Os discursos coloniais e patriarcais ainda ocupam uma grande mancha e
ainda não permitem que os portugueses sintam “culpa” ou “vergonha” do
seu passado colonial e assumam as suas responsabilidades, mas há agora
uma nova geração “que sabe que a glorificação colonial e a demonização
do feminismo já não são credíveis”. E isso é um bom sinal. Entrevista
com a artista, escritora e teórica portuguesa Grada Kilomba, por ocasião
do lançamento do seu livro em Portugal, mais de dez anos depois de ter
sido publicado em inglês
O
olhar estanca logo na primeira página do livro, prende-se nisto: “Ao
longo de vários anos, fui a única estudante negra em todo o departamento
de psicologia clínica e psicanálise. Nos hospitais onde trabalhei, era
comum ser confundida com a senhora da limpeza e por vezes os pacientes
recusavam-se a ser vistos por mim ou a entrar na mesma sala e ficar a
sós comigo. Deixei Lisboa, a cidade onde nasci e cresci, com um imenso
alívio”.
As palavras foram escritas pela artista, escritora,
psicóloga, teórica portuguesa Grada Kilomba, como introdução ao seu
livro “Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Quotidiano”, lançado
há mais de dez anos mas só agora traduzido para português, numa edição
da Orfeu Negro. Fala-se de racismo e do trauma do racismo, das feridas
abertas e que não saram “porque a história foi mal contada, contada
exatamente ao contrário”, e há sempre cortes que vão atingindo o mesmo
sítio, e fala-se também do feminismo negro, que foi ignorado mas tomou
entretanto “o seu próprio espaço”. “O feminismo ocidental fez um erro
fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e
homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens”. Só o facto de se
falar sobre isto justifica, na opinião da autora, a edição tardia. “Até
há relativamente pouco tempo, tínhamos em Portugal um discurso muito
colonial e patriarcal”, diz ao Expresso, numa entrevista durante a sua
breve passagem por Portugal (ela vive há dez anos em Berlim) para o
lançamento do livro. Na carta que escreve como introdução
à edição portuguesa, diz que este livro nunca poderia ter sido
publicado antes “pois os comuns gloriosos e românticos discursos do
passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais, não o
permitiram”. O que significa isto? Enfrentou entraves à publicação por
parte de editoras cá? Até há relativamente pouco tempo,
tínhamos em Portugal um discurso muito colonial e patriarcal, com uma
grande romantização do que é colonial e patriarcal. Durante muito tempo,
houve uma ausência de um discurso crítico e isso vê-se pelo facto de
muitas obras como a minha estarem a ser agora publicadas pela primeira
vez no país. Antes do meu livro, foi traduzido o de bell hooks
[intelectual e ativista afro-americana, autora de “Não serei eu
mulher?”, publicado em 2018] e o de Judith Butler [“Problemas de
Género”, 2017], que trata das questões da branquitude, feminismo,
sexualidade e queerness. E depois de mim virá Gayatri Chakravorty Spivak
[“Pode a Subalterna Falar?”, considerado um marco teórico nos estudos
pós-coloniais e com lançamento previsto para outubro]. Alguns destes
livros foram escritos há 30 anos e estão a ser traduzidos pela primeira
vez em português. É possível que haja agora um espaço para o discurso
crítico que não havia antes. O que facilitou a criação desse espaço?
Creio que há uma nova geração que precisa urgentemente de uma nova
linguagem e que sabe que as linguagens antigas não são credíveis e não
têm legitimidade. Sabem que a glorificação colonial não é credível,
sabem que a demonização do feminismo não é credível e sabem que a
patologização da sexualidade não é credível. Os discursos normativos que
nós temos na academia, nas estruturas, nos currículos e nos museus não
são mais credíveis nem compatíveis com o presente. São discursos que
pertencem ao passado. Também acho que uma grande parte desta nova
geração teve experiências de intercâmbio internacional e vê que aquilo
que aprendeu noutros países ainda não chegou a Portugal. É necessária
uma nova linguagem que pertença ao presente. De facto,
nessa mesma carta introdutória refere que há países onde já foram
inventados novos vocabulários ou desmontados termos em que estava
presente essa herança colonial, ao contrário de Portugal.
Quando falo em vocabulário ou linguagem não é apenas em termos
semânticos. Tem que ver com o discurso e com as imagens e com o
desenvolvimento de novos formatos que devolvem ao público uma perspetiva
que não existia antes. Há essa urgência de descolonizar a linguagem. A
tradução deste livro foi feita sem terminologias porque muitas dessas
terminologias ainda não existem na língua portuguesa. Foi um trabalho
extremamente moroso e problemático. Também aí apercebemo-nos do quão
colonial e patriarcal é a língua portuguesa. Dou-lhe um exemplo: o livro
é escrito por uma mulher mas as frases são transformadas no género
masculino porque os termos só existem nesse género e, de repente, há
frases que deixam de fazer sentido. Todas as terminologias existem
apenas no masculino. Isto leva a que se questione a violência da língua e
o significado de se ter uma identidade que não existe na língua falada e
escrita ou que é identificada como erro ortográfico. É violento isso.
Cria-se uma normalidade que exclui uma série de identidades da condição
humana, daquilo que é considerado normal.
