A religião neoliberal
Economia mundial
A religião neoliberal
Carlos Carvalhas
As «crises cíclicas», as «crises financeiras», os elevadíssimos recursos saídos dos Orçamentos de Estado para salvar bancos, banqueiros e grandes accionistas, a acentuação das desigualdades, a polarização da riqueza e a redução de direitos e do poder aquisitivo dos trabalhadores, têm levado ao descrédito políticos e economistas e as políticas neoliberais por estes seguidas.
Rebatizadas de políticas de austeridade, as políticas neoliberais tiveram por efeito uma elevada concentração e centralização de capitais e a sua aplicação em plena recessão agravou a crise com quedas brutais do produto, a intensificação da exploração, o aumento do desemprego e da emigração, com dolorosas situações sociais.
O resultado da «contra-revolução conservadora» iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, designadamente no campo da teoria económica, é trágico.
No entanto, os dominantes, depois do susto da crise 2007/09, procuraram de novo retomar a ofensiva, fazendo do charlatanismo económico uma ciência e procuram que esta seja a base do ensino universitário. Escudam-se em modelos abstractos e classificam de «ciência» económica o culto de um qualquer modelo matemático apesar de serem contrariados pela prova dos factos.
Em vez de formação procura-se a deformação, criando um corpo de defensores de uma «Teoria Económica» que sirva os dominantes e lhes salvaguarde os privilégios.
Universidades de Economia e Gestão começam a comportar-se como empresas concorrenciais, que se distinguem pela colocação dos seus alunos em altos cargos de grandes empresas e na Administração Pública, lutando por uma boa referência ou classificação no ranking estabelecido por universidades anglo-saxónicas e pela publicação de artigos dos seus professores e alunos, também em revistas anglo-saxónicas de «ciência económica», onde é necessário publicar para se construir uma carreira académica e enfileirar nas elites dominantes. Como é evidente, tais revistas são dominadas por comités de leitura, seitas da mais pura ortodoxia que dão ou não o aval à publicação de tal ou tal artigo.
As aulas são normalmente em inglês, e tal como outrora se citava o latim é também exibição de pseudo-erudição. E mesmo numa dissertação em português acontece-se frequentemente juntar-lhe aqui ou ali uma expressão na língua de Shakespeare, apesar da sua existência na língua portuguesa.
Entre nós, a reconversão do ensino ao sectarismo neoliberal, bem como à micro economia-business, como base de toda a economia sem a confrontação com outras correntes de pensamento económico, foi ganhando cada cada vez mais espaço com os governos do bloco central das negociatas (PSD/CDS/PS).
Uma expressão pomposa do ensino da «Gestão» verificou-se com a inauguração da Nova School of Business & Economics, em 29 de Setembro/2018, um espaço com supermercado, ginásio, clínica médica e… um túnel de acesso à praia, tendo o Reitor da «Universidade Nova» dito que era um projecto que junta «ambição, rigor e espírito empreendedor».
A imprensa relatou na altura que o campus tinha sido inspirado nos de Harvard, Columbia e Stanford, dando conta que na inauguração marcaram presença, entre muitas outras personalidades, Paulo Portas, Luís Amado (do ex-BANIF) e Ana Botim, presidente do Grupo Santander.
Tudo dito. A reprodução das elites e da ideologia ao seu serviço.
Depois da publicação de A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, do economista inglês Keynes, em 1936, pode dizer-se que a economia passou a ser estudada em duas grandes componentes. A teoria «microeconómica», que se debruça sobre os «consumidores» e as empresas, e a «macroeconomia» que estuda a economia no seu conjunto.
A partir de 1960 o economista Robert Lucas e seus colegas desenvolveram a teoria macroeconómica que classificaram de «neoclássica», que defende que os mercados funcionam bem quando o Estado não intervém. As teorias do «Estado mínimo». Mínimo, claro!, no apoio aos trabalhadores, e máximo na canalização de recursos e apoios ao grande capital. As teorias de Robert Lucas de que uma acertada teoria macroeconómica só se pode desenvolver sobre as bases da microeconomia, num modelo econométrico estruturado nas regras de decisão óptimas dos agentes económicos e nos postulados da teoria microeconómica – maximização da utilidade de cada consumidor e maximização do lucro do lado de cada empresa – foram dominando o campo da macroeconomia.
