David Ricardo, já tinham tratado disto. Ricardo, em particular, ficou muito preocupado sobre suas implicações. Contudo, suas explicações eram deficientes e rudimentares.
“De acordo com a teoria da renda de Ricardo, a taxa de lucro tem uma tendência a cair, em consequência da acumulação de capital e do crescimento da população, porque os necessários meios de subsistência aumentam em valor, ou a agricultura se torna menos produtiva.
“Consequentemente, a acumulação tem a tendência de deter a acumulação, e a lei da queda da taxa de lucro – desde que a agricultura se torne relativamente menos produtiva enquanto se desenvolve a indústria – pende ameaçadoramente sobre a produção burguesa. Por outro lado, Adam Smith considera a queda da taxa de lucro com satisfação. A Holanda é o seu modelo. Ela obriga a maioria dos capitalistas, exceto os maiores, a empregar seu capital na indústria, em vez de viver de juros, e é, portanto, um estímulo à produção. O pavor desta tendência perniciosa assume formas tragicômicas entre os discípulos de Ricardo” [5].
“É uma lei que, apesar de sua simplicidade, nunca antes foi entendida e, menos ainda, conscientemente articulada”, explicou Marx. Ricardo em particular mistura taxa de mais-valia com taxa de lucro. Ele fez a queda da taxa de lucro dependente da chamada lei de rendimento decrescente da terra, o que levou Marx a gracejar, “Ele [Ricardo] foge da economia em busca de refúgio na química orgânica” [6].
Coube a Marx proceder a um estudo aprofundado desta lei – ou tendência, como ele preferia chamá-la. Em certo ponto, Marx descreve esta tendência da taxa de lucro a cair em seu livro de notas como “em todos os aspectos, a mais importante lei da economia política moderna e a mais essencial para se entender as relações mais difíceis. É a lei mais importante do ponto de vista histórico” [7].
Esta frase é constantemente repetida pelos entusiastas da TTLC [Tendência da Taxa de Lucro a Cair] como prova positiva de que Marx considerava este o mais importante elemento em sua teoria econômica. Contudo, esta corajosa afirmação não resiste até mesmo ao exame mais superficial. Em primeiro lugar, se Marx realmente acreditava que esta era a questão mais importante, ele certamente a teria enfatizado repetidamente. No entanto, além dos inéditos Grundrisse, a expressão só veio a ser usada novamente em outro trabalho inédito, chamado Manuscritos Econômicos de 1861-63. Estas são as únicas duas referências onde Marx usa esta expressão em todos os 50 volumes das Obras Completas de Marx e Engels.
Ela não aparece em nenhum dos trabalhos publicados e não há menção dela em nenhum dos três tomos de O Capital ou das Teorias da Mais-Valia. Sequer é mencionada na volumosa correspondência de Marx e Engels. Se Marx tivesse descoberto que a tendência da taxa de lucro a cair fosse “a mais importante lei da moderna economia política”, pode-se muito bem perguntar por que ele nunca mencionou este momento de “eureca” em qualquer carta de sua detalhada correspondência com Engels, seu colaborador mais próximo, ou a qualquer outro sobre este tema.
Os Grundrisse, uma coleção de cadernos de anotações apenas rascunhadas, somente foram publicados depois da morte de Marx. Eles contêm somente, digamos assim, um “primeiro tratamento” de suas ideias. Estas ideias ainda não estavam plenamente trabalhadas e foram escritas somente como anotações para clarificação própria. Por causa disto, Marx aparentemente se contradiz sobre a tendência da taxa de lucro a cair. Apenas poucas páginas depois de se referir à mesma como “a mais importante” lei, ele logo a descreve como “a segunda grande lei”, entre as “duas leis imediatas”.
A primeira lei é por ele descrita assim: “a mais-valia expressada como lucro sempre aparece como uma proporção menor do que a mais-valia em sua realidade imediata verdadeiramente equivale”. Ele sublinha esta frase, para salientar que a taxa de lucro é sempre menor que a taxa de mais-valia. Em consequência, “a taxa de lucro nunca expressa a verdadeira taxa de exploração do trabalho pelo capital, e sempre é uma relação muito menor” [8].
A cadente taxa de lucro é logo referida como a segunda grande lei. Estas aparentes contradições somente podem ser explicadas pelo fato de que os Grundrisse não eram a expressão final das teorias econômicas de Marx, mas um trabalho em realização. As ideias de Marx ainda não estavam suficientemente cristalizadas. Suas ideias finais sobre o tema foram expressas mais tarde em O Capital dentro de uma forma mais rigorosa. Mas, em O Capital, a referência a “mais importante lei da moderna economia política” é abandonada totalmente. Em outras palavras, é um comentário isolado, que foi tirado do contexto, para provar algo que não pode ser provado. Foi uma observação casual que Marx introduziu em seus escritos preparatórios de O Capital. Estes últimos representam seus pensamentos prévios sobre o tema, mais tarde modificados por ele.
Embora os Grundrisse contenham ideias muito valiosas sobre muitas questões, não podem ser considerados como representando a expressão final das teorias econômicas de Marx. Estas estão contidas em O Capital, particularmente no terceiro tomo, onde a teoria da queda da taxa de lucro é explicada com grandes minúcias e detalhes. Tirar do contexto uma consideração isolada que Marx fez em seu caderno de rascunhos e tentar elevá-la acima da versão final da teoria no terceiro tomo de O Capital não é cientificamente rigoroso ou particularmente honesto.
O Capital de Marx
No período em que Marx escreve O Capital, ele fala da lei não como a mais importante, mas, preferentemente, como sendo de “grande importância” para a produção capitalista [9]. A ênfase mudou claramente.
