“O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra”
29.05.2019 às 20h21
Os discursos coloniais e patriarcais ainda ocupam uma grande mancha e ainda não permitem que os portugueses sintam “culpa” ou “vergonha” do seu passado colonial e assumam as suas responsabilidades, mas há agora uma nova geração “que sabe que a glorificação colonial e a demonização do feminismo já não são credíveis”. E isso é um bom sinal. Entrevista com a artista, escritora e teórica portuguesa Grada Kilomba, por ocasião do lançamento do seu livro em Portugal, mais de dez anos depois de ter sido publicado em inglês
O
olhar estanca logo na primeira página do livro, prende-se nisto: “Ao
longo de vários anos, fui a única estudante negra em todo o departamento
de psicologia clínica e psicanálise. Nos hospitais onde trabalhei, era
comum ser confundida com a senhora da limpeza e por vezes os pacientes
recusavam-se a ser vistos por mim ou a entrar na mesma sala e ficar a
sós comigo. Deixei Lisboa, a cidade onde nasci e cresci, com um imenso
alívio”.
As palavras foram escritas pela artista, escritora, psicóloga, teórica portuguesa Grada Kilomba, como introdução ao seu livro “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Quotidiano”, lançado há mais de dez anos mas só agora traduzido para português, numa edição da Orfeu Negro. Fala-se de racismo e do trauma do racismo, das feridas abertas e que não saram “porque a história foi mal contada, contada exatamente ao contrário”, e há sempre cortes que vão atingindo o mesmo sítio, e fala-se também do feminismo negro, que foi ignorado mas tomou entretanto “o seu próprio espaço”. “O feminismo ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens”. Só o facto de se falar sobre isto justifica, na opinião da autora, a edição tardia. “Até há relativamente pouco tempo, tínhamos em Portugal um discurso muito colonial e patriarcal”, diz ao Expresso, numa entrevista durante a sua breve passagem por Portugal (ela vive há dez anos em Berlim) para o lançamento do livro.
Na carta que escreve como introdução à edição portuguesa, diz que este livro nunca poderia ter sido publicado antes “pois os comuns gloriosos e românticos discursos do passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais, não o permitiram”. O que significa isto? Enfrentou entraves à publicação por parte de editoras cá?
Até há relativamente pouco tempo, tínhamos em Portugal um discurso muito colonial e patriarcal, com uma grande romantização do que é colonial e patriarcal. Durante muito tempo, houve uma ausência de um discurso crítico e isso vê-se pelo facto de muitas obras como a minha estarem a ser agora publicadas pela primeira vez no país. Antes do meu livro, foi traduzido o de bell hooks [intelectual e ativista afro-americana, autora de “Não serei eu mulher?”, publicado em 2018] e o de Judith Butler [“Problemas de Género”, 2017], que trata das questões da branquitude, feminismo, sexualidade e queerness. E depois de mim virá Gayatri Chakravorty Spivak [“Pode a Subalterna Falar?”, considerado um marco teórico nos estudos pós-coloniais e com lançamento previsto para outubro]. Alguns destes livros foram escritos há 30 anos e estão a ser traduzidos pela primeira vez em português. É possível que haja agora um espaço para o discurso crítico que não havia antes.
O que facilitou a criação desse espaço?
Creio que há uma nova geração que precisa urgentemente de uma nova linguagem e que sabe que as linguagens antigas não são credíveis e não têm legitimidade. Sabem que a glorificação colonial não é credível, sabem que a demonização do feminismo não é credível e sabem que a patologização da sexualidade não é credível. Os discursos normativos que nós temos na academia, nas estruturas, nos currículos e nos museus não são mais credíveis nem compatíveis com o presente. São discursos que pertencem ao passado. Também acho que uma grande parte desta nova geração teve experiências de intercâmbio internacional e vê que aquilo que aprendeu noutros países ainda não chegou a Portugal. É necessária uma nova linguagem que pertença ao presente.
