Ángeles Maestro Martín – Red Roja
2019/05/05
Em Mauthausen – ao contrário do ocorrido noutros campos nazis, onde o extermínio se fez praticamente sem oposição – forjou-se, ao longo de quatro anos, uma importante organização clandestina internacional, que salvou centenas de vidas e libertou o campo antes da chegada das tropas aliadas.
Comemora-se
em numerosos países europeus a vitória das tropas aliadas sobre a
Alemanha nazi, na Segunda Guerra Mundial, iniciativa especialmente
importante no momento em que assistimos a um reforço generalizado das
organizações fascistas e os grandes mitos se reproduzem. Mais uma vez se
repetirá como facto transcendente o desembarque das tropas aliadas na
Normandia e se desvalorizará o facto transcendente da libertação da
maior parte da Europa pela URSS, que pagou por isso o duríssimo preço de
vinte milhões de mortos. Quase ninguém irá falar de como os governos
aliados fizeram orelhas moucas aos reiterados pedidos de Moscovo para se
abrir uma frente no oeste, e que só levaram a cabo a “Operação Overlord”,
em junho de 1944, precisamente o tempo para impedir a entrada de
Exército Vermelho em Berlim [1], o que, aliás, não conseguiram.
O
objetivo de apresentar a intervenção dos EUA como decisiva para a
vitória, chave para impor a reconstrução europeia sob a sua hegemonia,
particularmente através da NATO, tem também outro episódio de particular
importância para nós: o da suposta liberação do campo de Mauthausen por
tropas norte-americanas.
O
mito repete-se, apesar da existência de um documento gráfico bem
conhecido: a foto de chegada ao campo de veículos blindados dos EUA, em
que se veem centenas de prisioneiros sob um enorme pano, colocado por
cima do portão de entrada, onde se lê: “Os espanhóis antifascistas saúdam as forças libertadoras”. A pergunta é óbvia: quem havia libertado Mauthausen, quando os norte-americanos chegaram?
A
história da organização da resistência no interior do Campo,
protagonizada pelos comunistas espanhóis, está documentada e tem um
valor imenso. Em Mauthausen – ao contrário do ocorrido noutros campos
nazis, onde o extermínio se fez praticamente sem oposição – forjou-se,
ao longo de quatro anos, uma importante organização clandestina
internacional, que salvou centenas de vidas e libertou o campo antes da
chegada das tropas aliadas.
A façanha, desconhecida da imensa maioria e realizado nas mais duras condições imagináveis, está cheia de apelidos espanhóis.
Há
alguns documentos, mas, sem dúvida, foi o comunista espanhol Mariano
Constante [2], que o relatou com tal rigor histórico, que é conhecido
como o “notário de Mauthausen”. Baseio-me no seu relato.
Começa a organização
A
organização começou a tomar forma em 22 de junho de 1941. As tropas
nazis ocupavam um país após outro, começava a invasão da URSS e tudo
parecia afundar-se. Nessa noite, a direção decidiu desinfetar o Campo e
concentrou todos os prisioneiros, nus, sob frio intenso, nas garagens.
Ali, os membros do Partido Comunista da Espanha decidiram organizar-se,
eleger oito deles para a direção e tratar de estender a organização a
outros compatriotas. Havia-se constituído o germe do Comité
Internacional de Mauthausen. O objetivo principal era manter o moral e
os princípios no meio da barbárie. Constante explica isso da seguinte
maneira: «Tratava-se de fazer compreender a uns e a otros que, para
lutar no interior do campo, era necessário ter uma vontade
inquebrantável de combate e esperança, sem a qual nada era possível; ter
confiança na vitória final; lutar contra a depravação e a corrupção,
evitando fazer o jogo das SS para prejudicar outros presos políticos;
solidariedade total em qualquer momento e circunstância; fazer todo o
possível para evitar que os [presos] de “delito comum” roubassem a nossa
escassa comida; tentar introduzir espanhóis de confiança nos locais
de trabalho onde houvesse possibilidades de ajudar os outros e, tanto
quanto possível, também nos aquartelamentos; conseguir informações e
vigiar o comportamento das SS, para lhes fazer frente e prever as suas
reações; estabelecer contato com os deportados políticos de outras
nacionalidades».
As
atividades contemplavam a entrega de alguns gramas de comida
suplementar aos mais débeis e tentar poupá-los às tarefas mais duras,
conseguir postos que permitissem a mobilidade dentro do Campo, esconder
os doentes para não serem exterminados, ou concretizar pequenos atos de
sabotagem, como quebrar uma ferramenta para “baixar a sua produção, destruindo parte – uma ínfima parte, é verdade – do potencial de guerra do III Reich”.
