Mas onde estão os líderes da esquerda francesa nas lutas actuais?
por Rémy Herrera
Numerosos coletes amarelos dizem e repetem: eles não têm
líderes – e também não querem. O espontaneísmo
tem as suas virtudes e os encantos, com certeza, mas igualmente os seus limites
e as suas ilusões, portadores dos perigos mais terríveis. A
história contemporânea já o mostrou reiteradamente, desde a
Revolução Espartaquista alemã até os recentes
levantamentos a "Primavera árabe".
Se pretendem desembocar em avanços sociais concretos, todo levantamento
popular precisa – além da energia, determinação e
coragem do povo – uma certa unidade, uma organização
partidária, um programa político. Ora, o mínimo que se
pode dizer é que, na França actual, em rebelião
generalizada, o desmembramento das forças progressistas é extremo
e é mantido por querelas de chefes muitas vezes mais pessoais do que
políticas. Na tragédia da divisão da esquerda francesa,
que a enfraquece por completo, acrescenta-se ainda o paradoxo de que esta
situação ocorre no preciso momento em que se construiu uma
unanimidade popular para rejeitar não só as políticas
neoliberais, mas também o próprio presidente Macron.
Actualmente o mais bem colocado na batalha interna da esquerda é sem dúvida o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon. Este realiza efectivamente o verdadeiro feito de chegar a reunir no seu nome cerca de 20% dos votos aquando da primeira volta das eleições presidenciais de Abril/2017 – ou seja, quatro pontos e algumas decimais menos do que o candidato autorizado finalmente a mudar-se para o Palácio do Eliseu. O Partido Comunista, apesar de dissensões persistentes, tomou a opção de se alinhar sob a sua bandeira. Na realidade, para terminar à frente os votos que lhe faltaram – ironia da sorte – foram os dos seus "velhos amigos": socialistas por um lado (Benoît Hamon obteve 6%)... e trotskistas (Nathalie Arthaud [do Lutte ouvrière] e Philippe Pouton [do Nouveau Parti anticapitaliste], registaram respectivamente 1% e 0,6% dos votos).
Após esta derrota eleitoral consumada e dolorosamente digerida, J.-L. Mélenchon não perdeu a oportunidade que se lhe apresentava com o surgimento da mobilização dos coletes amarelos. É verdade que ele precisava recuperar uma popularidade seriamente maculada por uma série de processos judiciais (relativos a suas contas de campanha, nomeadamente, em que os media dominantes se deleitaram), mas também por uma insurreição afectando a direcção do seu próprio movimento (provocando a demissão de vários dos seus lugar-tenentes). Em consequência, e após hesitação, ele postou nas redes sociais, já em Novembro, seu apoio aos coletes amarelos e sua intenção de desfilar entre eles – mas "discretamente", segundo disse.
O papel político de Jean-Luc Mélenchon foi, nestes últimos anos, eminentemente positivo para o conjunto da esquerda francesa. E mesmo para além dela. Seus talentos reais de tribuno souberam reunir as multidões, remotivá-las, recolocá-las em movimento, dar nova esperança, insuflar novamente a ideia de que uma mudança progressista para o país é não só necessário mas, sobretudo, possível. Correctamente, e melhor do que ninguém, ele formulou, sistematizou, radicalizou as críticas contra "o sistema". Teve o mérito de falar novamente no internacionalismo, especialmente em relação à América Latina em luta. Nestes tempos particularmente difíceis, é uma felicidade para a esquerda francesa que um homem político como ele estivesse actuante.
