Žižek: A eleição de Bolsonaro e a nova direita populista
Em entrevista exclusiva ao Blog da Boitempo, o filósofo esloveno comenta a eleição de Bolsonaro no contexto da onda global de ascensão da extrema-direita populista e provoca: “a única maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base de uma política mais radical de esquerda”.
Blog da Boitempo entrevista Slavoj Žižek.
O filósofo
esloveno Slavoj Žižek bateu um papo via Skype com Artur Renzo, editor do
Blog da Boitempo, sobre a eleição de Bolsonaro no contexto da onda
global de ascensão da extrema-direita populista e a implosão do centro
político. Para ele, o desafio é saber diferenciar o sintoma de sua
causa: o acontecimento-chave do mundo hoje não é o surgimento da nova
direita, e sim a desintegração do grande consenso liberal capitalista ao
qual ela responde. Assim, a resposta a esse fenômeno não deveria ser
ensaiar um novo populismo de esquerda, nos moldes das figuras de direita
que estão ganhando espaço. Mais do que nunca, a esquerda precisa manter
sua vocação internacionalista para fazer frente ao capitalismo global.
Maoísta de ocasião, Žižek vê na desordem da conjuntura atual uma janela
de oportunidade diante da qual a esquerda deve ter a ousadia de propor
uma nova visão básica da sociedade.
Quanto ao
Brasil, o filósofo demonstra certa preocupação acerca da preservação de
uma democracia formal no país com Bolsonaro, mas vê que a implementação
de uma política de austeridade pode minar a legitimidade do novo governo
e manter nas mãos da esquerda o monopólio sobre a política
antiausteridade. Žižek alerta ainda para a armadilha de priorizar neste
momento a composição de uma frente ampla de defesa da democracia com
setores de centro e centro-direita, em vista de preservar um programa
mínimo contra a ameaça posta pela extrema-direita. E provoca: “a única
maneira de salvar aquilo que há de bom na tradição liberal será na base
de uma política mais radical de esquerda”. Confira a tradução completa
da entrevista abaixo.
* * *
Como você situa o caso
brasileiro atual, com a eleição de Jair Bolsonaro, no contexto global
mais amplo, marcado pela ascensão de populismos de direita e
extrema-direita em diversos países?
Até onde sei, o caso brasileiro é
bastante singular. Não é como na Europa Ocidental, onde oponente não é,
como no caso de vocês, um movimento relativamente honesto de esquerda. O
oponente lá é simplesmente o establishment – talvez um pouco de esquerda, democrático, mas ainda assim o establishment.
Na Europa Ocidental, o que está desaparecendo é a social-democracia
tradicional. O que se tem é uma oposição entre aquilo que denomino o establishment
liberal de esquerda (que é economicamente neoliberal mas socialmente a
favor de direitos LGBT, das mulheres etc.) e esse novo populismo de
direita.
No Brasil, parecia que o populismo não
era principalmente um populismo de direita. Com Lula e Dilma, a esquerda
havia ocupado esse espaço. Mas aqui vou traçar algumas observações que
provavelmente soarão problemáticas para muitos de vocês. Não concordo
com toda essa ideia de um populismo de esquerda. Está na moda defender
isso na Europa Ocidental e nos Estados Unidos: por que deixar o
populismo – essa modalidade engajada de política, centrada no
estabelecimento de um conflito com um determinado inimigo –, por que
deixar o populismo exclusivamente na mão dos direitistas? Por que não
responder a ele com um populismo nosso, de esquerda?
Por motivos teóricos e práticos creio que não devamos trilhar esse caminho. Como admite Ernesto Laclau – que é o
teórico do populismo –, o populismo concentrou-se em construir uma
imagem clara do inimigo. É claro que, no nosso caso, os inimigos não
seriam os estrangeiros, os imigrantes etc., seriam algo como as elites
financeiras, a classe dominante etc. Mas o problema aqui,
fundamentalmente, é que as coisas não são tão simples assim… Vejamos o
caso dos Estados Unidos. É claro que o inimigo imediato é Donald Trump,
mas penso ser absolutamente crucial se colocar uma pergunta mais
profunda. Como diz Michael Moore, logo no início de seu novo
documentário, Trump não caiu do céu. Foi com o fracasso do establishment
liberal de esquerda que abriu-se espaço para o surgimento de figuras
como Trump. Essa é a grande decepção. O pacto político que regulou os
países desenvolvidos nas últimas décadas foi o pacto desse establishment liberal.
