O neoliberal-fascismo
O neoliberal-fascismo
Há
quem goste de explorar a ideia de que há uma nova clivagem política que
ultrapassa a esquerda e a direita: entre os populistas antiliberais e
os liberais cosmopolitas e abertos ao mundo. Para quem a usa, esta
divisão tem a enorme vantagem de colocar qualquer critica à desregulação
económica e à privatização das funções do Estado no mesmo campo que o
ataque aos imigrantes. Pois eu considero que a aliança a que estamos a
assistir não é entre populistas antiliberais ou moderados liberais, mas
entre direitas que pareciam inconciliáveis sem que à esquerda haja a
devida resposta.
Se alguém
põe a possibilidade de assistirmos a uma aliança entre neoliberais e
neofascistas logo lhe explicam que isso é uma impossibilidade
ideológica. Quem defende toda a liberdade económica está condenado a
defender toda a liberdade política. Augusto Pinochet provou, há muito
tempo, que isso é falso. O que levou Milton Friedman a afirmar, sobre as
reformas que ele e os seus “Chicago boys” defenderam e que o ditador
aplicou com mão de ferro, que “o verdadeiro milagre não foi essas
reformas terem funcionado tão bem, foi uma junta militar estar disposta a
fazê-lo”. Acreditando no milagre, Friedman não concluiu que talvez a
contradição não existisse. Que, pelo contrário, a sua receita talvez
fosse incompatível com a democracia. Quer por ser antipopular, quer por
provocar uma desestruturação social que torna a democracia impraticável.
No
mundo ocidental, dificilmente encontraremos um Governo mais alinhado
com a agenda económica neoliberal do que o do Brasil. O único verdadeiro
programa político do Governo de Bolsonaro é o de Paulo Guedes: os
primeiros meses de contradições permanentes serviram apenas para aprovar
uma profundíssima reforma da previdência (segurança social) e para
preparar uma sucessão de privatizações de serviços públicos e recursos
naturais. O programa neoliberal é o que sobra de palpável da retórica
autoritária. Porque o autoritarismo é a forma mais eficaz de o impor.
Partindo
do princípio que a social-democracia é o liberalismo político sem o
liberalismo económico, aceitemos que é perfeitamente possível ter o
liberalismo económico sem o liberalismo político. E aquilo a que estamos
a assistir é ao ascenso dessa aliança entre neoliberalismo e um
neoconservadorismo de perfil autoritário. Que se baseia na ideia que
ouvi uma vez defendida por um importante conselheiro económico Donald
Trump (anos antes de o ser), de que entre o capitalismo e a democracia
era o primeiro que tinha de ser salvo, insinuando até que havia uma
contradição entre os dois: “A democracia são dois lobos e uma ovelha a
decidirem o que vão jantar”.
Uma
das principais marcas deste neoliberal-fascismo (vamos chamar-lhe
assim) é o discurso antipolítico. O populismo contra os políticos é
paralelo e solidário com o populismo contra as funções do Estado. A
corrupção e a justicialização da política, que é reduzida a um debate
moral, servem esta dupla função que dá espaço à deslegitimação dos
poderes eleitos (que são substituídos pelo poder dos homens do dinheiro
ou dos seus “tecnocratas”, que criam empregos ou conhecem a economia) e à
privatização das funções sociais e económicas do Estado. E esta
privatização do Estado é paralela ao reforço das suas funções
repressivas. O Estado policial no lugar do Estado social faz parte da
agenda política de quem reduz a exclusão a uma questão criminal. Porque,
nas fantasias meritocráticas, os pobres são de alguma forma culpados
pela sua própria pobreza.
Mas
a conquista mais extraordinária desta aliança é ter conseguido
apresentar-se com uma retórica arejada, quase revolucionária. O discurso
que mais agrada ao poder económico apresenta-se como um discurso
antissistémico. É isso que torna possível ver um historiador comodamente
instalado na academia do Estado, como Rui Ramos, ou um antigo assessor
de um primeiro-ministro, como Miguel Morgado, a falarem do “regime” como
algo que lhes é estranho e que combatem. Isto apesar de nele estarem
profunda e confortavelmente inseridos. Uma das coisas interessantes
deste tempo é ver a direita do “regime” a usar o léxico da
extrema-direita para se distanciar da sua própria obra e assim se
reinventar e se relegitimar depois da crise de 2008, que provou a sua
falência.
É perfeitamente possível ter o
liberalismo económico sem o liberalismo político. Como provou Augusto
Pinochet, aliás. O neoliberal-fascismo é esta aliança entre um Estado
desistente das suas funções sociais e económicas, com poderes reforçados
na segurança
Esta inversão
simbólica das relações de poder faz parte das estratégia desta estirpe
de direita: os grupos excluídos são responsáveis, através do
“politicamente correto”, pelos sentimentos contra eles; os movimentos
emancipatórios são movimentos opressivos (caso da ideologia de género); e
o anti-intelectualismo surge como uma forma de libertação do povo face
às elites. Podemos ver esse anti-intelectualismo num dos últimos tweets
de Bolsonaro: “O ministro da Educação estuda descentralizar investimento
em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). O objetivo é focar
em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária,
engenharia e medicina. A função do Governo é respeitar o dinheiro do
contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer
contas e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a
família, que melhore a sociedade em sua volta.” A escola que recusa a
crítica e o debate e prepara o trabalhador apenas para sua função
produtora, medindo o valor conhecimento pelo seu valor económico, é a
escola libertadora.
Ao
contrário do que nos diria a intuição, o crescimento de um discurso
religioso, em países como os Estados Unidos e o Brasil, também serve
todos estes intentos. O anti-intelectualismo e a moralização do debate
político, comum ao discurso religioso mais primário, não põe em causa o
fundamental da agenda liberal. As igrejas evangélicas, totalmente
sintonizadas com esta aliança no Brasil e nos EUA, funcionam numa lógica
empresarial e capitalista e dirigem-se ao espírito individualista deste
tempo, casando isso, sem qualquer problema, com o ultraconservadorismo
moral.
O
neoliberal-fascismo é a aliança entre um Estado desistente das suas
funções sociais e económicas com um Estado reforçados nos seus poderes
de segurança e na restauração dos valores destruídos pela esquerda desde
os anos 60 do século passado. Ao mesmo tempo que se apresenta como
desordenador – contra o “regime”, o “sistema” e o Estado –, ele promete
dar ordem a este tempo de ansiedade. Dar ordem ao mesmo tempo que se
aumenta a insegurança material dos cidadãos passa por responsabilizar
pelo caos os novos atores do espaço público – as mulheres
autodeterminadas, os homossexuais com uma agenda política, as minorias
étnicas que exigem igualdade.
Não
há qualquer contradição entre a agenda antiliberal na política com a
agenda ultraliberal na economia. As duas trabalham para a mesma coisa: a
redução do papel social e económico do Estado e o reforço das suas
funções repressivas e normalizadoras, como força de controlo de danos. E
esta aliança terá, crescentemente, uma representação política.
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