Esta corrente acabaria por se cindir em duas, a dos «puristas» e a dos «pragmáticos» politicamente mais progressistas, classificando-se de «neo-keynesianos».
Refira-se que Robert Lucas – Prémio Nobel em Dezembro/2003 – num discurso na «American Economic Association» afirmou, categórica e triunfalmente, que a partir daquela época era impossível vir a produzirem-se crises semelhantes à grande depressão de 1929/31. Quatro anos mais tarde, os EUA e a economia mundial entraram na devastadora «crise 2007/2009».
Também instituições como a OCDE, na base dos seus modelos, previam que 2008 seria um ano excepcional, um ano bem positivo para a economia dos EUA e a economia mundial. Vale a pena ler as suas previsões do Outono de 2007, em que, entre outras pérolas, se afirma: «a nossa previsão anual continua muito favorável, com uma aterragem suave nos Estados Unidos, uma retoma forte e sustentada na Europa, uma trajectória sólida no Japão e uma conjuntura de grande dinamismo na China e na Índia».
Como se sabe estas magníficas previsões, assentes nos seus modelos matemáticos complexos, eram completamente delirantes. Mas os defensores do «não-intervencionismo do Estado», nomeadamente na Administração americana, em fins de 2008 viram que sem uma intervenção decisiva da sua parte na compra de milhares de milhões de dólares de activos era a derrocada do sistema financeiro que se avizinhava, como relata nas suas memórias o Secretário de Estado do Tesouro, Hank Paulson. (1)
Nos decénios seguintes Robert Lucas e seus seguidores desenvolveram modelos matemáticos complexos (modelos de equilíbrio geral dinâmico-estocástico, na sigla inglesa DGSE – Dynamic Stochastic General Equilibrium), que vieram a ter uma dimensão claramente política ao serviço dos grandes interesses. Mesmo Olivier Blanchard – economista reputado, ex-director do FMI, professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e figura grada em meios académicos portugueses –, que foi um defensor destes modelos acabou por admitir que estes estavam profundamente viciados.
Boa parte do ensino é dominado pela franja mais integrista e sectária dos microeconomistas neoclássicos, que consideram todas as outras abordagens como pensamento ultrapassado, sem lugar na Universidade, ou apenas tendo lugar nas faculdades de história ou de sociologia… Por outro lado, os ideólogos do capital não só procuram legitimar as crises como algo natural para que não se questione o sistema, regressando ao mesmo tempo à teoria de Thatcher de que «não há alternativa», como procuram também legitimar a continuidade das medidas restritivas e as chamadas medidas de austeridade (concentração da riqueza) com o pretexto de que uma nova crise pode rebentar. O Estado, dizem, não só precisa de ter munições (saldos primários orçamentais positivos) para responder à crise, como não pode ter muitas despesas fixas (despesas estruturais) mais difíceis de retirar (carreiras da função pública). Uns artistas! Claro está que não se aplica para o sistema financeiro… É a procura do condicionamento ideológico das massas na base do seguinte raciocínio: como a crise pode vir o melhor é continuarmos com o cinto apertado.
A baixa tendencial da taxa de lucro, a sobre-acumulação de capital, a destruição e desvalorização do capital para restaurar a taxa de lucro estão afastados da análise das crises (2). Estas são explicadas pelos seus aspectos externos, ou por desvios de comportamentos éticos, «ganância», como dizia, por exemplo, Cavaco Silva. As mentiras, os sofismas, as manipulações e também a reescrita da história vão deformando a compreensão do mundo e a inteligência colectiva, cultivando-se na escola a «extinção progressiva do gosto pela descoberta, da vontade de questionamento, o desejo de compreender, de aprofundar e aprender», «o pensar o mundo para além das aparências», criando «novas formas de ignorância». (3)
O condicionamento ideológico assenta ainda na santíssima trindade da nova religião da economia: business, empreendedorismo, neoliberalismo.
Entre nós, a expressão deste posicionamento manifesta-se também na imprensa dita económica, ligada aos interesses económicos, e em publicações como as do «Fórum Económico para a Produtividade» ou, por exemplo, nos noticiários, que diariamente matraqueiam sobre o andamento das bolsas, como se as cotações diárias fossem do interesse de cada cidadão.