Apesar de sua indubitável importância, dos 52 capítulos do tomo III de O Capital, somente três são dedicados à tendência da taxa de lucro a cair. Mais uma vez, este não é propriamente o espaço que seria de se esperar para se colocar “a lei mais importante da moderna economia política”. Se Marx a considerasse como tal, teria escrito um livro inteiro sobre o tema. Em vez disso, ele em um capítulo aborda “a própria lei”, seguido por outro capítulo sobre os “fatores contrários”, e finalmente de mais um capítulo sobre “O Desenvolvimento das Contradições Internas da Lei”.
Ele explica a tendência no III tomo de O Capital através do seguinte exemplo:
“Com salários e jornada de trabalho dados, um capital variável, por exemplo, de 100, representa determinado número de trabalhadores postos em movimento; é o índice desse número. Por exemplo, sejam 100 libras esterlinas o salário para 100 trabalhadores, digamos por uma semana. Se esses 100 trabalhadores executam a mesma quantidade tanto de trabalho necessário quanto de trabalho excedente, se, por conseguinte, eles trabalham diariamente tanto tempo para si próprios, isto é, para a reprodução de seu salário, quanto para o capitalista, isto é, para a produção de mais-valia, então seu produto global seria = 200 libras esterlinas e a mais-valia gerada por eles montaria a 100 libras esterlinas. A taxa de mais-valia m/v seria = 100%. Essa taxa de mais-valia se expressaria, contudo, como vimos, em taxas de lucro muito diferentes, de acordo com o diferente volume do capital constante c e, com isso, do capital global C, já que a taxa de lucro é = m/C. Sendo a taxa de mais-valia de 100%, temos:
            Se c = 50, v = 100, então a taxa de lucro é = 100/150 = 66 2/3 %;
            Se c = 100, v = 100, então a taxa de lucro é = 100/200 = 50%;
            Se c = 200, v = 100, então a taxa de lucro é = 33 1/3%;
            Se c = 300, v = 100, então a taxa de lucro é = 25%;
            Se c = 400, v = 100, então a taxa de lucro é = 20%.
“A mesma taxa de mais-valia com grau constante de exploração do trabalho expressar-se-ia assim em uma taxa decrescente de lucro, porque com seu volume material cresce também, ainda que não na mesma proporção, o volume de valor do capital constante e, com isso, o do capital global” [10].
Em outras palavras, uma composição orgânica crescente de capital, assumindo-se que a taxa de exploração permanece a mesma, deve produzir uma queda na taxa de lucro. Esta tendência é permanente sob o capitalismo enquanto o sistema se expande e a produtividade do trabalho aumenta. Em outras palavras, o decréscimo relativo do capital variável em relação ao capital constante é outra expressão para uma maior produtividade do trabalho. Cada capitalista se esforça por aumentar a produtividade de sua força de trabalho, ou seja, por aumentar a quantidade produzida em dado período de tempo. Se isto é assim, por que não há uma queda permanente da taxa de lucro? Marx explica que a TTLC é uma “lei de dois gumes” que produz suas próprias tendências contrárias, que, sob certas condições, podem até mesmo resultar na elevação da taxa de lucro.
A tendência também pode produzir um declínio na taxa de lucro com um crescimento simultâneo da massa de lucro. Por exemplo, um capital de um milhão de libras esterlinas a uma taxa de 40% de lucro produz 400 mil libras, mas um capital de cinco milhões de libras esterlinas a 8% também produz 400 mil libras – em igualdade de condições. Embora os capitalistas se preocupem com a queda da taxa de lucro, e vão fazer de tudo para combatê-la, ela é manejável enquanto a massa de lucro está aumentando. Este é o ponto vital a entender. A massa absoluta de lucro pode continuar a crescer apesar da tendência da taxa de lucro a cair como resultado de mais elevados investimentos de capital. Paradoxalmente, as mesmas causas que produzem um crescimento na massa de lucro também produzem a tendência de declínio da taxa de lucro. No longo prazo, os capitalistas são pegos em um círculo vicioso.
Como Marx explicou: “as mesmas causas que produzem uma queda tendencial da taxa de lucro geral condicionam uma acumulação acelerada do capital e, portanto, crescimento da grandeza absoluta ou da massa global de trabalho excedente por ele apropriado (mais-valia, lucro). Como tudo na concorrência e, portanto, na consciência dos agentes da concorrência, se apresenta invertido, assim também essa lei, quero dizer, essa correlação íntima e necessária entre duas coisas que aparentam se contradizer.
Ele prossegue para acrescentar, “é evidente que, dentro das proporções acima desenvolvidas, um capitalista que disponha de grande capital obtém maior massa de lucro do que um pequeno capitalista que, aparentemente, obtém lucros elevados. O exame mais superficial da concorrência também nos mostra que, sob certas condições, quando o capitalista maior deseja ganhar espaço no mercado e suprimir os capitalistas menores, como nos tempos de crise, ele usa isto na prática, isto é, ele baixa propositadamente sua taxa de lucro para eliminar os menores da arena” [12].
A tendência sempre se impõe?
A tendência não significa uma queda na massa absoluta de exploração do trabalho. De fato, historicamente ela aponta para o aumento da escala de produção com uma elevação da força de trabalho e para a produção se tornar mais concentrada em menos, mas maiores unidades. A concentração de capital é de longe maior hoje do que nos tempos de Marx, mas a classe trabalhadora nunca foi antes tão numerosa. “A queda na taxa de lucro não resulta de um declínio absoluto do componente variável do capital, mas simplesmente de um declínio relativo, de seu declínio em comparação com o componente constante” [13].