O livro é o
resultado da sua tese de doutoramento na Alemanha, para a qual
entrevistou mulheres da diáspora africana que falam da sua experiência
na Alemanha. No entanto, na introdução fala diretamente para o leitor
português. É a ele que se dirige este livro? O livro trata
de várias questões, como o género, o racismo, a pós-colonialidade e a
branquitude. E trata também de experiências coletivas universais. As
mulheres que são entrevistadas, assim como eu, vêm de diásporas
africanas diferentes mas partilham a mesma experiência. Há uma
experiência coletiva, global, que é idêntica, uma experiência de
opressão, assim como a branquitude tem uma experiência coletiva, que é a
do privilégio, das políticas de ignorância, do não saber e não precisar
de saber. Portanto, tanto aqui como na África do Sul, Brasil ou EUA, há
uma violência que é global. A escravatura foi o primeiro movimento de
globalização em que pessoas foram escravizadas para serem levadas para
outro continente para enriquecer um terceiro continente. É uma história
global que une vários continentes. É
formada em psicologia clínica, estudou psicanálise e trabalhou no
antigo hospital psiquiátrico Miguel Bombarda com um psicanalista e
sobreviventes de guerra. De que modo é que esta experiência viria a ser
útil para abordar a questão do trauma no racismo, que é central neste
livro? Sempre me interessou a questão do trauma, e o trauma
ligado ao racismo e à história colonial e patriarcal, precisamente por
causa da forma subtil como a violência pode ser exercida e que sempre
retira a humanidade às pessoas. O trauma é exatamente nisso. Tem um
primeiro elemento, que é o choque, e o choque acontece não porque não se
está à espera de se ser agredido ou vivenciar o racismo ou a opressão,
mas porque se é retirado da humanidade. A pessoa não é vista como
normal, mas como diferente, marginal, como ‘outro’. Há um segundo
momento, que é o da separação, é-se fragmentado da sociedade, porque a
sociedade é vista como branca e heterossexual e todas as outras
identidades e corpos são colocados fora dessa normatividade. O que
também leva imediatamente a um terceiro elemento, o da violência da
intemporalidade — de repente, o presente é vivido como se fosse o
passado e o passado coincide com o presente. O racismo e o sexismo e
todas as formas de opressão fazem isso, colocam-me num passado que não
faz parte do presente mas passa a fazer parte da minha vida presente.
Esse desfasamento do tempo faz parte do trauma e faz precisamente porque
o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Vejo muito a
história colonial como um fantasma que vem e nos assombra, e
assombra-nos porque não foi tratado de forma digna. As coisas não foram
chamadas pelos seus próprios nomes, não houve um funeral digno, não há
um nome que apareça nos livros no lugar certo. A história é mal contada,
é contada ao contrário, e os personagens não têm um nome, uma data, um
espaço. E por nunca ter sido tratada, a ferida colonial dói sempre, por
vezes infeta, e outras vezes sangra. E quando sangra, nós ficámos
aflitos e não sabemos porquê. Acredito que a literatura e a arte podem
dar ferramentas e linguagem às novas gerações para tratar essa ferida,
para colocar as coisas nos sítios certos e saber quem é quem e o que fez
e porquê. O livro propõe uma leitura do colonialismo e
pós-colonialismo e racismo à luz de determinados conceitos da
psicanálise. De que modo é que esta leitura poderá ajudar a uma melhor
compreensão do racismo? A psicanálise trabalha com o
inconsciente, com as imagens, metáfora e associações, e, por isso,
permite ver o que geralmente não é visto, fazer uma leitura para lá do
consciente. O racismo tem uma coisa muito perigosa que é, precisamente,
trabalhar com o irracional e o ilógico, e criar discursos e imagens que
não são reais mas são experienciadas como tal. Tudo funciona através da
associação; há uma cadeia de imagens e palavras que, por si, são
ilógicas, mas tornam-se lógicas através da associação. O medo desempenha aqui um papel importante, como refere no livro...
Sim, posso dar um exemplo. Quando falamos sobre imigração e imigrantes,
geralmente fala-se de imigrantes ilegais, faz-se uma associação entre
imigração e ilegalidade. E se o imigrante é ilegal, é porque está fora
da lei, e se está fora da lei, está a cometer um crime, e se está a
cometer um crime, é porque é perigoso, e se é perigoso, temos de ter
medo, e se temos medo, podemos matar. Há uma associação de palavras e
imagens que se dá a um nível irracional. E não há nada mais traumático
do que o irracional. O racismo é traumático porque trabalha com o
irracional. É essa a sua violência, assim como a violência do sexismo e
de todas as outras formas de opressão — colocam-te fora da tua
humanidade sem que haja razão para isso.
Ao longo destas páginas, fala muito sobre o racismo quotidiano e o trauma do racismo. Qual a relação entre ambos?
Acho que uma das funções do racismo diário é precisamente fazer
prevalecer a supremacia branca, é colocar as pessoas do presente no
passado, impedi-las de estar de facto no presente; há um ato de
reencenação, daí que o livro se chame “Memórias da Plantação”. Foi isso
que me interessou trabalhar neste livro e noutras peças. Hoje mesmo [17
de maio] inaugurou uma instalação em vídeo na Gulbenkian [“Illusions,
vol. I, Narcissus and Echo”] que está em diálogo com o livro e que
aborda precisamente estes temas. Narciso é como uma metáfora da
sociedade colonial patriarcal que só se vê a si própria, só se repete, e
inviabiliza todos os outros, e Eco é a mulher, que é reduzida ao
silêncio, que não tem voz e quer falar. Na encenação, ela pega nos
microfones mas ainda assim as únicas palavras que ouvimos são as do
patriarca.
Também
diz que a maior parte da literatura sobre racismo não conseguiu tratar
da posição específica das mulheres negras e que estas também estiveram
durante muito tempo invisíveis no projeto feminista global. Os
movimentos feministas atuais já se redimiram disto? As mulheres negras
já são ouvidas? Não diria que se redimiram, diria antes que
as mulheres negras é que tomaram o seu próprio espaço. O feminismo
ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e
meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos
homens. Isso não explica a nossa história global, se tivermos em conta a
história colonial que dominou e definiu o mundo durante 500 anos: o
homem negro foi dominado pela mulher branca e a mulher negra continua a
trabalhar para a família branca. O feminismo ocidental ignorou essa
história e é impossível, na minha opinião, não encarar o anti-racismo
como parte de um movimento de libertação. A partir do momento em que
este não é incluído, estão a excluir-se automaticamente uma série de
identidades e realidades. Isso sempre foi muito claro para o feminismo
negro, que acabou então por criar o seu próprio movimento, um movimento
que é muito radical e alimentou outros movimentos, que é
transdisciplinar e de solidariedade entre mulheres negras, mulheres
queer e mulheres transgénero, estando também em solidariedade com os
homens negros. O feminismo negro trouxe outro modelo de pensar o
feminismo em que raça, género, classe e outra série de categorias não se
excluem umas às outras; é muito mais avant-garde do que o feminismo por
si, que ainda está a perceber que há outros níveis e camadas e que não
se pode ignorar a branquitude. E não se pode ignorá-la porque a mulher
branca posicionou-se como vítima de uma sociedade e nunca se viu como
opressora e como dominante. Nunca se posicionou na sua história colonial
e nos privilégios que sempre teve. A mulher negra, por outro lado,
sempre foi excluída de todos os discursos. Não somos homens nem somos
brancas, e portanto a nossa posição sempre foi mais frágil.
