O ano de 2016 foi emblemático na história
política brasileira. O Partido dos Trabalhadores (PT), organização
política surgida no bojo da resistência à ditadura empresarial-militar,
originalmente com tendências pronunciadamente socialistas, foi despojado
da Presidência da República. O PT tem que viver com a amarga
experiência de redescobrir a existência da luta de classes, do
imperialismo, da não-neutralidade republicana dos aparelhos do Estado
etc. Marilena Chaui, lamentavelmente, também teve que lembrar que o
maior mal do mundo não reside na “classe média” paulista.
Aparentemente, a burguesia brasileira, em
suas diversas frações, não aprendeu o respeito bobbiano às regras do
jogo. Já a esquerda pós-comunista, como muitos queriam nos anos 1980 do
século XX, aprendeu o “valor da democracia”: as principais tendências da
esquerda nos últimos trinta anos respeitaram religiosamente os limites
impostos pela democracia burguesa no Brasil e, de tanto respeitarem,
como prezam as regras explícitas, mas não ditas do jogo, passaram a ser
fiéis gerentes do sistema.
As esperanças brasileiras no processo de
redemocratização – que optamos por chamar de otimismo democrático –
foram derrotadas. Aliás, mais que isso, esperava-se dos anos 1980 uma
oportunidade única para combater o “autoritarismo” e a “exclusão social”
históricos da formação socioeconômica brasileira.
Inegavelmente, o otimismo tinha uma razão
de ser. Afinal não é em toda conjuntura histórica que, depois de mais
de duas décadas de ditadura, emerge um pulsante movimento operário e
popular. Tudo podia acontecer. E, no que é essencial, nada aconteceu. O
sistema político brasileiro continuou fundamentado numa democracia
restringida e com uso dilatado do terrorismo de Estado por meio de uma
política sistemática de extermínio frente a segmentos da classe
trabalhadora – notadamente, a população negra das favelas brasileiras.
No ano do golpe parlamentar, pudemos
constatar que o Estado brasileiro mata, tortura e viola mais os direitos
humanos que na época da ditadura empresarial-militar. O extermínio
sistemático – enquanto política de Estado – segue firme e encontra até
uma forma jurídica e constitucional para sua reprodução: os autos de
resistência (Zaccone, 2014). A militarização da vida social não parou de
crescer: um soldado do Exército Brasileiro passa, em média, cem dias do
ano em atividades “internas” (policiamento) – ver a coletânea Até o último homem, organizada por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira.
Ironicamente, Orlando Zaccone pergunta “o
que resta da ditadura?” E responde, ecoando Tales Ab’Saber, tudo, menos
a ditadura! A democracia burguesa é bem mais parecida com a ditadura
militar burguesa do que suspeitava o otimismo democrático dos anos 80.
Porém, curiosamente, a cada nova constatação de que a democracia e o
famoso “Estado de Direito” estão longe das ideias dos livros e dos
discursos, os setores hegemônicos da esquerda, ao invés de questionarem a
própria ideia de democracia abraçada, optam por reforçar suas
convicções anteriores insistindo que a democracia é pouco democrática e
precisa ser democratizada1.
Num ciclo de imunidade auto-atribuída, o problema da democracia se
resolve com mais democracia e cada “regressão democrática” deve ser
respondida com uma defesa mais enfática da democracia.
O objetivo dessa reflexão é debater a
regressão democrática da democracia, abordar o processo de retirada dos
direitos democráticos da classe trabalhadora no âmbito da democracia
burguesa e o consequente empobrecimento teórico e político dos setores
majoritários da esquerda brasileira e mundial na crítica à democracia
realmente existente. A chave analítica fundamental que guiará nossa
análise é a distinção política e teórica entre direitos democráticos e democracia burguesa,
buscando demostrar as diferenças e os desencontros entre ambos e como a
confusão entre as duas produziu nas últimas décadas um enfraquecimento
significativo na crítica e nas possibilidades revolucionárias.