Não obstante, a queda da taxa de lucro não é absoluta e aplicável para todos os períodos. Os capitalistas estão constantemente à procura de caminhos em torno dela. Na prática, a taxa de lucro não cai sempre, mas pode realmente subir durante um período de tempo considerável, como já testemunhamos nos passados trinta anos, o que não contradiz o processo como alguns dos supostos marxistas parecem temer. Devemos nos basear não somente na teoria, mas também nos fatos e em como as diferentes tendências e as tendências opostas funcionam na prática. Ela é uma tendência e não uma lei, como enfatizou Marx. “A taxa de lucro poderia até mesmo se elevar”, declara Marx, “se uma elevação na taxa de mais-valia for acompanhada de uma significativa redução no valor dos elementos do capital constante, e do capital fixo em particular” [14]. Foi isto o que aconteceu nas últimas três décadas, mas isto não pode durar indefinidamente, ou “no longo prazo”, para usar as palavras exatas de Marx.
Contudo, Marx assinala que o problema é mais precisamente explicar porque a taxa não tenha caído muito mais e mais rapidamente. “Influências neutralizantes devem estar em funcionamento”, ele explica, “checando e cancelando os efeitos da lei geral e dando-lhe simplesmente o caráter de uma tendência, e é por esta razão que temos descrito a queda da taxa de lucro com uma queda tendencial” [15]. De fato, Marx também assinala que todas as leis econômicas têm a natureza de tendência, afetadas por forças que empurram em diferentes direções. Ele continua, então, para explicar os fatores que servem para contrabalançar a lei da queda da taxa de lucro e para transformá-la em uma tendência, o que, aliás, aconteceu em período recente.
A primeira tendência neutralizante explicada por Marx é uma mais intensa exploração do trabalho, um aumento da mais-valia relativa. Isto tem acontecido em escala massiva ao longo do último período. Na Grã-Bretanha, a indústria transformadora alcança o mesmo nível de produção com um milhão de trabalhadores a menos. Isto reflete a pressão sobre a classe trabalhadora, não somente na Grã-Bretanha, mas em todo o mundo.
A participação do trabalho na renda nacional vem declinando em todas as principais economias capitalistas (OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) desde 1980. A defasagem tem sido particularmente grande nos EUA, onde a produtividade cresceu 83% entre 1973 e 2007, enquanto os salários reais médios aumentaram apenas 5%. A parte do rendimento nacional que vai para os salários caiu aos seus níveis mais baixos desde que estes registros começaram a ser feitos depois da II Guerra Mundial.  A produção de mais-valia relativa é um processo de barateamento progressivo das mercadorias, com os novos produtos contendo menos valor que antes. Uma maior massa de valores de uso se expressará em um valor total menor. Alternativamente, a jornada de trabalho pode ser prolongada, resultando em maior mais-valia absoluta. A jornada semanal foi aumentada em todos os lugares no último período. A classe trabalhadora está sendo pressionada pela desqualificação profissional, pela introdução do trabalho em tempo parcial, pela produção just-in-time [Modelo de produção criado no Japão e que consiste em integrar componentes que chegam à linha de montagem com hora marcada, possibilitando que se perca o mínimo com o acúmulo de estoques e matérias-primas], pelos contratos de período curto, e outras medidas regressivas para extrair ainda mais trabalho não pago da classe trabalhadora. Se a taxa de mais-valia é aumentada, aumenta-se a massa de mais-valia, se tudo o mais permanece igual. Isto então serve para incrementar a taxa de lucro. “Isto não anula a lei geral”, ele explica. “Mas faz com que esta lei funcione mais como uma tendência, isto é, como uma lei cuja realização absoluta é postergada, atrasada e enfraquecida por fatores neutralizantes” [16].
A queda dos salários abaixo de seu valor é outro fator que serve para contrabalançar uma taxa de lucro cadente. Mais uma vez isto se tornou uma característica particularmente no mundo em desenvolvimento onde o trabalho é explorado sem limites. A exploração do trabalho feminino e de crianças faz parte deste processo. Adicionalmente, o barateamento das mercadorias, que foi uma característica importante durante o último período, serve para baratear o custo da força de trabalho.
Marx agora se refere ao barateamento do capital constante como um fator chave neste processo. Se a taxa de lucro tende a cair com uma maior proporção investida em capital constante em relação ao capital variável, então um barateamento do capital constante servirá para contrabalançar a queda da taxa de lucro. A elevação da produtividade do trabalho serve para baratear o capital constante transferido ao produto na transação, apesar do aumento constante de seu volume. Dessa forma, a mesma influência que tende a causar a queda na taxa de lucro serviria para moderar esta tendência. O valor do valor constante dependeria de qual destas duas tendências é a mais forte. Se a produtividade do trabalho dobra, então o valor do capital constante se reduz à metade. Se a produtividade é mais baixa do que a elevação do valor do capital constante, haverá uma queda na taxa de lucro. Então, necessitamos ver o efeito líquido destas forças conflitantes. Na prática, contudo, nos últimos 30 anos, temos visto uma queda dramática no valor dos componentes do capital constante, especialmente com o avanço de novas tecnologias. Os preços em queda de chips de computador, por exemplo, barateou os computadores, que são parte do capital constante usados extensamente na economia. A China tem sido uma fonte de mercadorias baratas que inundam o mercado mundial. Estas mercadorias têm tomado a forma crescente do capital constante, e ajudaram a aumentar a taxa de lucro nas últimas três décadas.
O excesso relativo da população é outro fator. Podemos ver o crescimento em massa do desemprego em todos os cantos, que agora se tornou uma característica permanente. Isto serviu para rebaixar os níveis salariais e para baratear o custo da força de trabalho, através do aumento do tempo de trabalho excedente para os capitalistas. A redução dos “custos salariais” foi a principal característica do último período, enquanto os capitalistas buscavam elevar seus lucros.
