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segunda-feira, 20 de maio de 2019


Ángeles Maestro Martín – Red Roja
2019/05/05
Em Mauthausen – ao contrário do ocorrido noutros campos nazis, onde o extermínio se fez praticamente sem oposição – forjou-se, ao longo de quatro anos, uma importante organização clandestina internacional, que salvou centenas de vidas e libertou o campo antes da chegada das tropas aliadas.


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Comemora-se em numerosos países europeus a vitória das tropas aliadas sobre a Alemanha nazi, na Segunda Guerra Mundial, iniciativa especialmente importante no momento em que assistimos a um reforço generalizado das organizações fascistas e os grandes mitos se reproduzem. Mais uma vez se repetirá como facto transcendente o desembarque das tropas aliadas na Normandia e se desvalorizará o facto transcendente da libertação da maior parte da Europa pela URSS, que pagou por isso o duríssimo preço de vinte milhões de mortos. Quase ninguém irá falar de como os governos aliados fizeram orelhas moucas aos reiterados pedidos de Moscovo para se abrir uma frente no oeste, e que só levaram a cabo a “Operação Overlord”, em junho de 1944, precisamente o tempo para impedir a entrada de Exército Vermelho em Berlim [1], o que, aliás, não conseguiram.

O objetivo de apresentar a intervenção dos EUA como decisiva para a vitória, chave para impor a reconstrução europeia sob a sua hegemonia, particularmente através da NATO, tem também outro episódio de particular importância para nós: o da suposta liberação do campo de Mauthausen por tropas norte-americanas.

O mito repete-se, apesar da existência de um documento gráfico bem conhecido: a foto de chegada ao campo de veículos blindados dos EUA, em que se veem centenas de prisioneiros sob um enorme pano, colocado por cima do portão de entrada, onde se lê: “Os espanhóis antifascistas saúdam as forças libertadoras”. A pergunta é óbvia: quem havia libertado Mauthausen, quando os norte-americanos chegaram?

A história da organização da resistência no interior do Campo, protagonizada pelos comunistas espanhóis, está documentada e tem um valor imenso. Em Mauthausen – ao contrário do ocorrido noutros campos nazis, onde o extermínio se fez praticamente sem oposição – forjou-se, ao longo de quatro anos, uma importante organização clandestina internacional, que salvou centenas de vidas e libertou o campo antes da chegada das tropas aliadas.

A façanha, desconhecida da imensa maioria e realizado nas mais duras condições imagináveis, está cheia de apelidos espanhóis.

Há alguns documentos, mas, sem dúvida, foi o comunista espanhol Mariano Constante [2], que o relatou com tal rigor histórico, que é conhecido como o “notário de Mauthausen”. Baseio-me no seu relato.

Começa a organização

A organização começou a tomar forma em 22 de junho de 1941. As tropas nazis ocupavam um país após outro, começava a invasão da URSS e tudo parecia afundar-se. Nessa noite, a direção decidiu desinfetar o Campo e concentrou todos os prisioneiros, nus, sob frio intenso, nas garagens. Ali, os membros do Partido Comunista da Espanha decidiram organizar-se, eleger oito deles para a direção e tratar de estender a organização a outros compatriotas. Havia-se constituído o germe do Comité Internacional de Mauthausen. O objetivo principal era manter o moral e os princípios no meio da barbárie. Constante explica isso da seguinte maneira: «Tratava-se de fazer compreender a uns e a otros que, para lutar no interior do campo, era necessário ter uma vontade inquebrantável de combate e esperança, sem a qual nada era possível; ter confiança na vitória final; lutar contra a depravação e a corrupção, evitando fazer o jogo das SS para prejudicar outros presos políticos; solidariedade total em qualquer momento e circunstância; fazer todo o possível para evitar que os [presos] de “delito comum” roubassem a nossa escassa comida; tentar introduzir espanhóis de confiança ​​nos locais de trabalho onde houvesse possibilidades de ajudar os outros e, tanto quanto possível, também nos aquartelamentos; conseguir informações e vigiar o comportamento das SS, para lhes fazer frente e prever as suas reações; estabelecer contato com os deportados políticos de outras nacionalidades».

As atividades contemplavam a entrega de alguns gramas de comida suplementar aos mais débeis e tentar poupá-los às tarefas mais duras, conseguir postos que permitissem a mobilidade dentro do Campo, esconder os doentes para não serem exterminados, ou concretizar pequenos atos de sabotagem, como quebrar uma ferramenta para “baixar a sua produção, destruindo parte – uma ínfima parte, é verdade – do potencial de guerra do III Reich”.