Jamais devemos esquecer que uma
democracia (e aqui não me refiro a uma autêntica democracia do povo, mas
uma simples democracia multipartidária, em que diversos partidos
disputam o poder) só funciona sob o pano de fundo de certo consenso ou
pacto. Você pode fazer suas escolhas, promover seus debates etc., mas
somente dentro dos limites de certo pacto ou marco consensual. De forma
que, por exemplo, nos Estados Unidos você tem os Republicanos e os
Democratas. É verdade que eles têm suas diferenças, mas eles
compartilhavam todo um conjunto de ideias e premissas básicas. O mesmo
valia para a Europa Ocidental.
O que mudou agora? Dois anos atrás, você lançou uma provocação
ao afirmar que a eleição de Trump seria melhor do que a de Hillary, no
sentido de que poderia abrir o caminho para o surgimento de uma esquerda
radical mais autêntica, livre das amarras desse grande consenso liberal
representado pelo Partido Democrata. Como você avalia essa questão
agora, com dois anos de Trump na Casa Branca? Você arriscaria dizer que
algo parecido talvez seria aplicável para o caso brasileiro, com a
eleição de Bolsonaro?
O que está ocorrendo agora com Trump é
que esse pacto liberal está se desintegrando. Penso que não devemos cair
na armadilha (na qual boa parte dos liberais atualmente se encontra) de
pintar Trump como o grande demônio e tentar implicitamente retornar a
esse pacto liberal de esquerda, Estado de bem-estar social e tal. Não!
Esse pacto está perdido. Devemos aprender com Trump a aceitar essa ideia
de que o velho pacto político que sustenta nossa sociedade está ruindo.
E é preciso agora ter a ousadia de propor um novo pacto social, nosso,
mais à esquerda – um pacto, ou, se quiser, uma visão básica da
sociedade. Nesse sentido, sou maoísta. Como dizia Mao: “Tudo sob o céu
está mergulhado no caos; a situação é excelente”. Com Trump, há uma
grande desordem sob o céu estadunidense. Por isso, eu diria que a
situação também é um pouco propícia, no sentido de que há uma
abertura única para que nós, uma esquerda mais radical, possamos fazer
algo. E incluo aqui não apenas Bernie Sanders, mas todas as gerações de
outros democratas de esquerda mais radicais que não temem reabilitar a
palavra socialismo.
Agora, essa é a imagem geral. Sobre o que
ocorre no Brasil, não posso dizer que sei o suficiente. Quer dizer, eu
sei que houve uma grande manipulação. A forma pela qual Bolsonaro e seus
demagogos populistas de direita foram capazes de mobilizar essa eterna
acusação contra Lula, Dilma e seus partidários de que eles seriam os
representantes da corrupção, que eles seriam parte de um Estado não
transparente, corrupto e por aí vai… Eu não conheço suficientemente a
situação brasileira para opinar aqui, mas diria o seguinte: quando disse
ironicamente que votaria em Trump, o que eu quis dizer era que ele
seria bom, negativamente, para estilhaçar a ideologia hegemônica
existente e, nesse sentido, abrir espaço para o surgimento de uma
esquerda mais radical. Mas não penso que essa seja uma fórmula
universal. Mesmo no caso da Europa Ocidental – porque temos um tipo
diferente de Estado na Europa, muito mais centralizado –, eu jamais
teria dito algo como “Vote na Marine Le Pen!”, porque com ela no poder à
frente do Estado francês teríamos algo muito maior do que Trump. O
Estado francês é muito mais forte e centralizado e regula num grau muito
maior a vida social como um todo. Teria sido uma verdadeira catástrofe.
Temo que o mesmo valha para o Brasil.