O comércio externo é também um meio de baratear os elementos do capital constante bem como para introduzir mercadorias baratas no exterior, o que mais uma vez serve para reduzir o custo da força de trabalho. Foi por isto que os capitalistas no século XIX lutaram para abolir as Leis dos Cereais que impediam a importação do trigo barato que poderia reduzir o custo do pão. O custo de vida mais baixo para os trabalhadores permitiria aos capitalistas deprimir os salários, aumentando seus lucros. O comércio exterior também poderia baratear os elementos do capital constante.
O investimento de capital em países estrangeiros, onde a composição orgânica de capital é mais baixa, também renderá uma mais elevada taxa de lucro e aumentará a taxa de lucro média dos que se engajam no comércio externo. “Capitais investidos no comércio exterior podem proporcionar taxa de lucro mais elevada, porque aqui, em primeiro lugar, se concorre com mercadorias que são produzidas por outros países com menores facilidades de produção, de forma que o país mais adiantado vende suas mercadorias acima de seu valor, embora mais barato do que os países concorrentes”, explica Marx [17]. “O país privilegiado recebe mais trabalho em troca de menos”, continua Marx, uma referência aos termos desiguais do comércio. O proveito é o mesmo para os capitalistas que introduzem nova maquinaria que lhe permite vender abaixo de seus concorrentes, mas tirar um lucro excedente. Esta noção de trabalho externo barato aponta para uma teoria do imperialismo, que mais tarde foi desenvolvida por Lênin.
A expansão do mercado mundial (“globalização”) permitiu um aumento massivo no investimento, na produção e nas vendas. Houve um aumento massivo na exportação de capital. O colapso da União Soviética e a restauração do capitalismo na Rússia, na Europa do Leste e na China proporcionaram ao capitalismo novos mercados e áreas de exploração. Isto permitiu que cerca de dois bilhões de pessoas entrassem no mercado mundial capitalista. A “liberalização” dos países em desenvolvimento, incluindo a privatização dos serviços públicos básicos, também abriu possibilidades para novos investimentos, e todos eles permitiram aumentar a taxa de lucro durante este período.
O último ponto que Marx menciona, mas afirmando que carece de uma análise mais detalhada, é que, com o desenvolvimento do capitalismo, “uma porção do capital é considerada simplesmente juro do capital” [18]. Ele entende que isto não afeta o nível da taxa geral de lucro enquanto os capitalistas estiverem satisfeitos com uma taxa de juro mais baixa, por exemplo, investimentos em ferrovias, os quais não entram na taxa geral de lucro.
Em outras palavras, estamos lidando apenas com uma tendência que se manifesta em toda a história do desenvolvimento capitalista. “A lei funciona, portanto, simplesmente como uma tendência, cujo efeito é decisivo somente sob certas e particulares circunstâncias e por longos períodos”, explica Marx [19]. Dessa forma, pode haver períodos longos, mesmo décadas, em que a tendência da taxa de lucro a cair é cancelada pelas tendências neutralizadoras acima citadas. Estas podem deter todo o processo e mesmo revertê-lo, mas não indefinidamente. Eventualmente, esta tendência de queda irá se reafirmar e agir como uma barreira ao desenvolvimento do capitalismo.
A TTLC na prática
Em seu livro, A Crise Atual, escrito em 1987, Mark Glick publicou os seguintes números da taxa de lucro nos EUA no longo prazo:
            1899 – 22%
            1914-18 – 18%
            1921 – 18%
            1929 – 12%
            1932 – 2%
            1939 – 7%
            1945 – 23%
            1948 – 17%
            1965 – 18%
            1983 – 10%
Então, de um ponto de vista histórico, vemos que, deixando de lado as inevitáveis flutuações cíclicas, a taxa de lucro em 1983 foi menor do que há cem anos. Contudo, para todo o período esta tendência inverteu. No período pós-guerra, a taxa de lucro começou a cair sensivelmente de meados dos anos 1960 até seu ponto mais baixo em 1983. Em seguida, com os furiosos ataques contra a classe trabalhadora, acompanhados de todas as espécies de tendências neutralizantes descritas acima, a taxa de lucro começou a ascender, com várias subidas e descidas que duraram aproximadamente 30 anos, até a crise que emergiu em 2008.
FIM DA 1a PARTE

Traduzido por Fabiano Adalberto

António Borges Coelho. “Eu não sou responsável pelo que os portugueses fizeram nos Descobrimentos”

Bruno Gonçalves Ricardo Cabral Fernandes 26/12/2018 21:47
Aos 20 anos, António Borges Coelho abandonou a universidade para se dedicar à luta contra a ditadura de Salazar
Na sua casa repleta de livros, de história, filosofia, arte ou economia, o historiador e professor catedrático António Borges Coelho não abandona o papel e a caneta para continuar a fazer historiografia. Está a escrever o sétimo volume da sua obra “História de Portugal”, mas sabe que. mesmo depois de terminada. continuará incompleta, tal como todas as suas obras anteriores. Uma dessas obras, “Raízes da Expansão Portuguesa”, reeditada agora pela Caminho, valeu-lhe uma ida à sede da PIDE em 1964, onde foi interrogado e ameaçado. Os seis anos anteriores passou-os na prisão, entre os quais seis meses em solitária. No isolamento, sem luz e sem nada para fazer, o combatente antifascista explica que “só há a memória”, que vai “a horizontes completamente inconcebíveis”. “Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada”, recorda o historiador.
Como vê as obras de uma vida de trabalho serem agora reeditadas?
Vejo-as como incompletas. Não perdi ainda a força e queria continuar pelo menos a escrita do sétimo volume da “História de Portugal”.
Já tem data para sair?