“Tem-se
negligenciado a realidade vivida do racismo, as experiências, as lutas,
o conhecimento, a compreensão e os sentimentos das pessoas negras no
que toca ao racismo”, escreve também. Como é que os órgãos de
comunicação social, e em específico os portugueses, têm contribuído para
isso? A nossa comunicação social é genericamente racista? … Não sei. Eu já não vivo em Portugal, não posso responder a essa pergunta. Mas da realidade que conhece... Acho que não consigo responder a essa pergunta, não quero… Não. Está bem.
Na primeira e última vez em que vim apresentar aqui o meu trabalho
[MAAT e Galeria Avenida da Índia, em 2017, tendo a artista já exibido o
seu trabalho em diversos contextos internacionais como a 10.ª Bienal de
Arte Contemporânea de Berlim e a 32.ª Bienal de São Paulo], conheci
muitas jornalistas mulheres que se mostraram muitos envolvidas nestes
temas, muito interessadas, e que exigiram que o meu trabalho tivesse um
grande impacto e visibilidade nos media. Achei impressionante que tenha
sido coberto de uma forma tão digna e tão presente e tão exigente.
Trata-se de decisões, a meu ver, muito importantes e que têm que ver com
reeditar a estrutura. O racismo é um problema estrutural,
institucional, e portanto é importante decidir qual o espaço dado e
quanto espaço, quais temas ocupam quanto espaço e de que forma são
tratados. Os media têm essa responsabilidade perante o público. Quando
estamos a falar sobre racismo e todas as outras formas de opressão, não
estamos a falar de moralidade, estamos a falar sobre responsabilidade,
que tem que ver com um processo de consciencialização: começa com a
negação, da negação passa-se à culpa, da culpa à vergonha, da vergonha
ao reconhecimento e deste, finalmente, à reparação. Reparar significa
precisamente isso, arranjar o que estava estragado e perceber a
violência de certas estruturas. Mas este processo só pode acontecer se o
que estamos a falar tiver visibilidade, tiver espaço. Os media têm um
papel importante porque fazem uma sugestão — vejam isto, conheçam isto. É
um trabalho de responsabilização, um ato político. Se posso responder à
sua questão, é apenas por este caminho.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
«E enquanto se entretêm com o jogo das cadeiras a extrema-direita
continua a crescer, a esquerda a definhar e a Europa a afundar-se.» Daniel Oliveira, in Expresso Diário online, 30/05/2019
1. Em política, normalmente estratégia tem o significado de objectivo final, programático; por exemplo: uma sociedade socialista como antecâmara preparatória da sociedade comunista. Contudo, pode significar, em determinadas opções programáticas, uma sociedade moderna e avançada, um regime democrático (bem mais democrático) social, com governos das esquerdas (alianças ou coligações), em que a palavra "esquerda" esteja na prática, nas políticas a favor das massas trabalhadoras, com a participação efectiva e permanente destas (através de seus delegados), em que o capital esteja presente na economia mas sem poder exercer a dominação em qualquer esfera, e outras características profunda e realmente reformistas. Tal regime, descrito assim, não é menos social-democrata do que eram os projectos da social-democracia, no ponto de vista exclusivamente programático e teórico (na prática, a história é outra) em tempos antigos.
Por táctica entende-se os modos como se pretende alcançar a estratégia (propor ou aceitar coligações eleitorais ou pós-eleitorais para constituir governos, acordos parlamentares, agir por meio de greves gerais e manifestações públicas maciças, etc.).
2. As tácticas podem alterar-se de um momento para o outro, dependendo de decisões de agrupamentos políticos ou dos dirigentes que entendem que as circunstâncias se alteraram e que o objectivo central estratégico pode ficar dificultado mantendo-se a mesma táctica. Dificultado significa nomeadamente a perda real e iminente de importantes posições políticas.
3. Quando uma determinada táctica se mostrou inteiramente correcta numa determinada fase histórica, pontual e temporal, não significa necessariamente que continue a sê-lo quando se verifica grave perda de forças e posições políticas.
4. Já o escrevi neste meu blogue: tanto nos podemos servir de exemplos históricos a favor de alianças, coligações, aproximação de posições, com os chamados partidos socialistas ou social-democratas (refira-se o nome aqui, não a prática), e exemplificamos com o Governo de Salvador Allende no Chile, O governo de Chavez na Venezuela, etc., como podemos recorrer facilmente a exemplos negativos que pretendem afastar coligações e outros acordos, e exemplificamos com o "Programa Comum" na França do século passado. Qualquer exemplo é concreto, não deve ser convertido em "tendência" e muito menos "lei". Isto é: o caso do Chile foi uma situação nacional muito própria; no caso francês tínhamos a hegemonia a Ocidente do chamado "eurocomunismo" (deriva dos PCs para a social-democracia).
Nozes Pires
O PS conseguiu o resultado que desejava, ficando bastante destacado do
PSD. A verdade é que o PS fica cinco pontos percentuais acima do PSD e
do CDS juntos que, apenas mais um do que em 2014, lhe deu uma vitória
“poucochinha”. Ninguém fará esta conta e isso é que interessa. O Bloco
de Esquerda é, com o PAN, o que mais tem a festejar nesta noite,
recuperando a vantagem à esquerda. Mas não mudou muito em cinco anos
Como
nota prévia, a abstenção. A comparação com 2014 é enganadora. É verdade
que a abstenção, há cinco anos, foi de 66,2% e este ano foi de 69%. Mas
a verdade é que até votaram mais eleitores. Por uma razão: o registo
dos emigrantes que vivem noutros países europeus é automático, o que
correspondeu a um aumento de um milhão de pessoas nos cadernos
eleitorais (emigrantes), aumentando assim a base eleitoral e, por
consequência, a taxa de abstenção. Para o que realmente interessa, a
abstenção não aumentou de forma significativa. A abstenção é um
excelente retrato do nosso europeísmo acrítico. Somos
euroabstencionistas. Mas é a verdade é que fazemos parte do clube dos
mais abstencionistas. Tenho uma tese sobre isso: nada se joga aqui. Em
muitos países europeus, houve, por causa da extrema-direita, uma
dramatização que levou mais gente às urnas.