Somos todos democratas
Na história de organização da classe
trabalhadora, desde a gênese do capitalismo, sempre houve concepções
diferentes do que é democracia. Até mesmo nas revoluções burguesas
europeias, especialmente francesa e inglesa, é possível identificar
setores mais radicalizados que apresentavam propostas avançadas do que
chamaríamos hoje de soberania popular e igualdade social – como o caso
do jacobinismo, na França.
A primeira grande expressão da maturidade
organizativa e política da classe operária europeia, a
socialdemocracia, continha um projeto de democracia antagônico ao
defendido pela classe dominante: o liberalismo, expressão ideológica da
burguesia, compreendia uma concepção jurídico-formal e restritiva de
democracia (igualdade jurídica e direitos políticos apenas para os
homens brancos, proprietários e europeus) e descarta qualquer conteúdo
“social” na dimensão do regime político.
A socialdemocracia apresentava uma
concepção ampla de democracia, alargando a esfera dos iguais e dos
portadores de direitos políticos e exigindo, de forma indispensável, que
a democracia tivesse um conteúdo social: o fim da propriedade privada e
da anarquia na produção, compreendidos, à época, como os principais
elementos do capitalismo, eram determinantes fundamentais da realização
da verdadeira democracia.
Durante boa parte do século XX, por
matrizes diferentes, houve um confronto entre concepções diferenciadas
de democracia. Esse gigantesco embate teórico e político foi esvaziado
nos anos 1980. De 1917 até a década de 1970 – entre grandes derrotas,
como a Revolução Alemã e a Guerra Civil Espanhola, e grandes vitórias,
como as revoluções Russa, Chinesa, Cubana e Coreana – o conflito entre
capital e trabalho no âmbito mundial encontrava-se numa situação de
relativo equilíbrio. Embora a maioria do mundo fosse capitalista, a
distância entre, por um lado, as forças do capital e, por outro, as
forças dos povos coloniais e da classe trabalhadora, não era tão
discrepante e existiam ameaças reais de superação do capitalismo.
Com a contrarrevolução neoliberal e
neocolonial que avançou ao final dos anos 1970, ganhou forças na década
seguinte e foi finalmente vitoriosa nos anos 90 – indo além dos sonhos
mais otimistas da ordem dominante com a derrubada da União Soviética e
das democracias populares do Leste Europeu –, instala-se uma situação
social na qual a crítica radical do existente, e, portanto, da
democracia, não estava na ordem do dia e foi banida do debate teórico. A
despeito da valentia de intelectuais tomados individualmente que se
recusaram a capitular e a aceitar “o fim da história”, formou-se um
“consenso conservador sobre a democracia2.
A democracia em sua versão liberal
parlamentar, tida apenas como uma competição eleitoral regular entre
partidos semelhantes, passou a ser o sinônimo da única democracia
possível e aceitável. O revezamento sistemático do poder entre partidos
da classe dominante, liberais ou conservadores, socialdemocratas ou
neoliberais, que executam basicamente o mesmo programa e garantem que
“não há alternativa”.
Nesse cenário, os poucos que se atreviam a
debater os limites da democracia burguesa – agora não mais adjetivada
como tal – eram logo tachados de autoritários ou totalitários. Três
noções são fundamentais para a hegemonia do consenso conservador em
torno da democracia burguesa. A primeira (talvez a que se mantém mais
sólida nos dias atuais) é que a esquerda revolucionária (sobretudo os
comunistas) seria antidemocrática, violadora dos direitos humanos e que
sacrifica no altar da igualdade social as liberdades individuais. Como
consequência disso, as experiências de transição socialista, chamadas em
linguagem jornalística de “países” ou “governos” comunistas, se
resumiriam a regimes autoritários ou totalitários – e a crítica/denúncia
do “stalinismo” evidentemente desempenha um papel central nessa
narrativa3.