De facto, nessa mesma carta introdutória refere que há países onde já foram inventados novos vocabulários ou desmontados termos em que estava presente essa herança colonial, ao contrário de Portugal.
Quando falo em vocabulário ou linguagem não é apenas em termos semânticos. Tem que ver com o discurso e com as imagens e com o desenvolvimento de novos formatos que devolvem ao público uma perspetiva que não existia antes. Há essa urgência de descolonizar a linguagem. A tradução deste livro foi feita sem terminologias porque muitas dessas terminologias ainda não existem na língua portuguesa. Foi um trabalho extremamente moroso e problemático. Também aí apercebemo-nos do quão colonial e patriarcal é a língua portuguesa. Dou-lhe um exemplo: o livro é escrito por uma mulher mas as frases são transformadas no género masculino porque os termos só existem nesse género e, de repente, há frases que deixam de fazer sentido. Todas as terminologias existem apenas no masculino. Isto leva a que se questione a violência da língua e o significado de se ter uma identidade que não existe na língua falada e escrita ou que é identificada como erro ortográfico. É violento isso. Cria-se uma normalidade que exclui uma série de identidades da condição humana, daquilo que é considerado normal.
O livro é o resultado da sua tese de doutoramento na Alemanha, para a qual entrevistou mulheres da diáspora africana que falam da sua experiência na Alemanha. No entanto, na introdução fala diretamente para o leitor português. É a ele que se dirige este livro?
O livro trata de várias questões, como o género, o racismo, a pós-colonialidade e a branquitude. E trata também de experiências coletivas universais. As mulheres que são entrevistadas, assim como eu, vêm de diásporas africanas diferentes mas partilham a mesma experiência. Há uma experiência coletiva, global, que é idêntica, uma experiência de opressão, assim como a branquitude tem uma experiência coletiva, que é a do privilégio, das políticas de ignorância, do não saber e não precisar de saber. Portanto, tanto aqui como na África do Sul, Brasil ou EUA, há uma violência que é global. A escravatura foi o primeiro movimento de globalização em que pessoas foram escravizadas para serem levadas para outro continente para enriquecer um terceiro continente. É uma história global que une vários continentes.
É formada em psicologia clínica, estudou psicanálise e trabalhou no antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda com um psicanalista e sobreviventes de guerra. De que modo é que esta experiência viria a ser útil para abordar a questão do trauma no racismo, que é central neste livro?
Sempre me interessou a questão do trauma, e o trauma ligado ao racismo e à história colonial e patriarcal, precisamente por causa da forma subtil como a violência pode ser exercida e que sempre retira a humanidade às pessoas. O trauma é exatamente nisso. Tem um primeiro elemento, que é o choque, e o choque acontece não porque não se está à espera de se ser agredido ou vivenciar o racismo ou a opressão, mas porque se é retirado da humanidade. A pessoa não é vista como normal, mas como diferente, marginal, como ‘outro’. Há um segundo momento, que é o da separação, é-se fragmentado da sociedade, porque a sociedade é vista como branca e heterossexual e todas as outras identidades e corpos são colocados fora dessa normatividade. O que também leva imediatamente a um terceiro elemento, o da violência da intemporalidade — de repente, o presente é vivido como se fosse o passado e o passado coincide com o presente. O racismo e o sexismo e todas as formas de opressão fazem isso, colocam-me num passado que não faz parte do presente mas passa a fazer parte da minha vida presente. Esse desfasamento do tempo faz parte do trauma e faz precisamente porque o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Vejo muito a história colonial como um fantasma que vem e nos assombra, e assombra-nos porque não foi tratado de forma digna. As coisas não foram chamadas pelos seus próprios nomes, não houve um funeral digno, não há um nome que apareça nos livros no lugar certo. A história é mal contada, é contada ao contrário, e os personagens não têm um nome, uma data, um espaço. E por nunca ter sido tratada, a ferida colonial dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra. E quando sangra, nós ficámos aflitos e não sabemos porquê. Acredito que a literatura e a arte podem dar ferramentas e linguagem às novas gerações para tratar essa ferida, para colocar as coisas nos sítios certos e saber quem é quem e o que fez e porquê.