Tem data para se continuar a escrever.  Por um lado, também sinto que há alguma realização feita, mas cabe aos outros apreciar e não a mim próprio.
Porque é que as suas obras estão incompletas?
São sempre incompletas. Qualquer autor por mais que escreva e vá ao fundo das coisas deixa sempre um monte infinito… Então em História! Quando se faz uma síntese de um período ou época, ficam de fora milhares de documentos e de informações. Agora, é tanto ou mais válida quanto se escolheu as informações mais significativas, aquelas que dizem mais à evolução social e política e à história económica.
Quais os critérios que usa para selecionar essa informação?
É muito trabalho. Isto é, há épocas em que o material escasseia e há outras em que o material é quase infinito. Então, na época contemporânea é praticamente infinito. Tudo é matéria-prima: são os jornais, a história da ciência, tudo. Agora, em períodos anteriores, como na pré-história, um caco ou um fóssil de um humano são uma maravilha [risos]. É de facto uma descoberta excecional que nos leva a pensar e a imaginar - não inventar - como seria a vida do homem primitivo. Noutras épocas, como a da Idade Média, não há muito material.
O seu trabalho é maioritariamente sobre a Idade Média e Época Moderna, quais as fontes que usa e seleciona?
A Torre do Tombo é um manancial, mas não só. Existem arquivos distritais em várias cidades e vilas portuguesas que têm material importante. Não é preciso ler todos os documentos, porque se repetem. É preciso encontrar documentos significativos que tenham uma carga muito grande, mas além disso há milhares de documentos publicados. É preciso lê-los - não apenas aquilo que está à mostra, mas aquilo que está subjacente. Não é fácil, é preciso ter-se experiência e viver muito na própria época para se avançar um pouco mais profundamente na leitura. Sem documentos não podemos fazer história.
Disse que a “História é uma ciência perigosa”.
E é, é perigosa. A História nasceu ligada à epopeia, isto é, o poder teve sempre a preocupação de deixar a sua memória, que nem sempre coincide com a vida e história reais. É a visão da História por parte do poder e quando o historiador ousa em determinados momentos escrever uma História que não é exatamente a do poder torna-se perigosa. É um continente de ciências por vezes extremamente perigosas.
Foi esse perigo que o levou, ao publicar o livro “Raízes da Expansão Portuguesa”, a ser interrogado pela PIDE? 
O livro começou a ser vendido nas livrarias e foi denunciado. Eu estava em liberdade condicional e era obrigado a apresentar-me todos os meses à PIDE e quando fui à sua sede o livro já tinha sido retirado das livrarias. Fui interrogado pela PIDE por uma tarde inteira e submetido a ameaças de me prenderem novamente, acusando-me de traidor à pátria, aos heróis e santos da nacionalidade. Foi uma tarde inteira de ameaças e interrogatório. O resumo de um auto, que está muito longe de mostrar tudo o que se passou nessa tarde, foi encontrado na Torre do Tombo.
Duas das suas obras, a “Revolução de 1883” e as “Raízes da Expansão Portuguesa”, têm uma visão da História que criou polémica. O primeiro por defender que a revolução de 1883 foi a primeira revolução burguesa na História e o segundo por explicar a invasão de Ceuta como um confronto entre a nobreza e a burguesia emergente. Como é que estas obras colocavam em causa o regime do Estado Novo?
Vivíamos em plena guerra colonial. A guerra começou em 1961 e o livro [”Raízes da Expansão Portuguesa”] foi publicado em 1964. A tese do regime na ONU era que Portugal ia do Minho a Timor e que, portanto, as colónias faziam parte integral do país. O livro mostrava que Ceuta não era Portugal, isto é, fomos conquistar um território estrangeiro que ocupámos pela força. Na verdade, a revolução tinha sido ganha pelos concelhos, cidades e vilas, só que a aristocracia não tinha morrido e, como acontece sempre ao nível do poder quando existem classes antagónicas, havia contradições. É possível ver na empresa da conquista de Ceuta precisamente essas contradições que mostram que a dominância ainda era das forças emergentes da revolução de 1883-1885. O próprio poder da época, D. João, estava bem ligado àqueles que o colocaram no trono.
Nos seus livros sente-se uma análise marxista e a divisão da sociedade em classes, com uma dominante e outra emergente. Considera-se um historiador marxista?
É verdade que a obra de Marx pôs em evidência a luta de classes no século XIX, embora essa ideia não lhe fosse originária. Fui um leitor de Marx, mas não apenas. A minha tese de licenciatura é sobre Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo do século XVII. De alguma forma também estudei profundamente Baruch Espinoza. Agora, é indiscutível que na altura em que escrevi o livro houve uma influência da leitura de Marx e, na minha opinião, é extremamente positiva do ponto de vista historiográfico. Em História não podemos partir das ideias de - seja lá de que filósofo for - e depois irmos aos factos para os meter a martelo para condizerem com as ideias. Isso em História não existe. Ponham-me o rótulo que quiserem, mas a verdade é que eu parto dos factos e daquilo que eu sou já, aquilo que pensei e penso. O que domina não é o que eu pensava, mas aquilo que os factos comprovam ou não. Estou a narrar os acontecimentos e a meter as pessoas nos acontecimentos. Não é tê-los fora e escrever abstrações sobre abstrações que não levam a nada. Marx foi um grande filósofo e economista da economia clássica, tudo bem. Tem livros magníficos, mas não é o único e nem acabou com ele [o conhecimento]. Isto é, o conhecimento da sociedade, que é hoje muito mais contraditório do que no tempo de Marx. Vamos deitá-lo fora? Claro que não, de maneira nenhuma.