Apesar de toda esta ofensiva ideológica, das derrotas do socialismo, das pressões do imperialismo norte-americano, da CIA, das ingerências directas e indirectas, através do Banco Mundial, do FMI, das diversas Organizações Não-Governamentais e seitas religiosas, a nível mundial o grande capital percebe que os trabalhadores e os povos não se rendem e que as injustiças gritantes do capitalismo e as suas contradições acabarão por gerar novas explosões. Hoje não se ouvem afirmações tão triunfalistas como as que pronunciou o multimilionário Warrem Buffet, em 2005, ao caracterizar essa fase histórica: «a luta de classes existe claramente, mas é a minha classe, a dos ricos que a conduz e que a ganha» (4). O descrédito é geral com as políticas ao serviço do grande capital, ao serviço do capital financeiro. Chris Hedges (5) considera que o capitalismo na sua expressão neoliberal perdeu o seu crédito político, o que «obriga as elites a alianças pouco recomendáveis com os neofascistas, que nos EUA são representados pela direita cristã. Este fascismo cristianizado preencheu rapidamente o vazio ideológico de Trump e é incarnado por personalidades como Mike Pence, Mike Pompeo.
As perspectivas da acentuação de uma política ainda mais reaccionária no campo social, na cultura, nos costumes, com uma nova crise são reais. Reconhecendo os perigos, também não falta, no campo dos economistas do sistema mais sensíveis, gente inteligente que não desconhece as contradições do capitalismo e a fantasia do pensamento económico neoliberal e que procura saídas para as superar, isto é, para «salvar o capitalismo», combater as derivas fascizantes mas também anestesiar a resistência e a luta das forças mais consequentes.
Um Mundo incerto
A reunião da Primavera do FMI, em Washington, confirmou o abrandamento do crescimento económico mundial, prevendo um ritmo ainda mais lento do que se estimava em Outubro, e deixou transparecer os receios de uma nova crise. Sistematicamente optimistas, as projecções do BCE têm também sido revistas em baixa, trimestre após trimestre, passando, só nos últimos três meses, de 1,7% a 1,3%, o que não deixará de ter consequências na sua política e na manutenção de taxas de juro baixas, para desespero da ortodoxia neoliberal, designadamente a alemã.
Há quem se interrogue se o abrandamento e até a estagnação das economias são temporários ou se são para durar. As probabilidades tendem mais para a segunda hipótese, mas aqueles que conhecem melhor o quadro explosivo evitam fazer previsões. Christine Lagarde afirmou perante a Câmara do Comércio americano que a retoma prevista pelo Fundo Monetário no ano passado não se tinha verificado, sublinhando em desculpa que com tantos factores de risco era «delicado» fazer uma apreciação sobre o andamento da economia global.
No entanto a economia de casino continua a girar.
Os que se fiam em absoluto nos movimentos altistas da Bolsa esquecem-se do seu carácter altamente especulativo e em grande parte manipulável. Segundo a Goldeman Sachs, nos EUA, nos últimos dez anos, por cada acção comprada pelo público, por estrangeiros, fundos de pensões, fundos de investimento e outros compradores institucionais, as empresas compravam para si próprias 50%! A maior procura de acções não vem de investidores, mas das próprias empresas.
Estas compras em geral fazem subir as suas cotações. Ao reduzirem o número de acções em circulação aumentam o rendimento por acção e proporcionam rendimentos muitas vezes elevados aos investidores. Isso pode acontecer mesmo com o andamento da chamada economia real e das empresas estagnado ou em retrocesso, com lucros bolsistas puramente especulativos. Foi o que aconteceu entre 2002 e 2007, em que havia euforia bolsista com salários estagnados e empresas a afundarem-se. Logo a seguir tivemos a crise.
A crescente financeirização das economias, o desenvolvimento da «banca sombra», «Shadow Banking» (6), e o aumento exponencial da dívida privada não auguram grande futuro. Mesmo os mais acérrimos neoliberais começam a duvidar que os mecanismos de mercado possam diminuir o rácio dívida/PIB e evocam o paradoxo de Irving Fisher verificado na grande depressão: num contexto de deflação e de fraco crescimento «quanto mais os devedores reembolsam mais eles devem».
O colossal montante da dívida privada é considerado um problema central da economia mundial e as sucessivas injecções de liquidez no sistema bancário continuam a alimentar as actividades especulativas.