Antes de tudo,
temos de decidir o que é vencer ou perder nestas eleições. Uma parte é
psicológica – não é nada irrelevante na política –, outra é importante
para os efeitos que tem na vida político-partidária, outra é real no
campo em que estas eleições acontecem: a Europa. Comecemos pela
primeira. E socorro-me do excelente TEXTO
preparatório deste dia feito pelo David Dinis, escrito na última
quinta-feira, que é um bom guia não adaptado aos resultados quando eles
já se conhecem.
Nas Europeias de 2014, o PS teve 31,5%, pouco
mais de um milhão de votos – mas legislativas seguintes, em outubro de
2015, teve 32,3%, tendo ficado atrás da coligação de direita. Nas
últimas europeias, o PS ficou quatro pontos percentuais acima do PSD e
do CDS e António Costa considerou isso “poucochinho”. Se somarmos a
votação do PSD e do CDS temos um resultado da direita de 28,2%. Se ainda
lhe juntarmos a Aliança, que é uma cisão do PSD, fica com 30%. Com
33,4%, o PS ficou cinco pontos acima disso, no cenário mais simpático.
No mais antipático ficou apenas a 3,5. Apesar do mau resultado da
direita, não me parece que o PS tenha motivos para fazer uma festa de
arromba. A diferença é a mesma que levou Costa a falar de “poucochinho”.
Mas como estamos a falar de sensações...
O PS conseguiu o
resultado que desejava, ficando bastante destacado do PSD. A verdade é
que o PS fica cinco pontos percentuais acima do PSD e do CDS juntos,
que, apenas mais um do que em 2014, lhe deu uma vitória “poucochinha”. O
Bloco de Esquerda é, com o PAN, o que mais tem a festejar
Como a
direita concorreu em conjunto nas últimas legislativas e europeias, só
em conjunto pode objetivamente ser avaliada. É verdade que o PSD e o CDS
tinham tido 27,7%, cerca de 900 mil eleitores. Tinham sete
eurodeputados (seis para o PSD e um para o CDS). Mas não podemos ignorar
que, nessas eleições, Marinho Pinto teve 7%. Um ano depois a PàF
conseguiu 38,5%, que já era uma grande queda em relação às eleições
anteriores. Como recordou David Dinis, o pior resultado do PSD sozinho
em europeias foi de 31,1%, em 1999, e a última vez que concorreu
sozinho, em 2009, teve 31,7%. Os 22% são uma derrota evidente. Uma
pesada derrota, na realidade.
Quanto ao CDS, a última vez que
foi a europeias sozinho, em 2009, teve 8,4%. As outras vezes que
concorreu sozinho foi em 1999 (8,2%), em 1994 (12,5%), em 1989 (14,2%) e
em 1987, quando houve eleições legislativas simultâneas (15,4%).
Manteve o eurodeputado eleito mas, com 6,2%, tem um resultado
catastrófico. O que tivemos nestas eleições foi uma deslocação de votos
para a esquerda. E o CDS ficou preso num discurso radicalizado que não
conseguiu segurar os eleitores. PSD e CDS podem ter sido punidos, numa
eleição que mobiliza os mais convictos, os professores podem ter
contado.
O Bloco teve 4,5% nas últimas europeias, com cerca de
150 mil votos. Só tinha conseguido eleger Marisa Matias. No entanto,
este resultado aconteceu num momento extraordinariamente mau para o BE.
Nas legislativas seguintes teve 10,2%. O melhor resultado do Bloco em
Europeias foi em 2009, com 10,7%. O Bloco é, com o PAN, o maior
vitorioso desta campanha. Teve 9,8%, elegeu dois deputados e isto foi um
sinal fortíssimo para as próximas eleições.
Já a CDU foi o
oposto. Teve um resultado especialmente bom em 2014: 12,7%, mais de 400
mil votos. Em termos de votos, quase o mesmo que teve nas legislativas
(pouco menos de 450 mil), que corresponderam a 8,25%. O mais importante
no PCP, que sofre menos com a abstenção, são os votos. Um mau resultado
nas europeias é um péssimo sinal para as legislativas. Teve 6,8% e
perdeu um deputado. É verdade o que diz o PCP: o extraordinário
resultado de 2014 teve relação com um forte sentimento antieuropeísta
logo depois da intervenção da troika. As coisas são mais difíceis agora.
Mas o mais importante, por razões mais psicológicas do que políticas, é
a posição relativa em relação ao Bloco. Depois da perda da liderança à
esquerda nas legislativas e de ter recuperado, nas últimas europeias,
esse lugar, esta derrota terá fortes efeitos nos próximos meses. A
estratégia de isolamento do BE, para uma “geringonça” a dois com o PCP, é
cada vez mais improvável. Nunca os comunistas se meteriam em tal
aventura.
Há ainda os pequenos partidos. Nas ultimas eleições,
MPT (com Marinho Pinto), Livre, PAN e MRPP foram os extraparlamentares
que ficaram acima de 1%. Graças ao resultado de Marinho Pinto, os
partidos fora dos cinco grandes tiveram, juntos, cerca de 16%, e mais de
meio milhão de votos. Nestas tiveram cerca de 14%. Mas é evidente que
se têm de destacar os resultados extraordinários do PAN: 5% e um
eurodeputado. Tudo indica que os animalistas entraram definitivamente no
cenário político português. Mas o resultado do PAN desmente a ideia de
que o voto nos pequenos é a revolta de quem queria ouvir falar da
Europa. O PAN foi, dos pequenos, o que menos o fez. E quem os ouviu a
falar sobre o tema terá reparado que era, de todos eles, de longe, o
menos preparado de todos. A diferença entre o PAN e Marinho Pinto é que o
PAN, já estando na Assembleia da República, pode capitalizar isto para
ser mais de um epifenómeno. Mas se este é o nosso fenómeno ecologista,
estamos bem tramados. Mas é provável que o PAN venha a ser uma força
importante na próxima legislatura. Talvez aquela com que o PS sonha
aliar-se: uma aliança que sairia quase de borla. Como nota, Marinho
Pinto, que teve direito a participar no debate dos grandes, teve 0,5%.