Pouco
a pouco, a organização alarga-se com a chegada, a partir do início de
1942, de presos políticos de todos os países europeus, alguns deles
ex-combatentes das Brigadas Internacionais. A organização vai
conseguindo introducir camaradas de confiança na cozinha, na limpeza, na
enfermaria ou nos escritórios da administração. A teia de aranha ia-se
tecendo. Na segunda metade de 1942, no meio das matanças e das torturas,
as notícias da resistência soviética e da subsequente derrota dos nazis
em Stalingrado, fortalecem a confiança na vitória dos que nela haviam
acreditado, quando não existia nem um raio de esperança.
A
chegada de um grande contingente de deportados franceses, entre 1943 e
1944 – comunistas, socialistas, católicos e, sobretudo, dirigentes
militares da Resistência –, permite o fortalecimento do Comité
Internacional e, acima de tudo, a constituição do Aparelho Militar
Internacional (AMI). O aragonês Miguel Malle foi o responsável máximo do
Estado-Maior (EM) do AMI, composto por quatro membros, entre os quais
estava o dirigente checo das Brigadas Internacionais, Arthur Londen e
Mariano Constante. A este Aparelho juntou-se também o coronel soviético
Pirogoff.
A
rede fortalece-se, apesar das baixas contínuas, e consegue aceder a um
aparelho de rádio que membros das SS tinham escondido, permitindo-lhes
obter informações emitidas por Londres ou Moscovo. Meses depois, além do
roubo contínuo de armas aos SS, a organização obtém um novo recurso: o
seu próprio aparelho de rádio, que conseguem introduzir escondido num
balde de lixo.
Em
abril de 1945, enquanto as derrotas alemãs se sucediam – os
norte-americanos bombardeavam a vizinha cidade de Linz e os soviéticos
tinham ocupado Viena – chegou a notícia de que o comandante do Campo,
Ziereis, tinha recebido uma orden de Himmler para matar todos
prisioneiros. Deviam ser executados aproveitando um alarme antiaéreo,
verdadeiro ou falso, e seriam eliminados por uma gigantesca explosão,
provocada nas naves que já estavam a ser acondicionadas pelos próprios
presos, que seriam previamente gaseados lá dentro.
A
organização clandestina acelera-se, intensificando a obtenção de
informações através de documentos obtidos pelos que limpavam os
escritórios, fazendo vigilâncias noturnas, levando do Campo documentos e
fotografias obtidas clandestinamente pelo fotógrafo Paco Boix, que
atestavam a barbárie do extermínio e as visitas dos chefes nazis e,
acima de tudo, garantindo a disciplina e a coordenação, para evitar
boatos.
A libertação
No
final de abril, o comandante Ziereis deu a ordem de mobilizar os
espanhóis para lutar contra as tropas soviéticas que se aproximavam de
Mauthausen. Formados em frente das metralhadoras que, das torres, lhes
apontavam, ninguém deu um passo em frente. “Foi um momento em que
tudo podia acontecer e, plenamente conscientes disso, estávamos
dispostos a dar o tudo por tudo: as pistolas e as garrafas de benzina
estavam prontas. Vendo que não quebraria a nossa atitude, Ziereis mandou
desfazer fileiras. Tenho a certeza de que teve medo”.
Poucos dias depois, à noite, os guardas das SS foram substituídos pela guarda urbana de Viena. “Alguns
soldados SS capturados após a libertação confirmaram-nos que Ziereis
temia uma sublevação geral e preferira retirar-se para a aldeia de
Mauthausen com a sua SS”. Uma delegação do Comité Internacional exigiu à guarda urbana que entregasse todas as suas armas.
Em
5 de maio de 1945, pouco antes das duas horas da tarde, dois veículos
blindados e um jipe do exército norte-americano entraram no Campo. Os
guardas fugiram, abandonando todas as suas armas.
O grande pano preparado pelos republicanos espanhóis foi colocado por cima do portão de entrada e foi tirada a famosa foto.
Quando
o Comité Interrnacional (CI) se dirigiu aos norte-americanos para
conhecer as suas intenções e explicar a situação, o comandante explicou
que aquela era uma patrulha de exploradores que se havia perdido e que,
de facto, as tropas norte-americanas estavam a 40 quilómetros dali.
Quando o CI os informou de que as SS estavam perto, “os
norte-americanos puseram-se em marcha sem entrar no interior do recinto,
prometendo-nos um regresso rápido com meios bélicos suficientes para
nos defender. Assim, ficávamos sós para fazer frente ao que quer que
surgisse ...”.