Na União Europeia prossegue a política ditada pelos países dominantes, os países credores, indo ao encontro dos interesses do capital financeiro e dos seus super-bancos, prioridade ao desendividamento tendo o défice orçamental como o alfa e o omega de toda a política económica e financeira. A consagração nos tratados europeus dos limites do défice e do endividamento continua a servir de pretexto para a adopção das ditas reformas estruturais, tendo por alvo a legislação laboral – facilitar a taxa de exploração – e a diminuição do papel do Estado, sob o eufemismo «reforma do Estado», limitando cada vez mais os serviços prestados pelo Estado – ensino, saúde –, reduzindo assim o salário indirecto dos trabalhadores e passando serviços lucrativos aos privados. Nesta lógica, os partidos servidores do grande capital defendem a diminuição dos impostos sobre as empresas e grandes fortunas, em vez do aumento do investimento a partir do Orçamento do Estado.
A flexibilização das sacro-santas regras orçamentais encontra fortíssimos opositores apesar da crescente repulsa social que provoca, uma no plano ideológico em nome dos superiores interesses do capital e outra da Alemanha, em nome da especificidade do seu modelo de crescimento, do seu sistema bancário em sérias dificuldades e por ser o principal financiador e credor da UE.
É por isso que a chamada Teoria Monetária Moderna (MMT) defendida pela ala esquerda do Partido Democrata nos EUA, pelos «perigosos esquerdistas» Bernie Sanders e Alexandria Ocasio Cortez, tem suscitado uma repulsa visceral, embora, curiosamente, alguma simpatia tenha aparecido em debates académicos na imprensa alemã com defensores inesperados. (7)
A Teoria Monetária Moderna, que alguns consideram ser uma variante do keynesianismo (gerir a economia através da despesa e dos impostos), tem sido criticada por diversos economistas inclusive marxistas, embora com ângulos diferentes. O facto de não dar prioridade ao défice é uma heresia. A MMT é defendida por quem tem moeda própria e soberania monetária. Depois de todos estes anos de fetiche do défice, um cerrado coro de críticas a esta teoria tem-se verificado por toda a UE, pela ortodoxia neoliberal, nomeadamente na Alemanha. Mas a crise do Deutsche Bank e de outros bancos, a modéstia do crescimento do PIB, a brutal acentuação das desigualdades, têm acentuado também crispações entre os partidos da coligação alemã e dúvidas sobre a estreita sujeição aos dogmas em vigor. Não é por acaso que se começa neste país a falar numa nova estratégia industrial capaz de proteger as empresas da concorrência exterior, designadamente da chinesa.
Por outro lado, se bem que a inflação tenha vindo a aumentar na UE nestes últimos trimestres, esta continua anémica em muitos países, apesar das sucessivas injecções de liquidez do BCE na banca.
O espectro da «japonisação da Europa» (como alguns referem a deflação) continua presente.
É neste quadro que se compreendem os apelos de economistas de grandes empresas europeias (economista-chefe da Allianz) a defender que as chamadas medidas não convencionais – já tornadas clássicas – não são suficientes e que os governos deviam adoptar medidas menos restritivas afim de financiarem investimentos destinados a melhorar a produtividade.
Os «constrangimentos» do Euro
Há quem diga que estamos numa acalmia em relação ao Euro, que a sua crise foi superada e que, por isso, a sua contestação deixou de existir. Não é verdade. A crise do Euro, na sua expressão financeira, bancária e de taxas de juro dos empréstimos, é hoje bem diferente da que era há cinco anos. Mas isso deve-se, no essencial, à continuada intervenção do BCE, quer em relação às taxas de juro, quer em relação às enormes injecções de liquidez no sistema bancário, bem como a uma conjuntura externa incontestavelmente favorável.
Os efeitos do Euro exprimem-se hoje, de forma indirecta, nas políticas restritivas, na perda da competitividade externa da maioria dos países, na prioridade absoluta dada ao défice e ao pagamento da dívida, com prejuízo no investimento público, na degradação das funções sociais do Estado, e exprime-se, em geral, nas chamadas políticas de austeridade, mais ou menos disfarçadas, acentuando escandalosamente as desigualdades. (8)
As consequências políticas têm depois tradução nas explosões sociais – coletes amarelos em França –, subida da extrema-direita em vários países em que as campanhas contra a imigração encontram terreno muito mais favorável num quadro de dificuldades sociais e de acentuação das desigualdades.