Em resumo: Poara o ambiente político de que precisa, o PS conseguiu o
resultado que desejava, ficando bastante destacado do PSD. A verdade é
que o PS tinha quatro pontos percentuais acima do PSD e do CDS juntos
que, em 2014, lhe deu uma vitória “poucochinha”. Agora tem cinco.
Ninguém fará esta conta - e isso é que interessa. O Bloco de Esquerda é,
com o PAN, o que mais tem a festejar, recuperando a vantagem à
esquerda. Uma vitória pessoal de Marisa Matias que veremos se o BE
consegue transportar às legislativas. A CDU fica numa situação muito
difícil, e a dificuldade dos comunistas mata à nascença o sonho infantil
de fazer uma geringonça a dois. Não vai acontecer. O CDS talvez aprenda
que a radicalização do discurso, tentada por Nuno Melo, não resulta. E o
PAN, que terá um papel nas próximas legislativas, prova que não foram
os temas europeus que moveram o voto de protesto. Bem espremido, a
esquerda à esquerda do PS teve 17% em 2014 e tem 16,5% em 2019. O PS
teve 31,5% e tem 33,5%. A direita teve 27,7% e tem 28,2%. E um partido
vindo de fora, e que serve bem a função do protesto, teve 7% e agora tem
4,5%. Não mudou muito em cinco anos.
Depois há o impacto real
que os resultados nacionais têm em Portugal, sobretudo sabendo que há
eleições legislativas em outubro. Devemos ter em conta aquilo que já
sabemos de europeias anteriores. Que os partidos extraparlamentares
costumam ter a vida muito mais facilitada em legislativas, que não têm
um circulo único e onde a pressão do voto útil é inexistente. Que o PCP,
com um eleitorado mais fiel, costuma ser beneficiado em eleições onde a
abstenção é maior. E que os partidos da oposição tendem a ter melhores
resultados nas europeias, não sendo isso um padrão seguro. Vistos os
resultados, percebemos o que andou a fazer António Costa. Não andou a
falar da oposição à extrema-direita, andou a negociar com os liberais a
forma destes e os socialistas poderem competir por lugares com os
populares. É só sobre isso que se fala na Europa.
Nenhum
destes resultados terá grande peso nos equilíbrios do Parlamento
Europeu. Farei uma análise dos resultados no resto da Europa para o
texto de terça-feira. Apenas uma ideia simples: que apesar do alívio
absurdo, a extrema-direita ganhou mais espaço, que os verdes foram os
grandes vitoriosos da noite, que os conservadores caíram muito e os
social-democratas se despenharam aparatosamente, não sendo provável que
aprendam que alianças à direita os fazem perder votos para todos os
lados. É provável que os votos do partido unipessoal de Emanuel Macron
chegassem para que os socialistas europeus ficassem à frente do PPE. Mas
o aliado de Costa foi para os liberais. E é com eles que os socialistas
falarão para conseguir lugares na luta contra os populares. As lições
desta eterna cedência e incapacidade de construir um discurso próprio
ficam para daqui a cinco anos, quando desaparecerem mais um pouco.
Era num filme do Kusturika. Um doente queixava-se de
dores na cabeça e apontava-a, e aqui, e apontava o coração e também aqui, e
pressionava o estômago. E o médico responde-lhe: «Não há nada de errado com o
seu corpo, é o seu dedo que está partido». Livrem-se de diagnósticos
equivocados, de ideias engarrafadas e alheias, bebam directamente da fonte, que
até é mais saudável. E isto não é um post sobre doenças (ou não apenas), mas
sobre a importância de votar na CDU nas próximas europeias (a ordem é
aleatória)
- Porque para nós não há «rectas finais», e a luta
continua muito para lá da noite eleitoral. Porque não olhamos para as pessoas
como eleitores cíclicos nem lhes oferecemos canetinhas.
- Porque por mais que repitam, insistam, moam, ecoem,
repliquem… Não, os políticos não são todos iguais. E não é por nos massacrarem
com essa frase batida até escorrerem baba, que a tornam verdadeira. Essa ideia
é falsa, muito perigosa e tremendamente injusta.
- Porque nenhum candidato da CDU vai para o Parlamento
Europeu para enriquecer, fazer carreirismo, malabarismos, tirar proveitos
pessoais, armar negociatas. E temos a certeza de que não os iremos, um dia,
encontrar em conselhos de administrações de empresas.
- Porque basta ver um – apenas um, disse Miguel Tiago
– debate televisivo para percebermos que o João Ferreira, para enorme
desconforto dos restantes candidatos, tem uma postura irrepreensível, um
conhecimento de causa, de todos os assuntos, de todos os dossiers, uma
inteligência rara, um raciocínio tão rápido quanto claro, tão sólido e firme
quanto consistente. E em permanente disponibilidade de prestação de contas aos
portugueses pelo trabalho desempenhado. Em linguagem cinematográfica, João
Ferreira é aquele que «rouba» a cena. E nem precisa de efeitos especiais.
- Porque três deputados da CDU fazem mais e melhor
pelo país do que os restantes 18 juntos.
- Porque não aceitamos que nos apequenem, não queremos
ser os obedientinhos ou os alunos bem comportados da Europa, que a tudo dizem
que sim, os deslumbradinhos com os fundos europeus, como se o que recebemos
fosse solidariedade: não é. Tudo o que nos «oferecem», temos de devolver em
dobro – e muito tem lucrado o Banco Central Europeu com a nossa dívida…
- Porque não queremos ser dissolvidos culturalmente,
não queremos ser tratados como consumidores, mas sim como cidadãos.
- Porque a CDU é uma voz incómoda na União Europeia, a
voz da não submissão, inequivocamente democrata e de esquerda. De absoluta
confiança. Uma voz que não se amedronta nem se verga. E não há força política
alguma em Portugal que celebre com tanta alegria e propriedade a democracia, a
liberdade, a igualdade, a justiça social – que, aliás, o PCP ajudou e batalhou
muito para construir.