O livro propõe uma leitura do colonialismo e pós-colonialismo e racismo à luz de determinados conceitos da psicanálise. De que modo é que esta leitura poderá ajudar a uma melhor compreensão do racismo?
A psicanálise trabalha com o inconsciente, com as imagens, metáfora e associações, e, por isso, permite ver o que geralmente não é visto, fazer uma leitura para lá do consciente. O racismo tem uma coisa muito perigosa que é, precisamente, trabalhar com o irracional e o ilógico, e criar discursos e imagens que não são reais mas são experienciadas como tal. Tudo funciona através da associação; há uma cadeia de imagens e palavras que, por si, são ilógicas, mas tornam-se lógicas através da associação.
O medo desempenha aqui um papel importante, como refere no livro...
Sim, posso dar um exemplo. Quando falamos sobre imigração e imigrantes, geralmente fala-se de imigrantes ilegais, faz-se uma associação entre imigração e ilegalidade. E se o imigrante é ilegal, é porque está fora da lei, e se está fora da lei, está a cometer um crime, e se está a cometer um crime, é porque é perigoso, e se é perigoso, temos de ter medo, e se temos medo, podemos matar. Há uma associação de palavras e imagens que se dá a um nível irracional. E não há nada mais traumático do que o irracional. O racismo é traumático porque trabalha com o irracional. É essa a sua violência, assim como a violência do sexismo e de todas as outras formas de opressão — colocam-te fora da tua humanidade sem que haja razão para isso.
Ao longo destas páginas, fala muito sobre o racismo quotidiano e o trauma do racismo. Qual a relação entre ambos?
Acho que uma das funções do racismo diário é precisamente fazer prevalecer a supremacia branca, é colocar as pessoas do presente no passado, impedi-las de estar de facto no presente; há um ato de reencenação, daí que o livro se chame “Memórias da Plantação”. Foi isso que me interessou trabalhar neste livro e noutras peças. Hoje mesmo [17 de maio] inaugurou uma instalação em vídeo na Gulbenkian [“Illusions, vol. I, Narcissus and Echo”] que está em diálogo com o livro e que aborda precisamente estes temas. Narciso é como uma metáfora da sociedade colonial patriarcal que só se vê a si própria, só se repete, e inviabiliza todos os outros, e Eco é a mulher, que é reduzida ao silêncio, que não tem voz e quer falar. Na encenação, ela pega nos microfones mas ainda assim as únicas palavras que ouvimos são as do patriarca.
Também diz que a maior parte da literatura sobre racismo não conseguiu tratar da posição específica das mulheres negras e que estas também estiveram durante muito tempo invisíveis no projeto feminista global. Os movimentos feministas atuais já se redimiram disto? As mulheres negras já são ouvidas?
Não diria que se redimiram, diria antes que as mulheres negras é que tomaram o seu próprio espaço. O feminismo ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens. Isso não explica a nossa história global, se tivermos em conta a história colonial que dominou e definiu o mundo durante 500 anos: o homem negro foi dominado pela mulher branca e a mulher negra continua a trabalhar para a família branca. O feminismo ocidental ignorou essa história e é impossível, na minha opinião, não encarar o anti-racismo como parte de um movimento de libertação. A partir do momento em que este não é incluído, estão a excluir-se automaticamente uma série de identidades e realidades. Isso sempre foi muito claro para o feminismo negro, que acabou então por criar o seu próprio movimento, um movimento que é muito radical e alimentou outros movimentos, que é transdisciplinar e de solidariedade entre mulheres negras, mulheres queer e mulheres transgénero, estando também em solidariedade com os homens negros. O feminismo negro trouxe outro modelo de pensar o feminismo em que raça, género, classe e outra série de categorias não se excluem umas às outras; é muito mais avant-garde do que o feminismo por si, que ainda está a perceber que há outros níveis e camadas e que não se pode ignorar a branquitude. E não se pode ignorá-la porque a mulher branca posicionou-se como vítima de uma sociedade e nunca se viu como opressora e como dominante. Nunca se posicionou na sua história colonial e nos privilégios que sempre teve. A mulher negra, por outro lado, sempre foi excluída de todos os discursos. Não somos homens nem somos brancas, e portanto a nossa posição sempre foi mais frágil.