Os desequilíbrios em termos de Balança Comercial e de pagamento são enormes. A mesma política monetária aplicada aos países com níveis e estrutura de desenvolvimento tão diferentes acabaria por ser muito restritiva para os países economicamente mais frágeis e de muita amplitude para os países economicamente mais fortes. E tudo isto sem mecanismos de compensação, pois o Orçamento Comunitário não o faz. As margens de manobra para diferentes políticas económicas e sociais no quadro do Euro são manifestamente muito limitadas.
O Euro tem provocado crises que se repetem, tem lançado os países da Zona Euro uns contra os outros e mostrou a vacuidade dos belos princípios com que os ditos europeístas enfeitavam os seus discursos: a «coesão económica e social», «o nivelamento por cima das conquistas sociais», a «solidariedade» entre povos e países da UE. A desagregação da UE vai impor, mais tarde ou mais cedo, respostas efectivas e não de cosmética à questão do Euro.
Diz-se muitas vezes que os economistas que têm posto em evidência as agudas contradições e os efeitos negativos provocados pelo Euro são anglo-saxões e que estão a defender as suas damas – o dólar e a libra – Josepf Stiglitz, Lord Mervyn King, ex-governante do Banco de Inglaterra… Mas que dizer das obras fundamentadas de uma Ashoka Mody, ex-economista do FMI e vice-directora do Departamento de investigações europeias do Banco Mundial, com o seu livro Euro Tragedy, ou o de Angelo Basile, La Métamorphose de l’Euro, ou as de Claudio Borghi e de Alberto Bagnai, autor do Il Tramonto Dell’ Euro, e que são hoje respectivamente o presidente das comissões de finanças da Câmara dos Deputados e do Senado Italiano, bem como as de Gérard Lafay, ou de Jacques Sapir, David Cayala, Cédric Durand, Frédéric Lordon, etc., etc. (9)
O Euro tem travado o crescimento da União Europeia e está na base da crise por que têm passado os países do Sul da Europa e do seu colossal endividamento. Quem quiser ter uma ideia clara dos profundos desequilíbrios da Zona Euro é consultar as estatísticas do Sistema de Pagamento do BCE, Tarjet2, e verá que a Alemanha continua a ser o principal país financiador praticamente de toda a UE e inclusivamente do BCE. Por quanto tempo mais isto pode continuar sem as inevitáveis consequências políticas e sociais? A sobrevalorização da taxa de câmbio significa uma moeda cara que se verifica nos preços e custos salariais quando se exprimem em moeda estrangeira (10).
Depois, como se o Euro nada tivesse a ver com a competitividade, tratam de procurar compensar a sobrevalorização da moeda com aquilo a que eufemisticamente chamam de «desvalorização interna», ou seja, o esmagamento dos salários reais.
Mas os «constrangimentos» do Euro não se resumem apenas à taxa de câmbio, mas também à perda de soberania da política monetária, da política cambial e até da política orçamental, ficando um país como Portugal nas mãos de um banco Central Europeu e, por seu intermédio, das empresas de notação (empresas de rating) e das decisões arbitrárias da Comissão e do Directório da UE.
Alterações nos equilíbrios mundiais
A estratégia definida e levada à prática para salvar a banca e o sistema financeiro criou novas contradições e inundou o Planeta de combustível para uma nova explosão.
Os bancos centrais (FED, Japão, Inglaterra, BCE) querem sair da situação das taxas de juro negativas, ou próximas do zero, e das políticas de sucessivas injecções de liquidez na banca, que em geral não se têm traduzido por crescimento económico mas por especulação, endividamento e aumento de capital fictício. Mas quando aumentam ou anunciam aumentar, mesmo que ligeiramente, as taxas de juro, as economias abrandam e os países endividados reagem tal como as bolsas levando os bancos centrais a recuarem novamente.
Este quadro de contradições em que se movem os bancos centrais e os receios de ficarem com poucas «munições» no caso de uma nova crise – as taxas directoras perto do zero – está na base de debates que se verificam no banco central dos EUA, a FED, para que seja dotada de novos poderes, inclusivamente intervir directamente no mercado de obrigações, ou poder intervir nas taxas de longo prazo…
No BCE estas preocupações têm tido menos visibilidade pública.
