António Guerreiro
Opinião
A Amazon é o nosso destino
21 de Dezembro de 2018
“Anything. Anywhere. Anytime”:
antes era uma prerrogativa de Deus, agora é a divisa da Amazon, segundo
o mandamento de Jeff Bezos, criador e mestre de um universo empresarial
que conquistou o planeta e já tem um projecto – chamado Blue Origin - de colonização espacial,
pensado para o momento em que terá consumado a conquista de cada canto
do nosso mundo, quando for preciso ir para além do nosso planeta para
não estagnar. A estagnação é o que ele mais odeia. Outra divisa de
Bezos, o homem mais rico do mundo, é que “cada dia é o primeiro”, isto
é, tudo está sempre no início, a começar, porque se admitisse a lógica
da inércia do segundo dia, aí iniciava-se a decadência. Nos últimos
tempos, o lado negro da empresa - a condição de escravatura,
robotização, precariedade e baixos salários a que submete os seus
empregados - tem sido notícia, graças a testemunhos pessoais e
reportagens. Ficámos então a saber que cada um dos gestos dos empregados
é vigiado e contabilizado, a velocidade com que eles se deslocam nos
armazéns é medida. Sobre nós, clientes, a empresa também sabe tudo sobre
os nossos usos e gostos. Se comprámos o livro X, então também somos
potenciais compradores do livro k, y e z. O algoritmo é o grande
feiticeiro do nosso tempo.
Um
excelente documentário difundido há pouco mais de uma semana no canal
de televisão franco-alemão ARTE, realizado por David Carr-Brown, A Irresistível Ascensão da Amazon,
mostra com eloquência e abundância de provas como funciona a Amazon, a
sua lógica de crescimento permanente em tal grau que lhe é permitido
aspirar a ser a única empresa do planeta. A obesidade e a proliferação
cancerosa são a nossa condição histórica, mas neste caso estamos para
além dela. Para descrevê-la, é preciso recorrer à linguagem da
metafísica, falar no “destino” e na “destinação” da Amazon, mais do que
da sua história. E é num sentido quase teológico que podemos ler a
palavra “ascensão” que surge no título deste documentário.
Os
centros de tratamento das encomendas actualmente existentes têm, no
total, uma área superior a 500 vezes o Cental Park. E, cada ano que
passa, são construídas novas fortalezas, plataformas de distribuição,
que perfazem o tamanho de um Central Park. O seu modelo impôs-se em todo
o mundo (todas as cadeias logísticas tentam hoje imitá-lo) e, impondo
as suas regras sobre o comércio e o emprego, transforma profundamente a
sociedade de maneira incontrolável. Um dos momentos fundamentais do
documentário de Carr-Brown é a explicação do modo como a Amazon
reinveste os seus lucros no crescimento da empresa: é uma empresa de
extracção que aspira o dinheiro para o interior, ciclicamente, de
maneira a expandir-se em permanência. Não faz circular o dinheiro para
fora do seu círculo. A sua lógica de funcionamento é totalitária. Onde
quer que penetra, ela explora os recursos existentes (a totalidade do
mercado) e tem como objectivo tornar-se o único fornecedor, assumir o
poder do monopólio. E quais são as consequências deste monopólio? No
mercado do livro, para evocarmos o exemplo de um sector cheio de
subtilezas e fragilidades, uma fatia enormíssima do mercado mundial está
sob o seu controlo. O que significa que os próprios editores vão
perdendo autonomia. Eles têm que editar para a Amazon distribuir e
“satisfazer os desejos dos clientes no mais curto espaço de tempo“, como
reza outra divisa da empresa. Colocar-se ao dispor da vontade do
cliente é o princípio que serviu para definir a “indústria cultural” e
os seus efeitos de homogeneização. Por todo o lado, as livrarias vão
fechando e as que restam estão ameaçadas. Ou vão sendo colonizadas pela
lógica “amazónica”, que vai retirando autonomia aos leitores e
conduzindo-os por caminhos que não são eles a escolher livremente. A
pouco e pouco, há espécies bibliográficas que quase nem aparecem à luz
do dia ou entram em vias de extinção. Percebemos que a ascensão da
Amazon é irresistível quando, sabendo aquilo que ela representa e o
destino funesto que ela nos promete, não encontramos meios nem força
para prescindir dela. É um monstro que satisfaz os nossos desejos, onde
quer que seja, em qualquer lugar. Até que o desejo se extinga e triunfe a
“miséria simbólica” que ela cria.
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