Em seus artigos mais
recentes, você resume da seguinte maneira a “pervertida situação
política” da Europa: por um lado, temos a “esquerda” oficial
efetivamente implementando políticas de austeridade (ao mesmo tempo que
assume a pauta progressista e multiculturalista no que diz respeito aos
valores) e, por outro, temos a “direita populista” de fato tomando a
frente das medidas antiausteridade (e empunhando a bandeira e o discurso
da xenofobia e do nacionalismo). Nesse sentido, me pergunto se a
infeliz novidade que temos agora no Brasil não seria que o nosso governo
eleito parece juntar o pior desses dois mundos: ele é economicamente
pró-austeridade e ao mesmo tempo extremamente reacionário no que diz
respeito a direitos humanos, ações afirmativas, direitos das mulheres e
das minorias etc.
Isso é muito interessante! Quer dizer, se
o Estado brasileiro permanecer, ao menos em algum sentido formal (no
sentido corriqueiro do termo), basicamente democrático, essa situação,
apesar de tudo, abre espaço para que a esquerda ao menos retenha o
monopólio da política antiausteridade, por assim dizer. Porque o que faz
de Trump um perigo tão grande é precisamente esse aspecto. Se você
prestar atenção ao que diz Steve Bannon, ele afirma abertamente coisas
como “Eu não sou pró-austeridade. O Estado deveria gastar mais com os
trabalhadores”, e por aí vai. Bannon é realmente um perigo. Ele quer
aumentar os impostos dos ricos a 44%, até mais. E na Europa temos ainda
mais disso. Na Hungria e especialmente na Polônia (que, como você sabe, é
o caso mais perigoso), o atual governo, extremamente católico,
implementou uma série de medidas que nenhuma social-democracia na Europa
jamais teria se atrevido a fazer: reduzir a idade de aposentadoria,
elevar a previdência, melhorar a saúde pública, ampliar o apoio
financeiro aos estudantes etc.
E aqui devemos ter muita cautela na
análise. Dou um exemplo. Muitos dos meus amigos ficaram horrorizados
quando Syriza capitulou, sabe? E eu concordo, eles não deveriam ter
feito isso. Mas também não era simplesmente como se eles tivessem uma
escolha. Não se tratou de uma simples traição, mas da revelação de uma
necessidade mais profunda. Esse para mim foi o momento de verdade
daquele processo todo. É por isso que sou muito cético quanto àquela
ideia bastante em voga hoje entre certos setores da esquerda de que, da
mesma forma que novos populistas como Bannon ou Trump em geral investem
no nacional populismo de direita, também a esquerda deveria defender
algo análogo. Não, eu não acredito que seja possível derrotar o
capitalismo global jogando com cartas nacionais. Não compro essa ideia
de nos retirar da União Europeia, ou o que quer que seja, para tocarmos
nossa própria política nacional.1 Não se pode fazer isso. O capital global é um fenômeno internacional. A resposta a ele também terá de ser internacional.
É por isso que vejo alguns sinais
progressistas em certas movimentações hoje. Você sabe que há agora um
eixo – que não é um eixo do mal, mas digamos um eixo do bem – se
formando: Sanders e seus democratas de esquerda nos EUA estão
estabelecendo ligações com Corbyn e com o Partido Trabalhista inglês, e
com alguns movimentos de esquerda como aqueles em torno de Varoufakis e
similares na Europa. Precisamos permanecer – e digo que isso é mais
importante hoje do que nunca – precisamos permanecer internacionalistas.
O próprio Fernando Haddad
está em Nova York agora, a convite de Varoufakis, para participar do
lançamento dessa frente. Uma das questões que a esquerda brasileira
debate hoje no que diz respeito à organização da oposição a Bolsonaro é o
seguinte: até que ponto se deve investir na criação de uma frente ampla
“democrática” contra o neofascismo e a extrema direita, priorizando
assim a busca por pontos de contato mínimos com setores de centro e até
centro-direita contra um perigo maior; ou se, pelo contrário, ela deve
radicalizar ainda mais seu discurso e seu programa pra tentar atingir
maior apoio popular. Como você avalia esse dilema?