- Porque assumirmo-nos publicamente enquanto
comunistas e de esquerda é um orgulho, mas não um acto de coragem: essa está
reservada para combates bem mais duros, e os comunistas sabem do que estão a
falar. O preconceito ideológico existe, a invisibilização mediática também, mas
estamos mais que habituados a caminhos agrestes. Isso não nos impressiona nem
nunca nos imobilizou.
-Porque não deitamos as mãos à cabeça por causa do
ambiente agora. Não embarcamos na moda do ambientalismo e dos direitos dos
animais. Já é uma prioridade nossa desde os anos 80. Há quatro décadas que
declarámos o planeta em estado de emergência.
- Porque os portugueses precisam de uma força que
admita o óbvio: que este projecto de União Europeia é confuso e desconjuntado,
sem referenciais de progresso, com um preocupante pendor neoliberal e até
militarista. E nisto, o populismo a ganhar espaço, pasto fértil para extremas
direitas e fascismos.
- Porque, como tem dito João Ferreira, em política não
há inevitabilidades nem becos sem saída. É possível, sim, uma União de estados
de cooperação solidária, com relações mutuamente vantajosas, menos invasiva das
soberanias nacionais e menos destrutiva das forças produtivas internas. Como é
possível que tenhamos de importar 70% do nosso pescado, mesmo possuindo a maior
Zona Económica Exclusiva? Como é possível termos obedecido quando nos mandaram
a abater metade da nossa frota pesqueira? Como é possível importarmos 90% do
trigo que consumimos?
- Porque é preciso alguém que denuncie a desastrosa
política de intervencionismo externo da União Europeia, nomeadamente no Iraque,
na Líbia e na Síria. E responsabilizá-la também pela terrível crise humanitária
dos refugiados, que tornam o Mediterrâneo numa vala comum.
- Porque vivemos tempos oclusos, sombrios, difíceis de
decifrar, em que a incultura passou a ter poder e a mentira passou a valer. E o
desmentido não tem a mesma força do que a prévia adulteração. Porque são os
tempos de conceitos estranhíssimos, como o da pós-verdade, em que os factos
valem menos do que as emoções que eles provocam, menos até do que aquilo em que
as pessoas querem à força acreditar.
- Porque se, nos anos 70, Sophia disse a famosa frase
«a cultura é cara, mas a incultura ainda é mais cara e a demagogia é
caríssima», calculem o preço que estamos a pagar pelos populismos. Por esta
escalada de disseminação de fake news,
perfis falsos, empresas especializadas em viralizar vídeos fictícios, rios de
dinheiro para criar uma malha de mentiras, de falsidades, difíceis de
controlar. Portanto é preciso mantermo-nos em estado de alerta: a democracia é
uma haste débil muito fácil de derrubar, basta um sopro; difícil é depois
consertá-la.
- Porque obviamente não são tempos fáceis para
candidaturas sérias, com provas dadas e projectos e convicções coerentes. O
grotesco, o caricato, o ridículo passou a ter valia eleitoral. As pessoas
zangadas com o que o capitalismo lhe fez à vida, optam por soluções
auto-destrutivas, e elegem para cargos poderosos figuras de BD, com total
impreparação e que conseguem reunir em si tudo o que de medonho e obscurantista
existe na natureza humana.
- Porque, ainda assim, não nos moveremos um milímetro
da nossa forma de estar e de fazer política.
Žižek: A eleição de Bolsonaro e a nova direita populista
Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo, o
filósofo esloveno comenta a eleição de Bolsonaro no contexto da onda
global de ascensão da extrema-direita populista e provoca: “a única
maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base
de uma política mais radical de esquerda”.
O filósofo
esloveno Slavoj Žižek bateu um papo via Skype com Artur Renzo, editor do
Blog da Boitempo, sobre a eleição de Bolsonaro no contexto da onda
global de ascensão da extrema-direita populista e a implosão do centro
político. Para ele, o desafio é saber diferenciar o sintoma de sua
causa: o acontecimento-chave do mundo hoje não é o surgimento da nova
direita, e sim a desintegração do grande consenso liberal capitalista ao
qual ela responde. Assim, a resposta a esse fenômeno não deveria ser
ensaiar um novo populismo de esquerda, nos moldes das figuras de direita
que estão ganhando espaço. Mais do que nunca, a esquerda precisa manter
sua vocação internacionalista para fazer frente ao capitalismo global.
Maoísta de ocasião, Žižek vê na desordem da conjuntura atual uma janela
de oportunidade diante da qual a esquerda deve ter a ousadia de propor
uma nova visão básica da sociedade.
Quanto ao
Brasil, o filósofo demonstra certa preocupação acerca da preservação de
uma democracia formal no país com Bolsonaro, mas vê que a implementação
de uma política de austeridade pode minar a legitimidade do novo governo
e manter nas mãos da esquerda o monopólio sobre a política
antiausteridade. Žižek alerta ainda para a armadilha de priorizar neste
momento a composição de uma frente ampla de defesa da democracia com
setores de centro e centro-direita, em vista de preservar um programa
mínimo contra a ameaça posta pela extrema-direita. E provoca: “a única
maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base
de uma política mais radical de esquerda”. Confira a tradução completa
da entrevista abaixo.
* * *
Como você situa o caso
brasileiro atual, com a eleição de Jair Bolsonaro, no contexto global
mais amplo, marcado pela ascensão de populismos de direita e
extrema-direita em diversos países?
Até onde sei, o caso brasileiro é
bastante singular. Não é como na Europa Ocidental, onde oponente não é,
como no caso de vocês, um movimento relativamente honesto de esquerda. O
oponente lá é simplesmente o establishment – talvez um pouco de esquerda, democrático, mas ainda assim o establishment.
Na Europa Ocidental, o que está desaparecendo é a social-democracia
tradicional. O que se tem é uma oposição entre aquilo que denomino o establishment
liberal de esquerda (que é economicamente neoliberal mas socialmente a
favor de direitos LGBT, das mulheres etc.) e esse novo populismo de
direita.