“Tem-se negligenciado a realidade vivida do racismo, as experiências, as lutas, o conhecimento, a compreensão e os sentimentos das pessoas negras no que toca ao racismo”, escreve também. Como é que os órgãos de comunicação social, e em específico os portugueses, têm contribuído para isso? A nossa comunicação social é genericamente racista?
… Não sei. Eu já não vivo em Portugal, não posso responder a essa pergunta.
Mas da realidade que conhece...
Acho que não consigo responder a essa pergunta, não quero… Não.
Está bem.
Na primeira e última vez em que vim apresentar aqui o meu trabalho [MAAT e Galeria Avenida da Índia, em 2017, tendo a artista já exibido o seu trabalho em diversos contextos internacionais como a 10.ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim e a 32.ª Bienal de São Paulo], conheci muitas jornalistas mulheres que se mostraram muitos envolvidas nestes temas, muito interessadas, e que exigiram que o meu trabalho tivesse um grande impacto e visibilidade nos media. Achei impressionante que tenha sido coberto de uma forma tão digna e tão presente e tão exigente. Trata-se de decisões, a meu ver, muito importantes e que têm que ver com reeditar a estrutura. O racismo é um problema estrutural, institucional, e portanto é importante decidir qual o espaço dado e quanto espaço, quais temas ocupam quanto espaço e de que forma são tratados. Os media têm essa responsabilidade perante o público. Quando estamos a falar sobre racismo e todas as outras formas de opressão, não estamos a falar de moralidade, estamos a falar sobre responsabilidade, que tem que ver com um processo de consciencialização: começa com a negação, da negação passa-se à culpa, da culpa à vergonha, da vergonha ao reconhecimento e deste, finalmente, à reparação. Reparar significa precisamente isso, arranjar o que estava estragado e perceber a violência de certas estruturas. Mas este processo só pode acontecer se o que estamos a falar tiver visibilidade, tiver espaço. Os media têm um papel importante porque fazem uma sugestão — vejam isto, conheçam isto. É um trabalho de responsabilização, um ato político. Se posso responder à sua questão, é apenas por este caminho.
As palavras foram escritas pela artista, escritora, psicóloga, teórica portuguesa Grada Kilomba, como introdução ao seu livro “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Quotidiano”, lançado há mais de dez anos mas só agora traduzido para português, numa edição da Orfeu Negro. Fala-se de racismo e do trauma do racismo, das feridas abertas e que não saram “porque a história foi mal contada, contada exatamente ao contrário”, e há sempre cortes que vão atingindo o mesmo sítio, e fala-se também do feminismo negro, que foi ignorado mas tomou entretanto “o seu próprio espaço”. “O feminismo ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens”. Só o facto de se falar sobre isto justifica, na opinião da autora, a edição tardia. “Até há relativamente pouco tempo, tínhamos em Portugal um discurso muito colonial e patriarcal”, diz ao Expresso, numa entrevista durante a sua breve passagem por Portugal (ela vive há dez anos em Berlim) para o lançamento do livro.
Na carta que escreve como introdução à edição portuguesa, diz que este livro nunca poderia ter sido publicado antes “pois os comuns gloriosos e românticos discursos do passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais, não o permitiram”. O que significa isto? Enfrentou entraves à publicação por parte de editoras cá?