Alguns não esquecem que Jean-Luc Mélenchon foi, durante mais de 32 anos, membro (conselheiro geral, senador, ministro!) de um Partido Socialista que traiu absolutamente tudo quanto podia quanto às expectativas do povo de esquerda e que, além disso, escravizou o país a uma União Europeia ultraliberal, atlantista, antidemocrática, destruidora das conquistas sociais e da soberania nacional. O anticomunismo exacerbado de alguns de seus próximos recorda que ele militou algum tempo na Organização Comunista Internacional, grupo trotskista de choque que doou à França homens tão "notáveis" como Lionel Jospin – o primeiro-ministro socialista que privatizou tanto quanto a direita havia feito antes dele – ou Jean-Christophe Cambadélis – ex-braço direito do "lamentado" Dominique Strauss-Kahn. Como ele próprio gosta de repetir, o modelo de J.-L. Mélenchon permanece sempre François Mitterrand – antigo presidente da República (condecorado em sua juventude com a Ordem da Francisque pelo marechal Pétain), o qual foi o introdutor do neoliberalismo em França, tal como uma Margaret Thatcher ou um Ronald Reagan. Esta tarefa suja foi cumprida em 1983 graças aos cuidados de um primeiro-ministro, Laurent Fabius – ou seja, o "socialista" tornado ministro das Relações Exteriores trinta anos depois que queria ir à guerra contra a Síria! E foi este "camarada Fabius" que J.L. Mélenchon optou por apoiar como candidato do PS nas eleições presidenciais de 2007... Como será compreendido, há muito pouco risco de que o líder da França Insubmissa tome a iniciativa de uma eventual ruptura anti-capitalista. Ele que, em 1992, apelava a votar "sim" ao Tratado de Maastricht porque acreditava nela perceber "um começo da Europa dos cidadãos". Pode-se enganar durante a vida, mas não quase toda a vida.
Herdeiro de uma longa história feita de resistências anti-fascistas e anti-colonialistas heróicas, o Partido Comunista Francês conserva bases militantes significativas e ainda administra, o melhor que pode, várias municipalidades com perfis sociológicos populares e complicados. Mas o apagamento da sua direcção actual, amplamente reformista e com estratégia demasiado estreitamente eleitoralista, conduziu o PCF ao seguidismo mais raso e sem brilho, substituindo a luta das classes pela "luta dos lugares". Outrora "na vanguarda do proletariado", o PCP encontra-se agora, sob a batuta dos seus dirigentes sem convicções, a reboque de sociais-democratas que estão eles próprios completamente desorientados e transformados na maior parte em medíocres neoliberais. A miríade de minúsculos partidos comunistas (que permanecem autênticos) que gravita em torno do PCF – e contra a sua direcção – está dilacerada entre os "por" e os "contra" os coletes amarelos. O que equivale a dizer que as suas diversas tomadas de posição sobre as mobilizações em curso passam dramaticamente desapercebidas.
Os líderes dos partidos trotsquistas – singularmente numerosos em França – estão pelo seu lado amuralhados em rivalidades e sectarismos que beiram o ridículo, que os dividem profundamente e os afastam cada vez mais da perspectiva de uma responsabilidade política qualquer, mesmo local. No comment sobre sua ausência de posições internacionalistas. E os ecologistas? Conduzidos por fervorosos neoliberais, grosseiramente maquilhados (tais como Nicolas Hulot, que foi ministro de Emmanuel Macron até Setembro/2018, ou o indescritível Daniel Cohn-Bendit...), eles nem sempre compreenderam que a causa mais fundamental das devastações sofridas pelo ambiente se encontra no próprio sistema capitalista. Ainda precisam de tempo para isso. Finalmente, os chefes dos movimentos anarquistas permanecem encerrados nas contradições entre um activismo útil (aquando dos movimentos de ocupação da última Primavera, nomeadamente) e um programa de acção extraordinariamente confuso – para não dizer contraproducente.