No Brasil, parecia que o populismo não
era principalmente um populismo de direita. Com Lula e Dilma, a esquerda
havia ocupado esse espaço. Mas aqui vou traçar algumas observações que
provavelmente soarão problemáticas para muitos de vocês. Não concordo
com toda essa ideia de um populismo de esquerda. Está na moda defender
isso na Europa Ocidental e nos Estados Unidos: por que deixar o
populismo – essa modalidade engajada de política, centrada no
estabelecimento de um conflito com um determinado inimigo –, por que
deixar o populismo exclusivamente na mão dos direitistas? Por que não
responder a ele com um populismo nosso, de esquerda?
Por motivos teóricos e práticos creio que não devamos trilhar esse caminho. Como admite Ernesto Laclau – que é o
teórico do populismo –, o populismo concentrou-se em construir uma
imagem clara do inimigo. É claro que, no nosso caso, os inimigos não
seriam os estrangeiros, os imigrantes etc., seriam algo como as elites
financeiras, a classe dominante etc. Mas o problema aqui,
fundamentalmente, é que as coisas não são tão simples assim… Vejamos o
caso dos Estados Unidos. É claro que o inimigo imediato é Donald Trump,
mas penso ser absolutamente crucial se colocar uma pergunta mais
profunda. Como diz Michael Moore, logo no início de seu novo
documentário, Trump não caiu do céu. Foi com o fracasso do establishment
liberal de esquerda que abriu-se espaço para o surgimento de figuras
como Trump. Essa é a grande decepção. O pacto político que regulou os
países desenvolvidos nas últimas décadas foi o pacto desse establishment liberal.
Jamais devemos esquecer que uma
democracia (e aqui não me refiro a uma autêntica democracia do povo, mas
uma simples democracia multipartidária, em que diversos partidos
disputam o poder) só funciona sob o pano de fundo de certo consenso ou
pacto. Você pode fazer suas escolhas, promover seus debates etc., mas
somente dentro dos limites de certo pacto ou marco consensual. De forma
que, por exemplo, nos Estados Unidos você tem os Republicanos e os
Democratas. É verdade que eles têm suas diferenças, mas eles
compartilhavam todo um conjunto de ideias e premissas básicas. O mesmo
valia para a Europa Ocidental.
O que mudou agora? Dois anos atrás, você lançou uma provocação
ao afirmar que a eleição de Trump seria melhor do que a de Hillary, no
sentido de que poderia abrir o caminho para o surgimento de uma esquerda
radical mais autêntica, livre das amarras desse grande consenso liberal
representado pelo Partido Democrata. Como você avalia essa questão
agora, com dois anos de Trump na Casa Branca? Você arriscaria dizer que
algo parecido talvez seria aplicável para o caso brasileiro, com a
eleição de Bolsonaro?
O que está ocorrendo agora com Trump é
que esse pacto liberal está se desintegrando. Penso que não devemos cair
na armadilha (na qual boa parte dos liberais atualmente se encontra) de
pintar Trump como o grande demônio e tentar implicitamente retornar a
esse pacto liberal de esquerda, Estado de bem-estar social e tal. Não!
Esse pacto está perdido. Devemos aprender com Trump a aceitar essa ideia
de que o velho pacto político que sustenta nossa sociedade está ruindo.
E é preciso agora ter a ousadia de propor um novo pacto social, nosso,
mais à esquerda – um pacto, ou, se quiser, uma visão básica da
sociedade. Nesse sentido, sou maoísta. Como dizia Mao: “Tudo sob o céu
está mergulhado no caos; a situação é excelente”. Com Trump, há uma
grande desordem sob o céu estadunidense. Por isso, eu diria que a
situação também é um pouco propícia, no sentido de que há uma
abertura única para que nós, uma esquerda mais radical, possamos fazer
algo. E incluo aqui não apenas Bernie Sanders, mas todas as gerações de
outros democratas de esquerda mais radicais que não temem reabilitar a
palavra socialismo.
Agora, essa é a imagem geral. Sobre o que
ocorre no Brasil, não posso dizer que sei o suficiente. Quer dizer, eu
sei que houve uma grande manipulação. A forma pela qual Bolsonaro e seus
demagogos populistas de direita foram capazes de mobilizar essa eterna
acusação contra Lula, Dilma e seus partidários de que eles seriam os
representantes da corrupção, que eles seriam parte de um Estado não
transparente, corrupto e por aí vai… Eu não conheço suficientemente a
situação brasileira para opinar aqui, mas diria o seguinte: quando disse
ironicamente que votaria em Trump, o que eu quis dizer era que ele
seria bom, negativamente, para estilhaçar a ideologia hegemônica
existente e, nesse sentido, abrir espaço para o surgimento de uma
esquerda mais radical. Mas não penso que essa seja uma fórmula
universal. Mesmo no caso da Europa Ocidental – porque temos um tipo
diferente de Estado na Europa, muito mais centralizado –, eu jamais
teria dito algo como “Vote na Marine Le Pen!”, porque com ela no poder à
frente do Estado francês teríamos algo muito maior do que Trump. O
Estado francês é muito mais forte e centralizado e regula num grau muito
maior a vida social como um todo. Teria sido uma verdadeira catástrofe.
Temo que o mesmo valha para o Brasil.
Slavoj Žižek em entrevista via Skype com Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo.
Em seus artigos mais
recentes, você resume da seguinte maneira a “pervertida situação
política” da Europa: por um lado, temos a “esquerda” oficial
efetivamente implementando políticas de austeridade (ao mesmo tempo que
assume a pauta progressista e multiculturalista no que diz respeito aos
valores) e, por outro, temos a “direita populista” de fato tomando a
frente das medidas antiausteridade (e empunhando a bandeira e o discurso
da xenofobia e do nacionalismo). Nesse sentido, me pergunto se a
infeliz novidade que temos agora no Brasil não seria que o nosso governo
eleito parece juntar o pior desses dois mundos: ele é economicamente
pró-austeridade e ao mesmo tempo extremamente reacionário no que diz
respeito a direitos humanos, ações afirmativas, direitos das mulheres e
das minorias etc.