Até há relativamente pouco tempo, tínhamos em Portugal um discurso muito colonial e patriarcal, com uma grande romantização do que é colonial e patriarcal. Durante muito tempo, houve uma ausência de um discurso crítico e isso vê-se pelo facto de muitas obras como a minha estarem a ser agora publicadas pela primeira vez no país. Antes do meu livro, foi traduzido o de bell hooks [intelectual e ativista afro-americana, autora de “Não serei eu mulher?”, publicado em 2018] e o de Judith Butler [“Problemas de Género”, 2017], que trata das questões da branquitude, feminismo, sexualidade e queerness. E depois de mim virá Gayatri Chakravorty Spivak [“Pode a Subalterna Falar?”, considerado um marco teórico nos estudos pós-coloniais e com lançamento previsto para outubro]. Alguns destes livros foram escritos há 30 anos e estão a ser traduzidos pela primeira vez em português. É possível que haja agora um espaço para o discurso crítico que não havia antes.
O que facilitou a criação desse espaço?
Creio que há uma nova geração que precisa urgentemente de uma nova linguagem e que sabe que as linguagens antigas não são credíveis e não têm legitimidade. Sabem que a glorificação colonial não é credível, sabem que a demonização do feminismo não é credível e sabem que a patologização da sexualidade não é credível. Os discursos normativos que nós temos na academia, nas estruturas, nos currículos e nos museus não são mais credíveis nem compatíveis com o presente. São discursos que pertencem ao passado. Também acho que uma grande parte desta nova geração teve experiências de intercâmbio internacional e vê que aquilo que aprendeu noutros países ainda não chegou a Portugal. É necessária uma nova linguagem que pertença ao presente.
De facto, nessa mesma carta introdutória refere que há países onde já foram inventados novos vocabulários ou desmontados termos em que estava presente essa herança colonial, ao contrário de Portugal.
Quando falo em vocabulário ou linguagem não é apenas em termos semânticos. Tem que ver com o discurso e com as imagens e com o desenvolvimento de novos formatos que devolvem ao público uma perspetiva que não existia antes. Há essa urgência de descolonizar a linguagem. A tradução deste livro foi feita sem terminologias porque muitas dessas terminologias ainda não existem na língua portuguesa. Foi um trabalho extremamente moroso e problemático. Também aí apercebemo-nos do quão colonial e patriarcal é a língua portuguesa. Dou-lhe um exemplo: o livro é escrito por uma mulher mas as frases são transformadas no género masculino porque os termos só existem nesse género e, de repente, há frases que deixam de fazer sentido. Todas as terminologias existem apenas no masculino. Isto leva a que se questione a violência da língua e o significado de se ter uma identidade que não existe na língua falada e escrita ou que é identificada como erro ortográfico. É violento isso. Cria-se uma normalidade que exclui uma série de identidades da condição humana, daquilo que é considerado normal.
O livro é o resultado da sua tese de doutoramento na Alemanha, para a qual entrevistou mulheres da diáspora africana que falam da sua experiência na Alemanha. No entanto, na introdução fala diretamente para o leitor português. É a ele que se dirige este livro?
O livro trata de várias questões, como o género, o racismo, a pós-colonialidade e a branquitude. E trata também de experiências coletivas universais. As mulheres que são entrevistadas, assim como eu, vêm de diásporas africanas diferentes mas partilham a mesma experiência. Há uma experiência coletiva, global, que é idêntica, uma experiência de opressão, assim como a branquitude tem uma experiência coletiva, que é a do privilégio, das políticas de ignorância, do não saber e não precisar de saber. Portanto, tanto aqui como na África do Sul, Brasil ou EUA, há uma violência que é global. A escravatura foi o primeiro movimento de globalização em que pessoas foram escravizadas para serem levadas para outro continente para enriquecer um terceiro continente. É uma história global que une vários continentes.
É formada em psicologia clínica, estudou psicanálise e trabalhou no antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda com um psicanalista e sobreviventes de guerra. De que modo é que esta experiência viria a ser útil para abordar a questão do trauma no racismo, que é central neste livro?