As bases destas diversas forças progressistas estão portanto, por assim dizer, entregues a si próprias. E convidadas pelas suas respectivas lideranças a entreter entre si todas as desconfianças. Os ódios. Isto é certamente totalmente absurdo e suicida. Esta triste constatação é tanto mais terrível quando segmentos inteiros da população francesa pauperizada hoje não são mais representados por todas estas organizações de esquerda. Dentre outros: "novos pobres", como são chamados, imensamente numerosos, batidos pelo desemprego e pela precariedade; pequenos agricultores familiares crivados de dívidas, isolados, desesperados; jovens dos arrabaldes, sem objectivos, guetizados, abandonados por todos (excepto os polícias, os traficantes de drogas e salafistas ricos...) – ainda que estes jovens constituam muito provavelmente o mais forte baluarte contra o racismo no país, e que já se tenham levantado durante os motins de 2005-2007 –; famílias saídas da imigração, deixadas à margem da sociedade; gente sem domicílio fixo, sem tecto e direito, "intocáveis" do nosso país, desumanizados, espectros errantes com rostos distorcidos pela miséria que se vêem por toda parte, mas que já não olhamos... Tantos outros ainda. Um lumpem-proletariado? São sobretudo milhões de franceses cuja existência foi sacrificada no altar do capitalismo moderno. Como os responsáveis dos nossos partidos progressistas puderam desistir de se baterem também por todos eles? O que aconteceu nas nossas fileiras para que abdicarmos até este ponto?
Face ao espectáculo lamentável apresentado por esta esquerda-nebulosa pulverizada, a burguesia francesa jogo sobre veludo. Por enquanto, pelo menos. A direita certamente implodiu. Sua componente que chamaremos "centrista" – neste caso, o Partido Socialista – vendeu sua alma desde há mais de três décadas (e com a presidência de F. Mitterrand) convertendo-se aos dogmas do neoliberalismo e alinhando-se em posição de combate atrás dos exércitos da NATO, como se viu. Quanto ao outro componente da direita, que chamaremos de "tradicional" – representado no momento por Les Républicains –, ela liquidou (sob a presidência de Nicolas Sarkozy) seus antigos ideais intervencionistas e nacionalistas para se prosternar aos pés da alta finança globalizada e do hegemonismo belicista dos EUA.
Da deliquescência inevitável destes dois componentes desnaturados – a "falsa esquerda" que era o PS do presidente François Hollande e a "nova direita" sarkozista –, com visões do mundo e programas intercambiáveis, surgiu logicamente a sua síntese: a "ficção Macron". Ou seja, o ideal da renovação impossível da burguesia. Será que esta última será constrangida a lançar contra o povo francês em revolta, quando chegar o momento, tal como soube fazer alhures um milhar de vezes no século XX, o cão de guarda do capitalismo que para ela sempre foi a extrema-direita? Este molosso que o poder burguês alimenta com xenofobia e aversão, mantendo-o firmemente na trela.
O quadro sombrio da esquerda francesa que aqui se desenha não proporcionará amizades, smileys e polegares para cima. Sem dúvida. Infelizmente, é provável que seja compartilhado por muitos coletes amarelos, assim como pelo grupo desavergonhado de camaradas que, por nojo ou esgotamento, deixaram de militar para se dissolverem na invisibilidade dos 50% de franceses que preferem se abster de votar nas eleições. Este inventário não pretende ofender, muito menos desmoralizar; ele recorda a exigência de uma ultrapassagem das divisões e da união dos progressistas ao serviço de um povo que luta e mostra o caminho; visa compreender a raiva que hoje anima este povo e as razões da sua rejeição dos próprios partidos de esquerda. Isto, deixando bem claro que as razões profundas da rebelião francesa não se resumem, longe disso, apenas às insuficiências das forças progressistas, por mais patentes que elas sejam. O que é reclamado é uma mudança completa de sistema. Na esquerda, contudo, ainda são raros aquelas e aqueles que o dizem muito claramente: é uma saída do capitalismo destruidor que se impõe.