Isso é muito interessante! Quer dizer, se
o Estado brasileiro permanecer, ao menos em algum sentido formal (no
sentido corriqueiro do termo), basicamente democrático, essa situação,
apesar de tudo, abre espaço para que a esquerda ao menos retenha o
monopólio da política antiausteridade, por assim dizer. Porque o que faz
de Trump um perigo tão grande é precisamente esse aspecto. Se você
prestar atenção ao que diz Steve Bannon, ele afirma abertamente coisas
como “Eu não sou pró-austeridade. O Estado deveria gastar mais com os
trabalhadores”, e por aí vai. Bannon é realmente um perigo. Ele quer
aumentar os impostos dos ricos a 44%, até mais. E na Europa temos ainda
mais disso. Na Hungria e especialmente na Polônia (que, como você sabe, é
o caso mais perigoso), o atual governo, extremamente católico,
implementou uma série de medidas que nenhuma social-democracia na Europa
jamais teria se atrevido a fazer: reduzir a idade de aposentadoria,
elevar a previdência, melhorar a saúde pública, ampliar o apoio
financeiro aos estudantes etc.
E aqui devemos ter muita cautela na
análise. Dou um exemplo. Muitos dos meus amigos ficaram horrorizados
quando Syriza capitulou, sabe? E eu concordo, eles não deveriam ter
feito isso. Mas também não era simplesmente como se eles tivessem uma
escolha. Não se tratou de uma simples traição, mas da revelação de uma
necessidade mais profunda. Esse para mim foi o momento de verdade
daquele processo todo. É por isso que sou muito cético quanto àquela
ideia bastante em voga hoje entre certos setores da esquerda de que, da
mesma forma que novos populistas como Bannon ou Trump em geral investem
no nacional populismo de direita, também a esquerda deveria defender
algo análogo. Não, eu não acredito que seja possível derrotar o
capitalismo global jogando com cartas nacionais. Não compro essa ideia
de nos retirar da União Europeia, ou o que quer que seja, para tocarmos
nossa própria política nacional.1 Não se pode fazer isso. O capital global é um fenômeno internacional. A resposta a ele também terá de ser internacional.
É por isso que vejo alguns sinais
progressistas em certas movimentações hoje. Você sabe que há agora um
eixo – que não é um eixo do mal, mas digamos um eixo do bem – se
formando: Sanders e seus democratas de esquerda nos EUA estão
estabelecendo ligações com Corbyn e com o Partido Trabalhista inglês, e
com alguns movimentos de esquerda como aqueles em torno de Varoufakis e
similares na Europa. Precisamos permanecer – e digo que isso é mais
importante hoje do que nunca – precisamos permanecer internacionalistas.
O próprio Fernando Haddad
está em Nova York agora, a convite de Varoufakis, para participar do
lançamento dessa frente. Uma das questões que a esquerda brasileira
debate hoje no que diz respeito à organização da oposição a Bolsonaro é o
seguinte: até que ponto se deve investir na criação de uma frente ampla
“democrática” contra o neofascismo e a extrema direita, priorizando
assim a busca por pontos de contato mínimos com setores de centro e até
centro-direita contra um perigo maior; ou se, pelo contrário, ela deve
radicalizar ainda mais seu discurso e seu programa pra tentar atingir
maior apoio popular. Como você avalia esse dilema?
Essa é uma pergunta traiçoeira! Penso que
devemos tomar muito cuidado aqui. É claro que, por motivos táticos,
quando você quer barrar determinada legislação perigosa de direita, não
há problema algum em estabelecer coalizões táticas com quem quer que
seja. Mas eu não diria que devemos renunciar totalmente nossa visão mais
radical de esquerda. Não apenas por conta de algum tipo de purismo
esquerdista. Penso que não devemos jamais perder de vista que a crise à
qual Bolsonaro e Trump aparecem como respostas é a crise do establishment liberal de centro.
Há coisas boas no liberalismo: liberdades
humanas, direitos LGBT, direitos das mulheres etc. Mas, no longo prazo,
a única maneira de redimir, de salvar aquilo que há de bom na tradição
liberal será na base de uma política mais radical de esquerda. Aquilo
que, por exemplo, o Partido Trabalhista está tentando fazer na
Inglaterra, com Jeremy Corbyn.
Não penso que devamos apostar todas as fichas na direção do “agora
estamos diante de um enorme perigo e devemos todos nos unir contra os
novos populistas de direita”.2 Se fizermos isso, mesmo que tenhamos êxito, só voltaríamos à situação que ensejou o nascimento do populismo de direita.
Algum recado final para seus leitores brasileiros?
Mande um salve para todos aí no Brasil.
Diga a eles que estamos todos na mesma merda. O jeito é tentarmos
permanecer o mais alegre que pudermos neste inferno em que vivemos!3
NOTAS 1 Tariq Ali defendeu recentemente essa posição no contexto do Brexit em entrevista a Edemilson Paraná e Gustavo Capela para o número 29 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Žižek desenvolve sua crítica a essa ideia em sua coluna no Blog da Boitempo aqui. [N. E.] 2 O cientista político André Singer, organizador de As contradições do lulismo, defendeu
essa posição na plenária pós-eleições convocada por Ruy Braga, com
Marilena Chaui e Vladimir Safatle no dia 1º de novembro de 2018 na USP.
Confira a gravação completa da intervenção dele na TV Boitempo clicando aqui. [N. E.] 3 Tradução de Artur Renzo, com colaboração de Thaisa Burani. [N. E.]
Depois de muitos pedidos, ele chegou: o livro de Žižek sobre cinema ganha nova edição, totalmente revista e ampliada! Em Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno,
o filósofo esloveno propõe um estudo aprofundado das motivações de
diretores renomados internacionalmente, como Krzysztof Kieślowski,
Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski e David Lynch. Esta nova edição traz
seis novos textos e análises originais sobre o cinema contemporâneo:
Žižek analisa sucessos hollywoodianos recentes como “Blade runner 2049”,
“Batman: O cavaleiro das trevas ressurge”, e o novo “Pantera Negra” da
Marvel, além de uma análise leninista de “La La Land”.
“Os
ensaios reunidos neste livro estão conectados não só pela riqueza do
método, mas também pelas referências reiteradas a ideias que se
manifestam em obras tão distintas quanto as de Kieslowski, os irmãos
Wachowski, Hitchcock, Tarkovski e David Lynch.” — Sérgio Rizzo
Nous avons le plaisir de vous présenter notre dernière publication.
Nous vous souhaitons de bonne lectures critiques !
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CRITIQUE DU TRAVAIL
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Vincent pose dans cet essai les jalons d’une réflexion prenant toute la
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