Sempre me interessou a questão do trauma, e o trauma ligado ao racismo e à história colonial e patriarcal, precisamente por causa da forma subtil como a violência pode ser exercida e que sempre retira a humanidade às pessoas. O trauma é exatamente nisso. Tem um primeiro elemento, que é o choque, e o choque acontece não porque não se está à espera de se ser agredido ou vivenciar o racismo ou a opressão, mas porque se é retirado da humanidade. A pessoa não é vista como normal, mas como diferente, marginal, como ‘outro’. Há um segundo momento, que é o da separação, é-se fragmentado da sociedade, porque a sociedade é vista como branca e heterossexual e todas as outras identidades e corpos são colocados fora dessa normatividade. O que também leva imediatamente a um terceiro elemento, o da violência da intemporalidade — de repente, o presente é vivido como se fosse o passado e o passado coincide com o presente. O racismo e o sexismo e todas as formas de opressão fazem isso, colocam-me num passado que não faz parte do presente mas passa a fazer parte da minha vida presente. Esse desfasamento do tempo faz parte do trauma e faz precisamente porque o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Vejo muito a história colonial como um fantasma que vem e nos assombra, e assombra-nos porque não foi tratado de forma digna. As coisas não foram chamadas pelos seus próprios nomes, não houve um funeral digno, não há um nome que apareça nos livros no lugar certo. A história é mal contada, é contada ao contrário, e os personagens não têm um nome, uma data, um espaço. E por nunca ter sido tratada, a ferida colonial dói sempre, por vezes infeta, e outras vezes sangra. E quando sangra, nós ficámos aflitos e não sabemos porquê. Acredito que a literatura e a arte podem dar ferramentas e linguagem às novas gerações para tratar essa ferida, para colocar as coisas nos sítios certos e saber quem é quem e o que fez e porquê.
O livro propõe uma leitura do colonialismo e pós-colonialismo e racismo à luz de determinados conceitos da psicanálise. De que modo é que esta leitura poderá ajudar a uma melhor compreensão do racismo?
A psicanálise trabalha com o inconsciente, com as imagens, metáfora e associações, e, por isso, permite ver o que geralmente não é visto, fazer uma leitura para lá do consciente. O racismo tem uma coisa muito perigosa que é, precisamente, trabalhar com o irracional e o ilógico, e criar discursos e imagens que não são reais mas são experienciadas como tal. Tudo funciona através da associação; há uma cadeia de imagens e palavras que, por si, são ilógicas, mas tornam-se lógicas através da associação.
O medo desempenha aqui um papel importante, como refere no livro...
Sim, posso dar um exemplo. Quando falamos sobre imigração e imigrantes, geralmente fala-se de imigrantes ilegais, faz-se uma associação entre imigração e ilegalidade. E se o imigrante é ilegal, é porque está fora da lei, e se está fora da lei, está a cometer um crime, e se está a cometer um crime, é porque é perigoso, e se é perigoso, temos de ter medo, e se temos medo, podemos matar. Há uma associação de palavras e imagens que se dá a um nível irracional. E não há nada mais traumático do que o irracional. O racismo é traumático porque trabalha com o irracional. É essa a sua violência, assim como a violência do sexismo e de todas as outras formas de opressão — colocam-te fora da tua humanidade sem que haja razão para isso.
Ao longo destas páginas, fala muito sobre o racismo quotidiano e o trauma do racismo. Qual a relação entre ambos?
Acho que uma das funções do racismo diário é precisamente fazer prevalecer a supremacia branca, é colocar as pessoas do presente no passado, impedi-las de estar de facto no presente; há um ato de reencenação, daí que o livro se chame “Memórias da Plantação”. Foi isso que me interessou trabalhar neste livro e noutras peças. Hoje mesmo [17 de maio] inaugurou uma instalação em vídeo na Gulbenkian [“Illusions, vol. I, Narcissus and Echo”] que está em diálogo com o livro e que aborda precisamente estes temas. Narciso é como uma metáfora da sociedade colonial patriarcal que só se vê a si própria, só se repete, e inviabiliza todos os outros, e Eco é a mulher, que é reduzida ao silêncio, que não tem voz e quer falar. Na encenação, ela pega nos microfones mas ainda assim as únicas palavras que ouvimos são as do patriarca.