Nestas condições, no fundo não há nada de espantoso em que os coletes amarelos – e com eles grandes porções das bases sindicais – lutem sozinhos. E frequentemente contra "os políticos", infelizmente. Também não é surpresa – uma vez que as forças de esquerda não têm o menor programa de saída do capitalismo (nem mesmo do euro!) – que as reivindicações dos coletes amarelos sejam díspares, vão em todas as direcções: rever em baixa todos os impostos, mas restabelecer o imposto sobre a riqueza; diminuir as contribuições patronais e aumentar a ajuda financeira do Estado às empresas; mas desenvolver o Estado social; revalorizar as pensões, mas uniformizar os diferentes sistemas de reforma (como o governo quer!); suprimir o Senado (como se o problema estivesse [apenas] nele!), mas contabilizar os votos brancos nas eleições; criar assembleias de cidadãos que decidam leis por democracia directa, mas permitir referendos por iniciativa dos cidadãos; aumentar os salários, mas o que quanto aos dos quadros superiores e dirigentes?; aumentar as despesas sociais, mas reduzir o assistencialismo; adoptar uma verdadeira política de protecção ambiental, mas abandonar o imposto sobre o carbono; diminuir os preços do gás e da electricidade, mas sem nacionalizar os sectores de energia?, suprimir os ágios bancários, mas deixar intacto o poder ditatorial das finanças?, recuperar a soberania nacional, mas permanecer na União Europeia?, etc. Esta bela desordem é ridicularizada pelos "peritos" da burguesia, que se divertem a apontar contradições demasiado gritantes. Mas o importante está alhures: um ponto de não retorno parece ter sido atingido; a inteligência popular saiu da masmorra ou era mantida agrilhoada; um povo de coletes amarelos se ergueu; uma palavra libertada, democrática, oh quanto salutar, invadiu as telas da televisão, e exige que as regras do jogo sejam alteradas. Finalmente.
Em 1789, a igualmente óbvia dispersão das reivindicações formuladas nos "Cadernos de queixas" ("Cahiers de doléances") do campesinato e dos sans-culotte que produziram a Revolução Francesa não contribuiu de modo algum para travar a inevitabilidade da mesma. Porque – coisa incongruente? – nesta cólera que sobe e que se generaliza por toda parte em França, chega-se aqui e ali a falar novamente de... revolução. Em rotundas bloqueadas, nos piquetes de greve, nas redes sociais..., é mesmo de uma revolução que se fala. Estamos muito longe, certamente. Sem um líder de envergadura e sincero, sem partido organizado, sem programa consequente e, dever-se-ia acrescentar, sem teoria, a grande noite da revolução certamente não é para amanhã.
"E ao mesmo tempo" (conforme a fórmula afectada de Emmanuel Macron), os tablóides populares ficam maravilhados com o gosto requintado da "primeira-dama", Brigitte, cujos vestidos Louis Vuitton, penteados da moda e generosas recepções elísianas fazem "a alegria de todos"... É como estar de volta à epoca da rainha Maria Antonieta que, ao ver o populacho parisiense aglomerado diante do Palácio de Versalhes a gritar que não tinha mais pão, lança: "que comam brioches!".
Actualmente o mais bem colocado na batalha interna da esquerda é sem dúvida o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon. Este realiza efectivamente o verdadeiro feito de chegar a reunir no seu nome cerca de 20% dos votos aquando da primeira volta das eleições presidenciais de Abril/2017 – ou seja, quatro pontos e algumas decimais menos do que o candidato autorizado finalmente a mudar-se para o Palácio do Eliseu. O Partido Comunista, apesar de dissensões persistentes, tomou a opção de se alinhar sob a sua bandeira. Na realidade, para terminar à frente os votos que lhe faltaram – ironia da sorte – foram os dos seus "velhos amigos": socialistas por um lado (Benoît Hamon obteve 6%)... e trotskistas (Nathalie Arthaud [do Lutte ouvrière] e Philippe Pouton [do Nouveau Parti anticapitaliste], registaram respectivamente 1% e 0,6% dos votos).
Após esta derrota eleitoral consumada e dolorosamente digerida, J.-L. Mélenchon não perdeu a oportunidade que se lhe apresentava com o surgimento da mobilização dos coletes amarelos. É verdade que ele precisava recuperar uma popularidade seriamente maculada por uma série de processos judiciais (relativos a suas contas de campanha, nomeadamente, em que os media dominantes se deleitaram), mas também por uma insurreição afectando a direcção do seu próprio movimento (provocando a demissão de vários dos seus lugar-tenentes). Em consequência, e após hesitação, ele postou nas redes sociais, já em Novembro, seu apoio aos coletes amarelos e sua intenção de desfilar entre eles – mas "discretamente", segundo disse.