“No
Campo, a confusão era total. Alguns prisioneiros haviam assaltado o
arsenal das armas e outros arrombavam os armazéns das SS, onde estavam
armanezados os poucos víveres que restavam. Felizmente, tínhamos uma
organização pronta e um aparelho militar disciplinado. Os membros do AMI
permaneceram nos seus postos, esperando receber ordens do nosso EM. Os
líderes militares foram convocados para receber ordens e, em poucos
minutos, todas as disposiçoes necessárias foram tomadas e executadas”.
A ordem interna foi restabelecida e onde antes estavam os militares das
SS a dar ordens de extermínio, encontrava-se agora o Estado Maior
Internacional.
A
luta não terminara. Os combatentes espanhóis e soviéticos de Mauthausen
enfrentaram as SS em retirada da Checoslováquia, fazendo-os fugir
depois de duros combates. As tropas dos chefes do Campo, Ziereis e
Bachmayer, estavam do outro lado do Danúbio e preparavam-se para atacar o
Campo. Para o evitar, era necessária uma antecipação e impedir que
atravessassem o rio pela única ponte intacta, a ponte ferroviária. Os
combates dirigidos pelo EM de Mauthausen, em que participaram
principalmente soviéticos, espanhóis e checos, impediram que os
primeiros tanques alemães Tigre passassem pela ponte.
Em
6 de maio, as SS fizeram várias tentativas para atravessar o Danúbio
que fracassaram, embora tivessem tanques, canhões e metralhadoras. A
resistência do Campo só tinha metralhadoras e Panzerfaust (tubos
antitanques) roubados ao inimigo e que usavam pela primeira vez. A
situação era crítica e a resistência não poderia durar muito, pelo que
equacionaram fazer voar a ponte ferroviária com os explosivos que os
próprios nazis haviam colocado.
O
ataque dos soviéticos da planície de Ens forçou as SS a deslocar parte
das suas tropas para lá e a pressão sobre a resistência reduziu-se, mas a
luta continuava. “Aquilo era uma torre de Babel, onde tínhamos de
traduzir todas as ordens dadas (...) Por todos os lados as ordens de
rendição haviam sido dadas às tropas alemãs e Berlim já havia caído às
mãos do exército soviético. No entanto, para nós a luta continuava ...
Era o nosso destino. Havíamos sido os primeiros a combater contra as
hordas hitlerianas e estava escrito que seríamos os últimos a largar as
armas”.
Finalmente, uma coluna de tanques americanos fez a sua aparição e a batalha terminou.
Uma longa jornada aguardava os republicanos espanhóis até serem acolhidos em França, mas isso já é outra história.
Este
relato não tem nada a ver com a história oficial. É, sem dúvida, uma
epopeia dirigida por comunistas espanhóis, realizada por aqueles que
decidiram resistir e organizar-se contra o desespero e a morte. É a
verificação histórica da continuidade da luta empreendida na guerra
espanhola e que se prolongou no solo europeu contra a Alemanha nazi; da
utilização da experiência organizativa e do combate internacionalista.
Da convicção de que a derrota do inimigo mais poderoso é possível
sempre que houver a vontade inquebrantável – como eles diziam – de
resistir, e da capacidade da organização para vencer.
Provavelmente,
é por isso que a história oficial tem tanto interesse em esconder
façanhas como esta. Eles querem-nos derrotados, impotentes e ignorantes.
Cabe-nos a nós restaurar o fio vermelho da continuidade histórica da
luta, não apenas para lhes render a merecida homenagem, mas também para
saber de onde viemos e quem somos.
Nota: Parte desta informação obtive-a dos testemunhos de Tomás Martín, irmão da minha mãe e representante do Partido Comunista da Espanha no Comité Internacional de Mauthausen. Mariano Constante e Miguel Malle consideravam-no seu irmão.
Nota: Parte desta informação obtive-a dos testemunhos de Tomás Martín, irmão da minha mãe e representante do Partido Comunista da Espanha no Comité Internacional de Mauthausen. Mariano Constante e Miguel Malle consideravam-no seu irmão.
Escrevi
um relato biográfico da dimensão política da sua vida que intitulei “A
voz que te é devida” [3]. É uma história particular, mas que tem o mesmo
selo de heroísmo, dor, firmeza ideológica e solidariedade que nos
legaram milhares de mulheres e de homens da melhor geração da nossa
história.
Notas
[2] Constante, Mariano (1974). Os anos vermelhos. Editorial Círculo de Lectores.
[3] Maestro, Ángeles (2016) A voz que te é devida. https://redroja.net/index.php/noticias-red-roja/noticias-cercanas/4137-la-voz-a-ti-debida
Fonte: http://www.redroja.net/index.php/autores/angeles-maestro/5250-de-verdad-las-tropas-norteamericanas-liberaron-mauthausen, publicado em 2109/05/05 e acedido em 2019/05/08
Tradução do castelhano de MFO
in Pelo Socialismo
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