Também diz que a maior parte da literatura sobre racismo não conseguiu tratar da posição específica das mulheres negras e que estas também estiveram durante muito tempo invisíveis no projeto feminista global. Os movimentos feministas atuais já se redimiram disto? As mulheres negras já são ouvidas?
Não diria que se redimiram, diria antes que as mulheres negras é que tomaram o seu próprio espaço. O feminismo ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens. Isso não explica a nossa história global, se tivermos em conta a história colonial que dominou e definiu o mundo durante 500 anos: o homem negro foi dominado pela mulher branca e a mulher negra continua a trabalhar para a família branca. O feminismo ocidental ignorou essa história e é impossível, na minha opinião, não encarar o anti-racismo como parte de um movimento de libertação. A partir do momento em que este não é incluído, estão a excluir-se automaticamente uma série de identidades e realidades. Isso sempre foi muito claro para o feminismo negro, que acabou então por criar o seu próprio movimento, um movimento que é muito radical e alimentou outros movimentos, que é transdisciplinar e de solidariedade entre mulheres negras, mulheres queer e mulheres transgénero, estando também em solidariedade com os homens negros. O feminismo negro trouxe outro modelo de pensar o feminismo em que raça, género, classe e outra série de categorias não se excluem umas às outras; é muito mais avant-garde do que o feminismo por si, que ainda está a perceber que há outros níveis e camadas e que não se pode ignorar a branquitude. E não se pode ignorá-la porque a mulher branca posicionou-se como vítima de uma sociedade e nunca se viu como opressora e como dominante. Nunca se posicionou na sua história colonial e nos privilégios que sempre teve. A mulher negra, por outro lado, sempre foi excluída de todos os discursos. Não somos homens nem somos brancas, e portanto a nossa posição sempre foi mais frágil.
“Tem-se negligenciado a realidade vivida do racismo, as experiências, as lutas, o conhecimento, a compreensão e os sentimentos das pessoas negras no que toca ao racismo”, escreve também. Como é que os órgãos de comunicação social, e em específico os portugueses, têm contribuído para isso? A nossa comunicação social é genericamente racista?
… Não sei. Eu já não vivo em Portugal, não posso responder a essa pergunta.
Mas da realidade que conhece...
Acho que não consigo responder a essa pergunta, não quero… Não.
Está bem.
Na primeira e última vez em que vim apresentar aqui o meu trabalho [MAAT e Galeria Avenida da Índia, em 2017, tendo a artista já exibido o seu trabalho em diversos contextos internacionais como a 10.ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim e a 32.ª Bienal de São Paulo], conheci muitas jornalistas mulheres que se mostraram muitos envolvidas nestes temas, muito interessadas, e que exigiram que o meu trabalho tivesse um grande impacto e visibilidade nos media. Achei impressionante que tenha sido coberto de uma forma tão digna e tão presente e tão exigente. Trata-se de decisões, a meu ver, muito importantes e que têm que ver com reeditar a estrutura. O racismo é um problema estrutural, institucional, e portanto é importante decidir qual o espaço dado e quanto espaço, quais temas ocupam quanto espaço e de que forma são tratados. Os media têm essa responsabilidade perante o público. Quando estamos a falar sobre racismo e todas as outras formas de opressão, não estamos a falar de moralidade, estamos a falar sobre responsabilidade, que tem que ver com um processo de consciencialização: começa com a negação, da negação passa-se à culpa, da culpa à vergonha, da vergonha ao reconhecimento e deste, finalmente, à reparação. Reparar significa precisamente isso, arranjar o que estava estragado e perceber a violência de certas estruturas. Mas este processo só pode acontecer se o que estamos a falar tiver visibilidade, tiver espaço. Os media têm um papel importante porque fazem uma sugestão — vejam isto, conheçam isto. É um trabalho de responsabilização, um ato político. Se posso responder à sua questão, é apenas por este caminho.