O papel político de Jean-Luc Mélenchon foi, nestes últimos anos, eminentemente positivo para o conjunto da esquerda francesa. E mesmo para além dela. Seus talentos reais de tribuno souberam reunir as multidões, remotivá-las, recolocá-las em movimento, dar nova esperança, insuflar novamente a ideia de que uma mudança progressista para o país é não só necessário mas, sobretudo, possível. Correctamente, e melhor do que ninguém, ele formulou, sistematizou, radicalizou as críticas contra "o sistema". Teve o mérito de falar novamente no internacionalismo, especialmente em relação à América Latina em luta. Nestes tempos particularmente difíceis, é uma felicidade para a esquerda francesa que um homem político como ele estivesse actuante.
Alguns não esquecem que Jean-Luc Mélenchon foi, durante mais de 32 anos, membro (conselheiro geral, senador, ministro!) de um Partido Socialista que traiu absolutamente tudo quanto podia quanto às expectativas do povo de esquerda e que, além disso, escravizou o país a uma União Europeia ultraliberal, atlantista, antidemocrática, destruidora das conquistas sociais e da soberania nacional. O anticomunismo exacerbado de alguns de seus próximos recorda que ele militou algum tempo na Organização Comunista Internacional, grupo trotskista de choque que doou à França homens tão "notáveis" como Lionel Jospin – o primeiro-ministro socialista que privatizou tanto quanto a direita havia feito antes dele – ou Jean-Christophe Cambadélis – ex-braço direito do "lamentado" Dominique Strauss-Kahn. Como ele próprio gosta de repetir, o modelo de J.-L. Mélenchon permanece sempre François Mitterrand – antigo presidente da República (condecorado em sua juventude com a Ordem da Francisque pelo marechal Pétain), o qual foi o introdutor do neoliberalismo em França, tal como uma Margaret Thatcher ou um Ronald Reagan. Esta tarefa suja foi cumprida em 1983 graças aos cuidados de um primeiro-ministro, Laurent Fabius – ou seja, o "socialista" tornado ministro das Relações Exteriores trinta anos depois que queria ir à guerra contra a Síria! E foi este "camarada Fabius" que J.L. Mélenchon optou por apoiar como candidato do PS nas eleições presidenciais de 2007... Como será compreendido, há muito pouco risco de que o líder da França Insubmissa tome a iniciativa de uma eventual ruptura anti-capitalista. Ele que, em 1992, apelava a votar "sim" ao Tratado de Maastricht porque acreditava nela perceber "um começo da Europa dos cidadãos". Pode-se enganar durante a vida, mas não quase toda a vida.
Herdeiro de uma longa história feita de resistências anti-fascistas e anti-colonialistas heróicas, o Partido Comunista Francês conserva bases militantes significativas e ainda administra, o melhor que pode, várias municipalidades com perfis sociológicos populares e complicados. Mas o apagamento da sua direcção actual, amplamente reformista e com estratégia demasiado estreitamente eleitoralista, conduziu o PCF ao seguidismo mais raso e sem brilho, substituindo a luta das classes pela "luta dos lugares". Outrora "na vanguarda do proletariado", o PCP encontra-se agora, sob a batuta dos seus dirigentes sem convicções, a reboque de sociais-democratas que estão eles próprios completamente desorientados e transformados na maior parte em medíocres neoliberais. A miríade de minúsculos partidos comunistas (que permanecem autênticos) que gravita em torno do PCF – e contra a sua direcção – está dilacerada entre os "por" e os "contra" os coletes amarelos. O que equivale a dizer que as suas diversas tomadas de posição sobre as mobilizações em curso passam dramaticamente desapercebidas.