Pouco a pouco, a organização alarga-se com a chegada, a partir do início de 1942, de presos políticos de todos os países europeus, alguns deles ex-combatentes das Brigadas Internacionais. A organização vai conseguindo introducir camaradas de confiança na cozinha, na limpeza, na enfermaria ou nos escritórios da administração. A teia de aranha ia-se tecendo. Na segunda metade de 1942, no meio das matanças e das torturas, as notícias da resistência soviética e da subsequente derrota dos nazis em Stalingrado, fortalecem a confiança na vitória dos que nela haviam acreditado, quando não existia nem um raio de esperança.

A chegada de um grande contingente de deportados franceses, entre 1943 e 1944 – comunistas, socialistas, católicos e, sobretudo, dirigentes militares da Resistência –, permite o fortalecimento do Comité Internacional e, acima de tudo, a constituição do Aparelho Militar Internacional (AMI). O aragonês Miguel Malle foi o responsável máximo do Estado-Maior (EM) do AMI, composto por quatro membros, entre os quais estava o dirigente checo das Brigadas Internacionais, Arthur Londen e Mariano Constante. A este Aparelho juntou-se também o coronel soviético Pirogoff.

A rede fortalece-se, apesar das baixas contínuas, e consegue aceder a um aparelho de rádio que membros das SS tinham escondido, permitindo-lhes obter informações emitidas por Londres ou Moscovo. Meses depois, além do roubo contínuo de armas aos SS, a organização obtém um novo recurso: o seu próprio aparelho de rádio, que conseguem introduzir escondido num balde de lixo.

Em abril de 1945, enquanto as derrotas alemãs se sucediam – os norte-americanos bombardeavam a vizinha cidade de Linz e os soviéticos tinham ocupado Viena – chegou a notícia de que o comandante do Campo, Ziereis, tinha recebido uma orden de Himmler para matar todos prisioneiros. Deviam ser executados aproveitando um alarme antiaéreo, verdadeiro ou falso, e seriam eliminados por uma gigantesca explosão, provocada nas naves que já estavam a ser acondicionadas pelos próprios presos, que seriam previamente gaseados lá dentro.

A organização clandestina acelera-se, intensificando a obtenção de informações através de documentos obtidos pelos que limpavam os escritórios, fazendo vigilâncias noturnas, levando do Campo documentos e fotografias obtidas clandestinamente pelo fotógrafo Paco Boix, que atestavam a barbárie do extermínio e as visitas dos chefes nazis e, acima de tudo, garantindo a disciplina e a coordenação, para evitar boatos.

A libertação

No final de abril, o comandante Ziereis deu a ordem de mobilizar os espanhóis para lutar contra as tropas soviéticas que se aproximavam de Mauthausen. Formados em frente das metralhadoras que, das torres, lhes apontavam, ninguém deu um passo em frente. “Foi um momento em que tudo podia acontecer e, plenamente conscientes disso, estávamos dispostos a dar o tudo por tudo: as pistolas e as garrafas de benzina estavam prontas. Vendo que não quebraria a nossa atitude, Ziereis mandou desfazer fileiras. Tenho a certeza de que teve medo”.
Poucos dias depois, à noite, os guardas das SS foram substituídos pela guarda urbana de Viena. “Alguns soldados SS capturados após a libertação confirmaram-nos que Ziereis temia uma sublevação geral e preferira retirar-se para a aldeia de Mauthausen com a sua SS”. Uma delegação do Comité Internacional exigiu à guarda urbana que entregasse todas as suas armas.

Em 5 de maio de 1945, pouco antes das duas horas da tarde, dois veículos blindados e um jipe ​​do exército norte-americano entraram no Campo. Os guardas fugiram, abandonando todas as suas armas.

O grande pano preparado pelos republicanos espanhóis foi colocado por cima do portão de entrada e foi tirada a famosa foto.

Quando o Comité Interrnacional (CI) se dirigiu aos norte-americanos para conhecer as suas intenções e explicar a situação, o comandante explicou que aquela era uma patrulha de exploradores que se havia perdido e que, de facto, as tropas norte-americanas estavam a 40 quilómetros dali. Quando o CI os informou de que as SS estavam perto, “os norte-americanos puseram-se em marcha sem entrar no interior do recinto, prometendo-nos um regresso rápido com meios bélicos suficientes para nos defender. Assim, ficávamos sós para fazer frente ao que quer que surgisse ...”.