Se o principal problema das experiências
de transição socialista foi a ausência de democracia e o autoritarismo
dos Partidos Comunistas, é necessário compreender a importância do valor
em si da democracia. Aqui entramos na segunda noção. Os anos 1980 e 90
marcaram processos muito importantes: o fim do apartheid na África do
Sul e o término de várias guerras de libertação nacional em África, a
saída de cena do ciclo de ditaduras militares do grande capital na
América Latina e a legalização/desarmamento de agrupamentos
político-militares revolucionários na América Central. Nesses processos,
já numa correlação de forças política e militar em âmbito mundial
desfavorável e com a hegemonia neoliberal consolidada, vários
ex-revolucionários das mais diversas matizes, aceitaram que não se
tratava de pôr termo à dependência, ao subdesenvolvimento e às
democracias burguesas, mas recuperar ou criar uma democracia liberal
burguesa.
O desenrolar histórico é, por si só,
expressivo, e podemos abordar rapidamente como exemplo o caso da África
do Sul. O regime pós-apartheid, dirigido Nelson Mandela e seu partido
(Congresso Nacional Africano), garantiu a vigência de uma igualdade
jurídico-formal, mas a segregação étnico-racial nos seus vários
determinantes (geográfico, econômico, cultural, social e político) não
só se manteve, como foi ampliada. Em suma, na democracia pós-apartheid
na África do Sul, mantém-se intacto o Estado racialista4.
O complemento necessário desse violento desarme político e teórico é o banimento
da tematização do imperialismo, do colonialismo e da máquina de guerra
operante em todos os cantos do planeta, mas em especial na periferia do
sistema – a terceira noção desse consenso democrático. A derrota do
movimento comunista no século XX foi acompanhada da derrota da revolução
anticolonial que marcou a América, a África e a Ásia (revolução que
politicamente teve várias expressões, como o movimento
terceiro-mundista, o nacionalismo revolucionário e a fusão entre
patriotismo e marxismo, como na Revolução Coreana e Chinesa); o
imperialismo, nos anos 90, retoma uma ofensiva neocolonial de proporções
assustadoras e, justamente nesse momento, some de cena a reflexão sobre
o imperialismo, o colonialismo e o complexo industrial-militar5.
Enquanto o neocolonialismo vivia seu
melhor momento desde a ascensão do nazifascismo, as modas acadêmicas do
momento falam em micropoder, disciplina, poder simbólico, fim do Estado
Nacional e dominação burguesa especialmente por meio da ideologia.
Poucas vezes na história foi possível achar um momento em que reflexões
que se pretendiam críticas ao establishment (em aspectos totais ou parciais) se descolaram tanto da realidade6.
Como ciclos que se completam, a negação de qualquer “aspecto positivo”
nas experiências de transição socialista se combina com a canonização
“crítica” ou acrítica da democracia (burguesa) e se fundem com o
banimento de qualquer reflexão a respeito do imperialismo, do
militarismo e do colonialismo. Surge o melhor dos mundos: um mundo em
que não haveria mais espaço para ditaduras, golpes militares ou o
fascismo e todos serão beneficiados pela globalização. O grande problema
da ideologia dominante é que a realidade teima em contradizê-la.
A regressão democrática da democracia
Domenico Losurdo, no seu livro Contra-história do liberalismo,
demostra que o pensamento liberal, desde o seu surgimento, foi uma
ideologia que buscou compreender a liberdade como um direito da
comunidade dos livres: homens brancos, proprietários e europeus (dos
países centrais da Europa). Os trabalhadores eram considerados
não-humanos, como máquinas falantes, os escravos e os povos coloniais
apareciam como essência da inumanidade, e as mulheres recebiam a
qualificação de seres inferiores.