Os líderes dos partidos trotsquistas – singularmente numerosos em França – estão pelo seu lado amuralhados em rivalidades e sectarismos que beiram o ridículo, que os dividem profundamente e os afastam cada vez mais da perspectiva de uma responsabilidade política qualquer, mesmo local. No comment sobre sua ausência de posições internacionalistas. E os ecologistas? Conduzidos por fervorosos neoliberais, grosseiramente maquilhados (tais como Nicolas Hulot, que foi ministro de Emmanuel Macron até Setembro/2018, ou o indescritível Daniel Cohn-Bendit...), eles nem sempre compreenderam que a causa mais fundamental das devastações sofridas pelo ambiente se encontra no próprio sistema capitalista. Ainda precisam de tempo para isso. Finalmente, os chefes dos movimentos anarquistas permanecem encerrados nas contradições entre um activismo útil (aquando dos movimentos de ocupação da última Primavera, nomeadamente) e um programa de acção extraordinariamente confuso – para não dizer contraproducente.
As bases destas diversas forças progressistas estão portanto, por assim dizer, entregues a si próprias. E convidadas pelas suas respectivas lideranças a entreter entre si todas as desconfianças. Os ódios. Isto é certamente totalmente absurdo e suicida. Esta triste constatação é tanto mais terrível quando segmentos inteiros da população francesa pauperizada hoje não são mais representados por todas estas organizações de esquerda. Dentre outros: "novos pobres", como são chamados, imensamente numerosos, batidos pelo desemprego e pela precariedade; pequenos agricultores familiares crivados de dívidas, isolados, desesperados; jovens dos arrabaldes, sem objectivos, guetizados, abandonados por todos (excepto os polícias, os traficantes de drogas e salafistas ricos...) – ainda que estes jovens constituam muito provavelmente o mais forte baluarte contra o racismo no país, e que já se tenham levantado durante os motins de 2005-2007 –; famílias saídas da imigração, deixadas à margem da sociedade; gente sem domicílio fixo, sem tecto e direito, "intocáveis" do nosso país, desumanizados, espectros errantes com rostos distorcidos pela miséria que se vêem por toda parte, mas que já não olhamos... Tantos outros ainda. Um lumpem-proletariado? São sobretudo milhões de franceses cuja existência foi sacrificada no altar do capitalismo moderno. Como os responsáveis dos nossos partidos progressistas puderam desistir de se baterem também por todos eles? O que aconteceu nas nossas fileiras para que abdicarmos até este ponto?
Face ao espectáculo lamentável apresentado por esta esquerda-nebulosa pulverizada, a burguesia francesa jogo sobre veludo. Por enquanto, pelo menos. A direita certamente implodiu. Sua componente que chamaremos "centrista" – neste caso, o Partido Socialista – vendeu sua alma desde há mais de três décadas (e com a presidência de F. Mitterrand) convertendo-se aos dogmas do neoliberalismo e alinhando-se em posição de combate atrás dos exércitos da NATO, como se viu. Quanto ao outro componente da direita, que chamaremos de "tradicional" – representado no momento por Les Républicains –, ela liquidou (sob a presidência de Nicolas Sarkozy) seus antigos ideais intervencionistas e nacionalistas para se prosternar aos pés da alta finança globalizada e do hegemonismo belicista dos EUA.
Da deliquescência inevitável destes dois componentes desnaturados – a "falsa esquerda" que era o PS do presidente François Hollande e a "nova direita" sarkozista –, com visões do mundo e programas intercambiáveis, surgiu logicamente a sua síntese: a "ficção Macron". Ou seja, o ideal da renovação impossível da burguesia. Será que esta última será constrangida a lançar contra o povo francês em revolta, quando chegar o momento, tal como soube fazer alhures um milhar de vezes no século XX, o cão de guarda do capitalismo que para ela sempre foi a extrema-direita? Este molosso que o poder burguês alimenta com xenofobia e aversão, mantendo-o firmemente na trela.