As novas injecções de liquidez dirigidas aos bancos têm tido também como consequência o tremendo aumento das desigualdades, na medida em que é o capital financeiro o principal beneficiário. A «recuperação» económica que se verificou depois do auge da crise de 2007/09, embora lenta, beneficiou sobretudo uma minoria, os banqueiros, accinonistas e gestores de grandes empresas, especuladores bolsistas e do imobiliário, patronato das grandes distribuidoras, autênticas «desnatadeiras da mais-valia» e estranguladoras dos pequenos e médios produtores. Paralelamente, a recuperação fez-se com a perda de direitos de trabalhadores e reformados, com a intensificação da exploração, do aumento da insegurança económica, particularmente das camadas jovens. Para todos estes a reposição de direitos e do poder de compra foram limitados e lentos.
A economia mundial abranda e a relação de forças entre as grandes potências também se vai alterando, com o aumento do peso dos chamados países emergentes na economia mundial, como o mostra em termos de produto, por exemplo, o crescimento da economia chinesa e mesmo da economia indiana, o que não significa a não existência de problemas económicos e financeiros nestes países. A evolução monetária também tem tido alterações, como uma diminuição relativa do dólar dos EUA nas reservas internacionais e uma estagnação do Euro, que não tem preenchido o espaço do dólar, o que não deixa de ser significativo. A parte do Euro nas mesmas reservas internacionais é inferior à parte das moedas dos países que constituem a Zona Euro em 1995 a 1997, o que é a negação da tese triunfalista dos que defendiam que o Euro iria equilibrar a hegemonia do dólar. Outras moedas, como o yen japonês, a libra, o dólar canadiano e australiano, têm vindo a subir nas reservas mundiais, e depois de 2016 também a moeda chinesa, o renminbi, que já representa 7,8% do total das reservas mundiais, superior à percentagem da libra 4,7%. O dólar, embora com 53,1%, tem continuado a perder posição (11).
O quadro mundial não é animador. Na UE, as últimas previsões apontam para novo abrandamento no crescimento das economias. A Alemanha está perto da estagnação e a braços com o mastodonte do Deutsche Bank em sérias dificuldades, bem como alguns bancos regionais e caixas de poupança. Na Itália as notícias dão conta de novos bancos em dificuldades, com o governo a pensar recapitalizá-los com o eufemismo de «capitalização por precaução».
No nosso país, o abrandamento é também inevitável, com a redução dos mercados externos e com o seguidismo do governo às políticas do Euro, apesar de António Costa reconhecer, em tempo eleitoral, que o «Euro foi o maior bónus que a Europa ofereceu à Alemanha»! Reconhece a quem serve o Euro, admite uma nova crise do Euro, para logo a seguir retomar o conteúdo do velho slogan socialista da «Europa connosco» numa profissão de fé sobre um Orçamento para a Zona Euro que já se sabe que é um mini-orçamento para salvar a face de Macron. Sobre o monstro burocrático – fábrica em laboração contínua de normas e decisões nas costas do povo ao serviço do capital financeiro – passa ao lado.
A financeirização da nossa economia é também uma realidade e absorve elevados recursos públicos.
A banca tem beneficiado de múltiplas ajudas do Governo e do BCE e, como só temos um banco público, são ajudas aos bancos estrangeiros. Chegámos a uma situação em que temos uma «Associação Portuguesa de Bancos» estrangeiros! e que persiste na pressão para mais benefícios e mais comissões bancárias e, inclusivamente, para o pagamento da utilização do multibanco!
Neste quadro, a direita, do «brutal aumento de impostos», da liquidação de direitos dos trabalhadores, da redução de salários e reformas, da entrega de valioso património público ao estrangeiro, critica o insuficiente crescimento da economia portuguesa, ao mesmo tempo que defende as políticas do Euro e as imposições de Bruxelas, a «quadratura do círculo». E, como se não bastasse, ainda tem o descaramento de insistir na fábula propagandística de que foi ela que salvou Portugal da «banca rota».