No “Raízes da Expansão Portuguesa”, coloca os vários indivíduos como representantes das classes. Na invasão de Ceuta foi a burguesia emergente que fez força para que acontecesse, mas depois a nobreza queria avançar e a burguesia recuou. Porquê?
Creio que inicialmente estavam todos entusiasmados com a possibilidade de Ceuta. O segredo foi muito bem guardado. A rainha D. Filipa de Lencastre morreu de peste e mesmo assim a expedição foi para a frente. Havia muitos nobres no terreno, como Nuno Álvares Pereira, que apoiaram e quiseram ir. No conselho em que se decidiu a ida a Ceuta foi dita uma frase: “Rume-se ao além”. Eram os grisalhos de Aljubarrota que apoiavam a iniciativa, mas depois de conquistada e roubada - porque foi de facto um saque completo - houve aqueles que se dividiam sobre o que se fazer a Ceuta. [À nobreza] interessava muito mais a intrigalhada com Espanha e aos outros não, porque era a porta de entrada no Mediterrâneo. Ceuta era uma porta chave para a burguesia marítima.
Chegou inclusive a escrever que a nobreza estava disponível para criar um confronto com Espanha e a colocar em causa a independência nacional só para manter o poder. 
Ao quererem entrar nos conflitos internos de Espanha estavam na verdade a colocar em perigo Portugal. Uma das razões para que Portugal tenha ido para fora [optado pela expansão marítima] era por ter corpo pequeno, isto é, o mar é a fronteira que se abre para fincar o pé relativamente ao muro de Castela, que não é muro nenhum.
Ceuta foi o primeiro empreendimento do que viriam a ficar conhecidos como “Descobrimentos”. Há uns tempos houve uma polémica sobre um futuro museu dos Descobrimentos e o professor afirmou que era um “absurdo”. O que queria dizer com isso?
A expansão portuguesa significou muito para a História da Humanidade. Levou à descoberta de todo o Atlântico Sul, levou os europeus a conhecerem África, um vastíssimo continente que nem vinha na Bíblia. Portanto, provocou o primeiro grande conhecimento por parte do Homem da sua própria casa, a terra. Isto é um acontecimento fantástico à escala humana, à da Humanidade. Claro que esse acontecimento provocou muito sofrimento, isto é, desenvolveu a escravatura - que já existia - e levou a uma guerra marítima na Ásia com a chegada dos portugueses pelo controlo do comércio das especiarias. Tudo isso faz parte. Um museu pode ter esse nome ou outro, mas tem de ser sobre este grande acontecimento dos portugueses no mundo na época dos Descobrimentos - porque houve efetivamente Descobrimentos.
Não acha que chamar “Descobrimentos” aos Descobrimentos é relegar para um segundo plano a dizimação de povos na América Latina e em África numa imagem áurea do passado português.
Depende do conteúdo que se colocar no museu. Até se podem pôr descobrimentos entre aspas. Deve-se discutir o nome, mas principalmente o seu conteúdo. É claro que os portugueses fizeram malandrices em série, mas também lhes fizeram malandrices. Aquilo não foi uma guerra de inocentes. A chegada dos portugueses ao Brasil provocou desde logo uma catástrofe do ponto de vista sanitário, depois a escravatura do índio, que se aldrabou durante séculos. O índio foi escravizado e não aguentava, não tinha  força, e por isso é que veio o negro. Isso é que é o tema do museu, não é só a chegada. Se contarmos a verdade sobre a chegada de Vasco da Gama à Índia, vamos contar que ele se safou de o matarem por um triz. Há muitos filhos de colonos portugueses da época que estão hoje muito incomodados, mas eles não são responsáveis. Eu não sou responsável pelo que os portugueses fizeram.
Acha que não temos de pedir desculpas?
Julgo que isso é mais um pro forma. Cito apenas um caso especial: durante anos tenho-me batido para que haja um monumento no Campo das Cebolas ou no Terreiro do Paço dizendo ao povo português que durante três séculos queimou todos os anos gente na praça pública por terem ideias diferentes. Alguma vez apareceu e foi posto um monumento sobre isso?
Acha que o passado português da Inquisição é apagado da História?
Disseram-nos que nos tinha libertado das guerras religiosas, mas o que é que nos trouxe? Trouxe-nos um subdesenvolvimento intelectual durante quase três séculos. Quando chegámos ao século XVI, alguns autores estavam na vanguarda do progresso científico, dado precisamente pelas navegações. Navegar não era como agora. Era numa casca de noz com instrumentos de coordenadas que não são os de hoje, noites horrorosas, tempestades, morriam em massa nas tempestades.
Nasceu em Murça, em Vila Real, e aos 20 anos veio para Lisboa. 
Fiz 20 anos em Lisboa.
Passou mal quando cá chegou. 
Muito mal. Cheguei sem dinheiro. Um amigo tinha-me emprestado 200 escudos, não tinha quarto e não conhecia nada de Lisboa, embora tivesse cá vivido um ano e tal quando era miúdo. Não sabia sequer ao certo onde era a Praça do Comércio. Matriculei-me em Direito e um amigo conterrâneo levou-me para o quarto dele, mas a dona da casa não gostou nada. Lá fiquei a viver por três meses, enquanto procurava emprego. Era um estudante de Medicina da minha terra que me pagava as sandes por não ter dinheiro para comer.
Qual o impacto que isso teve na sua vida?
Teve muito impacto. Podia ter morrido com uma daquelas doenças da fome. Até que consegui emprego. Cheguei em outubro e no Natal arranjei emprego.
A fazer o quê?
Na Junta Autónoma das Estradas. Fiquei nesse emprego até fugir de lá.
Entrou em Direito, mas no segundo ano abandonou-o para se dedicar à luta contra a ditadura. A dureza da sua chegada a Lisboa contribuiu para a sua politização?