O quadro sombrio da esquerda francesa que aqui se desenha não proporcionará amizades, smileys e polegares para cima. Sem dúvida. Infelizmente, é provável que seja compartilhado por muitos coletes amarelos, assim como pelo grupo desavergonhado de camaradas que, por nojo ou esgotamento, deixaram de militar para se dissolverem na invisibilidade dos 50% de franceses que preferem se abster de votar nas eleições. Este inventário não pretende ofender, muito menos desmoralizar; ele recorda a exigência de uma ultrapassagem das divisões e da união dos progressistas ao serviço de um povo que luta e mostra o caminho; visa compreender a raiva que hoje anima este povo e as razões da sua rejeição dos próprios partidos de esquerda. Isto, deixando bem claro que as razões profundas da rebelião francesa não se resumem, longe disso, apenas às insuficiências das forças progressistas, por mais patentes que elas sejam. O que é reclamado é uma mudança completa de sistema. Na esquerda, contudo, ainda são raros aquelas e aqueles que o dizem muito claramente: é uma saída do capitalismo destruidor que se impõe.
Nestas condições, no fundo não há nada de espantoso em que os coletes amarelos – e com eles grandes porções das bases sindicais – lutem sozinhos. E frequentemente contra "os políticos", infelizmente. Também não é surpresa – uma vez que as forças de esquerda não têm o menor programa de saída do capitalismo (nem mesmo do euro!) – que as reivindicações dos coletes amarelos sejam díspares, vão em todas as direcções: rever em baixa todos os impostos, mas restabelecer o imposto sobre a riqueza; diminuir as contribuições patronais e aumentar a ajuda financeira do Estado às empresas; mas desenvolver o Estado social; revalorizar as pensões, mas uniformizar os diferentes sistemas de reforma (como o governo quer!); suprimir o Senado (como se o problema estivesse [apenas] nele!), mas contabilizar os votos brancos nas eleições; criar assembleias de cidadãos que decidam leis por democracia directa, mas permitir referendos por iniciativa dos cidadãos; aumentar os salários, mas o que quanto aos dos quadros superiores e dirigentes?; aumentar as despesas sociais, mas reduzir o assistencialismo; adoptar uma verdadeira política de protecção ambiental, mas abandonar o imposto sobre o carbono; diminuir os preços do gás e da electricidade, mas sem nacionalizar os sectores de energia?, suprimir os ágios bancários, mas deixar intacto o poder ditatorial das finanças?, recuperar a soberania nacional, mas permanecer na União Europeia?, etc. Esta bela desordem é ridicularizada pelos "peritos" da burguesia, que se divertem a apontar contradições demasiado gritantes. Mas o importante está alhures: um ponto de não retorno parece ter sido atingido; a inteligência popular saiu da masmorra ou era mantida agrilhoada; um povo de coletes amarelos se ergueu; uma palavra libertada, democrática, oh quanto salutar, invadiu as telas da televisão, e exige que as regras do jogo sejam alteradas. Finalmente.
Em 1789, a igualmente óbvia dispersão das reivindicações formuladas nos "Cadernos de queixas" ("Cahiers de doléances") do campesinato e dos sans-culotte que produziram a Revolução Francesa não contribuiu de modo algum para travar a inevitabilidade da mesma. Porque – coisa incongruente? – nesta cólera que sobe e que se generaliza por toda parte em França, chega-se aqui e ali a falar novamente de... revolução. Em rotundas bloqueadas, nos piquetes de greve, nas redes sociais..., é mesmo de uma revolução que se fala. Estamos muito longe, certamente. Sem um líder de envergadura e sincero, sem partido organizado, sem programa consequente e, dever-se-ia acrescentar, sem teoria, a grande noite da revolução certamente não é para amanhã.
"E ao mesmo tempo" (conforme a fórmula afectada de Emmanuel Macron), os tablóides populares ficam maravilhados com o gosto requintado da "primeira-dama", Brigitte, cujos vestidos Louis Vuitton, penteados da moda e generosas recepções elísianas fazem "a alegria de todos"... É como estar de volta à epoca da rainha Maria Antonieta que, ao ver o populacho parisiense aglomerado diante do Palácio de Versalhes a gritar que não tinha mais pão, lança: "que comam brioches!".
28/Dezembro/2018
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