Nunca houve dúvidas para a burguesia de
que era necessário construir um sistema político que tivesse como
objetivo primeiro a defesa da propriedade privada e da riqueza fruto da
exploração: o mecanismo de câmaras legislativas para os lordes, o voto
censitário, a proibição da montagem de partidos operários e sindicatos, a
negação de votos para analfabetos e mulheres, a perseguição à imprensa
operária, o terrorismo estatal etc. exemplificam esse momento histórico.
Portanto, a burguesia nunca confundiu a
democracia política (isto é, liberdade de organização partidária,
imprensa, reunião, manifestação, etc.) para a classe trabalhadora (ou
seja, a imensa maioria da população), com seu regime
constitucional-parlamentar. A primeira é criação da classe trabalhadora nos seus enfrentamentos contra o capital,
enquanto o último é criação da burguesia sob o liberalismo. A relação
entre regime burguês e democracia política em tempo algum foi
harmoniosa. Ao aceitar pela força a participação da classe operária no
“jogo” democrático-burguês, a classe dominante nunca deixou de buscar
mecanismos de exclusivismo no exercício do poder: a lógica é permitir a
participação política da classe trabalhadora negando sua incidência nos
centros de controle do poder político.
Não é nosso objetivo nesta coluna
detalhar os mecanismos mobilizados pela classe dominante a fim de
esvaziar qualquer possibilidade mínima de incidência da classe
trabalhadora no poder por meio da participação política institucional. O
fato importante é o seguinte: para a ordem do capital sempre foi clara a
distinção entre os direitos democráticos e seu regime constitucional.
Contudo, há que se considerar um fenômeno
importante já brevemente pontuado: durante a fase de ascensão das lutas
proletárias e dos povos coloniais, a tensão entre regime burguês e
direitos democráticos chegou a tal ponto que condicionou várias rupturas
democráticas, ensejando soluções fascistas, ditaduras militares e/ou
invasões militares neocoloniais. Houve, efetivamente, momentos em que a burguesia não suportou a sua democracia burguesia,
porém, ao mesmo tempo em que a democracia política sob o Estado burguês
era um impedimento temporário para seguir num padrão de acumulação de
capital desejável, era um limitador da ação das classes subalternas
contra a ordem do capital; exemplo significativo é o Chile da Unidade
Popular7.
Durante a contrarrevolução neoliberal e neocolonial, ganhou força um fenômeno novo em sua proporção: a gigantesca regressão dos direitos democráticos da classe trabalhadora sem precisar de rupturas institucionais.
Um dos exemplos mais significativos desse processo é a chamada “onda
punitiva” e a formatação do Estado penal nos países centrais do
capitalismo (ver as obras do sociólogo francês Loïc Wacquant, em
especial As duas faces do gueto e As prisões da miséria).
Todo esse processo de regressão
democrática dos direitos da classe aconteceu com uma inestimável
contribuição dos aparelhos de repressão e espionagem do Estado burguês. A
narrativa de uma “sociedade ocidental” na qual a repressão cede lugar
progressivamente à luta pelo consenso na dominação burguesa, perde de
vista que, frente ao aumento da densidade da rede associativa das
classes em luta na disputa ideológica, a classe dominante respondeu com a
criação de aparelhos de repressão/controle/vigilância herméticos a
qualquer controle popular ou público. Esses aparelhos atuam numa
permanente “guerra suja” contra os movimentos e organizações das classes
subalternas: sequestros, assassinatos, infiltrações, roubos,
sabotagens, apoio a golpes de Estado, falsificação de eleições, promoção
de determinadas vertentes culturais e guerra econômica estão entre
algumas atividades promovidas pela CIA e o FBI – paradigmas maiores
desse tipo de aparelho estatal burguês, que se generalizou e
profissionalizou nos países centrais do capitalismo no pós Segunda
Guerra8.
O avanço da classe dominante em seus
objetivos de fazer regredir os direitos democráticos dentro da
democracia burguesa é sempre facilitado pela própria posição de classe
das personificações do capital. Democracia política não é a mesma
coisa que dominação burguesa, mas, sob o Estado burguês, toda democracia
política é uma forma de dominação burguesa.