Já vinha com ideias revolucionárias de Murça.
Como é que as adquiriu?
A minha terra tinha dado à luz um grande revolucionário: Militão Ribeiro, que militou no Brasil, na Coluna Prestes, e  que foi depois deportado. Passou um tempo no Tarrafal até ser libertado em 1945. Não foi ele propriamente, mas as vítimas da PIDE na minha terra que me deram livros a ler. Tinha saído do seminário e estava com um espírito propício. Já vinha mais ou menos revolucionário, mas depois quando entrei na faculdade aderi logo ao movimento estudantil. Quando abandonei os estudos foi para me dedicar em exclusivo à luta política.
Aderiu ao Movimento Unitário Democrático e tornou-se seu funcionário.
E depois funcionário do Partido Comunista Português.
E foi aí que a PIDE foi pela primeira vez à sua procura, no trabalho.
Tinha criado em Murça uma biblioteca popular e dei-lhe os meus livros. Um dos jovens da minha terra, o meu primo, estava à frente da biblioteca e a PIDE decidiu ir interrogar os fundadores da biblioteca. Éramos quatro. Quando me avisaram que a PIDE me ia buscar ou pelo menos saber de mim, pus-me ao fresco e entrei na clandestinidade.
Como é que viveu a clandestinidade?
Não tinha casa própria. Dormia aqui, ali e acolá. Foi assim dois anos e tal. A dada altura, teoricamente, iam-me dar um ordenado para comer, mas comia mal e porcamente, digamos. Foram anos muito difíceis, mas com muita esperança e alegria extraordinárias. Era uma vida dura e rude, mas éramos jovens e tínhamos confiança e esperança no combate, embora fossemos uma minoria.
Como aguentava essa dureza?
Estávamos ligados uns aos outros e havia uma espécie de fé de que tudo ia mudar. Havia a ameaça de uma guerra atómica à escala planetária e isso dava-nos força para aguentar. Uma das causas que nos dava força era a da paz. Fazíamos comícios na praça pública, espalhávamos papéis nos teatros e cinemas e organizávamos os jovens.
Mas acabou por ser apanhado pela PIDE.
Fui apanhado na casa de um homem que dava para os dois lados.
Um informador…
Tinha sido preso e tinha ficado ligado. A dada altura apercebi-me de que havia ali alguma coisa. Ainda avisei a rapaziada, mas disseram-me que estava a ver polícias em todo o lado. No dia seguinte entraram duas brigadas da PIDE pela minha casa adentro. Fui para a PIDE e viram que estava muito verde, enviando-me para as celas do Aljube. Estive 180 dias numa cela com luz e noutra completamente às escuras dia e noite. Depois fui para Caxias e daí transportado para o Porto para um julgamento que durou seis meses, acabando por ser condenado a dois anos e nove meses. Fui para Peniche, onde fiquei mais cinco anos. Aí já tinha cumprido um ano e meio de prisão - cumpri um total de seis anos e meio.
Passou 180 dias isolado numa cela. O que fez para lidar com o isolamento?
Só há a memória. A memória vai a horizontes completamente inconcebíveis. Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada.
É fácil ficar-se louco?
Comecei aos gritos por duas vezes e fiz greve de fome à porcaria do rancho que davam. Puseram-me na enfermaria, onde comecei a entrar em contacto com os moradores em frente pela janela. Barricaram a enfermaria e levaram-me para a tal cela onde não havia luz absolutamente nenhuma.
O que recordava no isolamento?
A infância, a adolescência, os amores... tudo. A luta. A preocupação inicial é ninguém estar preso, não ter vindo mais ninguém. Isto é, não falei e não apanharam nada. Havia sempre aquela história do: ‘vou ou não aguentar?’ Ou o indivíduo está disposto mesmo a morrer ou, se é por puro jogo, acaba por ser enrolado. Às vezes, não tendo grande experiência de luta e sendo-se verde vacila-se.
Ficou a conhecer-se melhor com esse percurso pela memória?
Esse período teve muita importância na minha vida. Não podia receber nada a não ser alguma correspondência da família. Mas apenas alguma - e já a meio da pena. Nessa altura foi publicado pelo “Diário Popular” o relatório do Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e deram-me o jornal. Li o relatório e teve uma influência muito grande na minha vida futura.
Foi o que o fez abandonar o PCP?
Não imediatamente, mas fez-me não continuar a vida de revolucionário que levava.
Esteve em Peniche e recusou-se a aderir à histórica fuga de Peniche. Porquê?
Não queria voltar a esse tipo de vida e queria desenvolver aquilo que comecei, o estudo da História. Foi essa a razão fundamental. Estava inteiramente irmanado com os fugitivos e sofri. Estive lá dois anos e meio [depois da fuga] e fui parar à estátua.
Como era a tortura da estátua?
Era estar de pé sem dormir. Um dia, dois dias, quatro dias, uma semana. A alguns rebentavam-lhes os sapatos, os pés. Esta era a tortura e quando os presos se deixavam dormir batiam com a régua numa secretária. A dada altura começam a ter visões. Estive pouco tempo nesta estátua, pouco mais de 24 horas, porque houve uma grande movimentação cá fora e me deu um ataque de loucura lá dentro. Comecei aos berros dentro da PIDE e a pedir que me matassem de uma vez.
Levaram-no ao desespero. 
Entretanto, entrou o meu pai quando estava a fazer de estátua.
Qual foi a reação do seu pai?
Deu-me uma grande firmeza, não me abateu. Eu aguentava aquela posição. Só à porrada é que acabavam comigo.
Essa força de espírito vem de onde?
Não sei, pá. Talvez da minha mãe. Isso vem da própria vida.