Essa é uma pergunta traiçoeira! Penso que
devemos tomar muito cuidado aqui. É claro que, por motivos táticos,
quando você quer barrar determinada legislação perigosa de direita, não
há problema algum em estabelecer coalizões táticas com quem quer que
seja. Mas eu não diria que devemos renunciar totalmente nossa visão mais
radical de esquerda. Não apenas por conta de algum tipo de purismo
esquerdista. Penso que não devemos jamais perder de vista que a crise à
qual Bolsonaro e Trump aparecem como respostas é a crise do establishment liberal de centro.
Há coisas boas no liberalismo: liberdades
humanas, direitos LGBT, direitos das mulheres etc. Mas, no longo prazo,
a única maneira de redimir, de salvar aquilo que há de bom na tradição
liberal será na base de uma política mais radical de esquerda. Aquilo
que, por exemplo, o Partido Trabalhista está tentando fazer na
Inglaterra, com Jeremy Corbyn.
Não penso que devamos apostar todas as fichas na direção do “agora
estamos diante de um enorme perigo e devemos todos nos unir contra os
novos populistas de direita”.2 Se fizermos isso, mesmo que tenhamos êxito, só voltaríamos à situação que ensejou o nascimento do populismo de direita.
Algum recado final para seus leitores brasileiros?
Mande um salve para todos aí no Brasil.
Diga a eles que estamos todos na mesma merda. O jeito é tentarmos
permanecer o mais alegre que pudermos neste inferno em que vivemos!3
NOTAS
1 Tariq Ali defendeu recentemente essa posição no contexto do Brexit em entrevista a Edemilson Paraná e Gustavo Capela para o número 29 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Žižek desenvolve sua crítica a essa ideia em sua coluna no Blog da Boitempo aqui. [N. E.]
2 O cientista político André Singer, organizador de As contradições do lulismo, defendeu essa posição na plenária pós-eleições convocada por Ruy Braga, com Marilena Chaui e Vladimir Safatle no dia 1º de novembro de 2018 na USP. Confira a gravação completa da intervenção dele na TV Boitempo clicando aqui. [N. E.]
3 Tradução de Artur Renzo, com colaboração de Thaisa Burani. [N. E.]
1 Tariq Ali defendeu recentemente essa posição no contexto do Brexit em entrevista a Edemilson Paraná e Gustavo Capela para o número 29 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Žižek desenvolve sua crítica a essa ideia em sua coluna no Blog da Boitempo aqui. [N. E.]
2 O cientista político André Singer, organizador de As contradições do lulismo, defendeu essa posição na plenária pós-eleições convocada por Ruy Braga, com Marilena Chaui e Vladimir Safatle no dia 1º de novembro de 2018 na USP. Confira a gravação completa da intervenção dele na TV Boitempo clicando aqui. [N. E.]
3 Tradução de Artur Renzo, com colaboração de Thaisa Burani. [N. E.]
Depois de muitos pedidos, ele chegou: o livro de Žižek sobre cinema ganha nova edição, totalmente revista e ampliada! Em Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno,
o filósofo esloveno propõe um estudo aprofundado das motivações de
diretores renomados internacionalmente, como Krzysztof Kieślowski,
Alfred Hitchcock, Andrei Tarkovski e David Lynch. Esta nova edição traz
seis novos textos e análises originais sobre o cinema contemporâneo:
Žižek analisa sucessos hollywoodianos recentes como “Blade runner 2049”,
“Batman: O cavaleiro das trevas ressurge”, e o novo “Pantera Negra” da
Marvel, além de uma análise leninista de “La La Land”.
“Os
ensaios reunidos neste livro estão conectados não só pela riqueza do
método, mas também pelas referências reiteradas a ideias que se
manifestam em obras tão distintas quanto as de Kieslowski, os irmãos
Wachowski, Hitchcock, Tarkovski e David Lynch.” — Sérgio Rizzo
***
Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Artur Renzo é editor do Blog da Boitempo, da TV Boitempo e da revista Margem Esquerda. Formado em Filosofia e em Comunicação Social com habilitação em Cinema, traduziu, entre outros, A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI (Boitempo, 2018), de David Harvey.
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