Seguindo os ditames da troika, podia dizer-se que o anterior governo «salvou» bancos da banca rota para depois os entregar ao estrangeiro com a «ajuda» e pressão do BCE, à custa do afundamento do nível de vida dos trabalhadores, da emigração e de um novo impulso na concentração da riqueza. O saldo desse pseudo-salvamento foi uma queda de 7% no PIB, com Victor Gaspar a confessar que se enganou.
O fracasso da política neoliberal da UE e da Zona Euro está à vista e não é com a continuação da mesma política que se dá resposta à acentuação das desigualdades e à insegurança económica dos trabalhadores, nem à estagnação económica, e muito menos à agudização das contradições no seio da UE e da Zona Euro.
Notas
(1) A treta do «livre mercado» e da não intervenção do Estado rapidamente deu lugar à socialização dos prejuízos, para mais tarde privatizarem os lucros, e à elaboração da teoria por parte da Wall Street do «too big to fail» (grande de mais para ir à falência), contrariando todos os princípios proclamados de não-intervenção. A mão invisível foi entregue aos visíveis Orçamentos de Estado na capitalização e desendividamento da banca. A nova doutrina passou a ser: dar a prioridade à lucratividade do sistema bancário, passando os custos para os trabalhadores, os reformados e a sociedade em geral.
(2) World in crisis: A Global Analysis of Marx’s Law, Outubro/2018, Gughelmo Carchect e Michael Roberts.
(3) L’enseignement de l’ignorance et ses conditions modernes, de Jean-Claude Michéa; e La fabrique du crétin, de Jean-Paul Brighelli.
(4) Entrevista à CNN, 21 de Maio de 2005.
(5) Chris Hedges – Jornalista, colunista do New York Times, Prémio Pulitzer, professor e autor de vários livros.
(6) A «banca-sombra» é um sistema financeiro informal não regulado que fornece crédito àqueles que têm maiores dificuldades em obter um financiamento num banco. O crescimento dos empréstimos (crédito) à margem do sistema bancário, através de fundos de investimento ou de empresas, a particulares levou a que, em Março de 2015, o Banco de Portugal, a Comissão de Mercados de valores imobiliários e o Instituto de Seguros de Portugal, o chamado Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF) criasse um grupo de trabalho sobre a «banca-sombra».
(7) Entre nós, José Maria Brandão, colunista chefe e economista do BCP, fustiga a MMT – «A ideologia que queria ser teoria».
(8) Numa entrevista ao Financial Times, o antigo ministro alemão das Finanças, Shaüble, insistiu na ideia de que a Grécia devia ter saído temporariamente da moeda única. Segundo Shaüble, propôs ao seu homólogo grego que era preciso a Grécia sair do Euro para poder desvalorizar a moeda e assim recuperar «competitividade», in Diário de Notícias, 23 de Março de 2019. Como se vê a saída do Euro podia ser negociada e não eram os falsos obstáculos jurídicos e outros que o impediam.
(9) Segundo o jornalista do jornal Telegraph, Ambrose Evans-Pritchard, citando os arquivos americanos agora desclassificados, Washington foi parte interessada na criação do Euro como melhor meio de controlar a Europa através da NATO, a UE e diversos Organismos Não-Governamentais. A criação de uma organização supranacional controlada por Washington.
(10) Os diversos sistemas que permitem medir a desadequação da taxa de câmbio em relação ao que se considera «fundamentais da economia», mostram que o Euro é uma moeda cara para muitos países como Portugal – ver «Determinants of the Long-Run Equilibrium Real Exchange Rate: An analytical Model, Oxford University Press, p. 264 e 292.
Ver entre nós, entre outros, os trabalhos e artigos de Octávio Teixeira, Ricardo Cabral, Ferreira do Amaral, José Lourenço, Paes Mamede…
(11) FMI, Composition of Foreing Exchange Reserves (COFER). A China tem também procurado criar uma alternativa ao sistema de pagamentos SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), que continua fundamentalmente sob o controlo dos EUA. Esta é uma questão maior para a reestruturação do sistema monetário internacional que tem o apoio da Rússia e de vários países «emergentes» e a feroz oposição dos EUA que, para além dos privilégios do dólar, têm usado esta moeda como uma arma. A Rússia apoia o SPFS (System for Transfer of Financial Messages), que se tem vindo a impor.
Ver também o artigo de Jorge Cadima, «A propósito do declínio dos EUA», in O Militante N.º 360, Maio-Junho/2019, p. 54.
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