Ainda se casou na prisão. Foi já depois de ter decidido abandonar a vida de revolucionário?
A fuga foi um ano depois do casamento. Casei-me para a minha mulher me poder visitar. Foi uma luta que durou mais de um ano, mas finalmente casei.
Mas separado na cerimónia.
Começou separado, mas acabou do mesmo lado. O meu sogro começou a gritar que era impossível e então os guardas e a PIDE lá me puseram ao lado da minha mulher.
Como foi partilhar a cela com Álvaro Cunhal?
Eu era muito desleixado e estava-me a marimbar como é que andava. Pedi ao meu pai uns socos transmontanos para chegar à guilhotina da janela para ver o baleal, porque se não tinha de me por de bicos para o ver. Então o meu pai trouxe-mos e fiquei mais alto. O Cunhal um dia disse-me para coser a camisola rota no cotovelo. Chateou-me tanto que lhe disse para ma coser e coseu- -ma. Isto dá um sentido do laço de camaradagem muito grande. Discutíamos e trocávamos livros. Mandei comprar a “Crónica de D. João I” e ele serviu-se dela. Ele tinha autorização para trazer livros de arte e o que aprendi sobre arte aprendi com ele e com os livros que ele conseguiu esconder debaixo da camisola para levar para a cela.
E as relações de camaradagem mantiveram-se depois de ter abandonado o partido?
Ele ficou magoado, é evidente. Mas a amizade manteve-se e tenho uma alta consideração pelo político, pelo homem.
A ligação ao partido manteve-se?
Sou amigo deles [risos], mas acho que o historiador não se pode ligar em demasia, principalmente se for de História Contemporânea.
Saiu em liberdade, dedicou-se à vida académica e tornou-se professor de História. Como viveu o 25 de Abril?
Foi a liberdade de facto. Nunca tinha havido tanta liberdade, até disseram que havia demasiada liberdade. A liberdade foi para a rua e impôs-se. Até a liberdade sexual se discutia nos comboios da linha. Foi uma espécie de ano e meio de embriaguez.
Quando as massas entram no processo histórico pelas suas próprias mãos…
Exatamente [risos].
Acha que as gerações mais novas têm memória do que foi a ditadura?
Não têm. Há minorias, há sempre gente, mas agora está tudo afastado do que é profundo. O grande mestre da vida é agora a televisão, mas o que é que ensina? Divertimento. Não é a leitura, a escrita ou o aprofundar dos temas. Claro que há gente magnífica e que aprofunda -não vamos subestimar a situação atual -, mas a grande massa está à superfície. É claro que ela pode despertar - nada de ilusões quanto a isso -, mas está pacificada. Hoje não é tanto a religião que a pacifica, mas o inimaginável divertimento que se dá aos jovens, mas não se dá muito aos mais pobres, a esses dá-se muito pouco.
Acha que um dia essa “massa” pode despertar?
Há altos e baixos, isto é às ondas. Acho que neste momento não estamos nem em baixo nem ao alto, estamos no meio, a meio gás.
Como vê a situação política hoje?
A Constituição é o instrumento  orientador fundamental e creio que devemos ter plena consciência disso. Podemos melhorar - sobretudo no campo dos direitos humanos, das desigualdades e da miséria extrema que se vive em Portugal -, mas dêmo-nos por felizes apesar de tudo, das contradições, dos escândalos de que a televisão é ávida para entreter. Eu que vivi uma vida revolucionária não sinto vontade em fazer uma revolução de maneira nenhuma. Sinto-me bem com o Portugal de hoje, com todas as contradições e diferenças. Mal de nós se houver um país sem diferença, seria um país morto.
Isso não pode soar a um apelo à resignação? 
De maneira nenhuma. É preciso tomarmos a palavra sempre que a injustiça nos bata à porta ou à dos outros. Tudo o que disse é tendo em conta o mundo. Não vivemos isolados, mas num universo extremamente contraditório, em que a violência atingiu limites extremos.
Reformou-se em 1998. Sente falta de dar aulas?
Sinto falta, mas o meu corpo já não aguenta duas horas a esse ritmo. Quando dava aulas era praticamente sempre em diálogo e altamente participativas com matérias para discutir e ir ao fundo e não ficar pela superfície.
Acha que falta espírito crítico na universidade?
Acho. É pior que a sebenta em alguns casos, agora nem apontamentos os alunos tiram. Dão ao dedo no tablet. Nem a mão se desenvolve com a escrita, o que é dramático para mim. A mão e a mente andaram sempre juntas.
Sente isso também na historiografia?
Desenvolveu-se muito nos 40 anos depois do 25 de Abril. Não é que antes não tivessem existido grandes historiadores, mas antes do 25 de Abril ficava-se pela época moderna. Hoje há um grande desenvolvimento da História Contemporânea.
Uma História crítica ou subserviente ao poder?
As duas coisas. Ainda continua a haver a História que deixa um bocado na sombra a parte crítica, mas de uma forma geral, mesmo a mais conservadora, tem dificuldade em omitir determinados factos. Pode-lhes dar uma outra interpretação, mas tem dificuldade em omiti-los. É necessário colocar-se os factos e as pessoas, como é que elas viviam e pensavam.
Depois da queda da URSS foi dito que se tinha chegado ao fim da História. As ideologias e a utopia terminaram?
Isso foi uma propaganda e uma estratégia ideológica. Qualquer historiador sabe que a sociedade não desapareceu e que as classes sociais continuam a existir e que são contraditórias. Na verdade, houve como que uma rendição de um dos blocos e um avançar galopante do outro bloco pelo planeta. Vieram as novas guerras - brutais - e a guerra económica, que por vezes não é menos brutal que a guerra [tradicional] por matar a população civil em massa.

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