No Campo, a confusão era total. Alguns prisioneiros haviam assaltado o arsenal das armas e outros arrombavam os armazéns das SS, onde estavam armanezados os poucos víveres que restavam. Felizmente, tínhamos uma organização pronta e um aparelho militar disciplinado. Os membros do AMI permaneceram nos seus postos, esperando receber ordens do nosso EM. Os líderes militares foram convocados para receber ordens e, em poucos minutos, todas as disposiçoes necessárias foram tomadas e executadas”. A ordem interna foi restabelecida e onde antes estavam os militares das SS a dar ordens de extermínio, encontrava-se agora o Estado Maior Internacional.

A luta não terminara. Os combatentes espanhóis e soviéticos de Mauthausen enfrentaram as SS em retirada da Checoslováquia, fazendo-os fugir depois de duros combates. As tropas dos chefes do Campo, Ziereis e Bachmayer, estavam do outro lado do Danúbio e preparavam-se para atacar o Campo. Para o evitar, era necessária uma antecipação e impedir que atravessassem o rio pela única ponte intacta, a ponte ferroviária. Os combates dirigidos pelo EM de Mauthausen, em que participaram principalmente soviéticos, espanhóis e checos, impediram que os primeiros tanques alemães Tigre passassem pela ponte.

Em 6 de maio, as SS fizeram várias tentativas para atravessar o Danúbio que fracassaram, embora tivessem tanques, canhões e metralhadoras. A resistência do Campo só tinha metralhadoras e Panzerfaust (tubos antitanques) roubados ao inimigo e que usavam pela primeira vez. A situação era crítica e a resistência não poderia durar muito, pelo que equacionaram fazer voar a ponte ferroviária com os explosivos que os próprios nazis haviam colocado.

O ataque dos soviéticos da planície de Ens forçou as SS a deslocar parte das suas tropas para lá e a pressão sobre a resistência reduziu-se, mas a luta continuava. “Aquilo era uma torre de Babel, onde tínhamos de traduzir todas as ordens dadas (...) Por todos os lados as ordens de rendição haviam sido dadas às tropas alemãs e Berlim já havia caído às mãos do exército soviético. No entanto, para nós a luta continuava ... Era o nosso destino. Havíamos sido os primeiros a combater contra as hordas hitlerianas e estava escrito que seríamos os últimos a largar as armas”.

Finalmente, uma coluna de tanques americanos fez a sua aparição e a batalha terminou.

Uma longa jornada aguardava os republicanos espanhóis até serem acolhidos em França, mas isso já é outra história.

Este relato não tem nada a ver com a história oficial. É, sem dúvida, uma epopeia dirigida por comunistas espanhóis, realizada por aqueles que decidiram resistir e organizar-se contra o desespero e a morte. É a verificação histórica da continuidade da luta empreendida na guerra espanhola e que se prolongou no solo europeu contra a Alemanha nazi; da utilização da experiência organizativa e do combate internacionalista.

Da convicção de que a derrota do inimigo mais poderoso é possível sempre que houver a vontade inquebrantável – como eles diziam – de resistir, e da capacidade da organização para vencer.

Provavelmente, é por isso que a história oficial tem tanto interesse em esconder façanhas como esta. Eles querem-nos derrotados, impotentes e ignorantes. Cabe-nos a nós restaurar o fio vermelho da continuidade histórica da luta, não apenas para lhes render a merecida homenagem, mas também para saber de onde viemos e quem somos.

Nota: Parte desta informação obtive-a dos testemunhos de Tomás Martín, irmão da minha mãe e representante do Partido Comunista da Espanha no Comité Internacional de Mauthausen. Mariano Constante e Miguel Malle consideravam-no seu irmão.

Escrevi um relato biográfico da dimensão política da sua vida que intitulei “A voz que te é devida” [3]. É uma história particular, mas que tem o mesmo selo de heroísmo, dor, firmeza ideológica e solidariedade que nos legaram milhares de mulheres e de homens da melhor geração da nossa história.

Notas
[1] Pauwels, Jacques, R (2000). O mito da guerra boa. Editorial Hiru
[2] Constante, Mariano (1974). Os anos vermelhos. Editorial Círculo de Lectores.

Tradução do castelhano de MFO
 in Pelo Socialismo
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