Isso ocorre porque: a) Os centros
decisórios estratégicos do Estado estarão sempre subordinados ao
interesse geral de acumulação do capital (o que não se confunde com o
interesse de um capitalista ou um de grupo deles tomado como exemplo
“empírico”); b) são tomados como fato dado, natural de um ponto de visto
ideológico, político e jurídico, a propriedade privada dos meios de
produção, a apropriação privada da riqueza e a mercantilização da força
de trabalho; c) por ter o poder econômico concentrado, a burguesia em
suas diversas frações está estruturalmente em vantagem na disputa pelo
controle dos diversos aparelhos do Estado e, quando perde aparelhos
centrais, como um Governo Federal, dispõe de uma rede de aparelhos de
hegemonia privados que conseguem com relativa facilidade paralisar ou
destruir a ação incômoda do aparelho estatal que se tornou disfuncional.
Dito de maneira mais simples: sobre a base capitalista, toda democracia é burguesa, embora os direitos democráticos sejam conquistas da classe trabalhadora.
Cabe, portanto, a pergunta: qual é o fator determinante que permite em
determinadas conjunturas a classe trabalhadora impor conquistas
democráticas ou tornar disfuncional a democracia burguesa? Resposta: a
ação de classe com radicalidade na defesa não da democracia em si, mas
dos direitos democráticos da classe9.
Em todos os momentos históricos em que a classe trabalhadora avançou em
conquistas democráticas se deu em um horizonte onde se pretendia muito
mais que melhorar o Estado burguês. Isto é, foi criticando agudamente os
limites da democracia burguesia e buscando radicalmente superá-la que
foi possível impor uma relativa democratização do Estado burguês.
No caso brasileiro, o Partido dos
Trabalhadores, em sua origem advoga a conquista do poder político. O PT
dizia, numa formulação de clara inspiração leninista clássica, que não
existe exemplo de transição socialista iniciada sem os trabalhadores
tomarem o poder do Estado (ver as obras de Mauro Iasi, em especial, As metamorfose da consciência de classe e Estado, política e ideologia na atual trama conjuntural).
A não aliança com partidos da ordem,
independência financeira e política, o foco na luta de massas e não na
disputa institucional e o programa político radical foi o principal
vetor de resistência à transição conservadora da ditatura
empresarial-militar à democracia burguesa. Por uma série de
determinantes históricos que não cabe aprofundar nesse momento, o PT
progressivamente suavizou a radicalidade do programa, abrandou a
independência de classe financeira e política, centrou-se na luta
institucional e passou a defender como sinônimo de “caminho democrático
ao socialismo” a atuação nos marcos da democracia (burguesa) brasileira.
A consequência é o esvaziamento da ação
de classe dos subalternos como vetor de resistência ao fortalecimento da
autocracia burguesa, e a conversão do PT em operador político do
sistema, deixando “legados” perfeitos à dominação de classe, como a lei
antiterrorismo, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e o
apassivamento dos explorados. Nas palavras de Mauro Iasi:
“As mudanças que se
verificam não se operam aleatoriamente, mas no sentido de recolocar a
consciência que se emancipava de volta nos trilhos da ideologia. Não é,
em absoluto, certas palavras-chaves vão substituindo, pouco a pouco,
alguns dos termos centrais das formulações: ruptura revolucionária por
rupturas, depois por democratização radical, depois por democratização e
finalmente chegamos aos “alargamento das esferas de consenso”;
socialismo por socialismo democrático, depois por democracia sem
socialismo; socialização dos meios de produção por um controle social do
mercado; classe trabalhadora, por trabalhadores, por povo, por
cidadãos; e eis que palavras como revolução, socialismo, capitalismo,
classes, vão dando lugar cada vez mais marcante para democracia,
liberdade, igualdade, justiça, cidadania, desenvolvimento com
distribuição de renda”.
Mauri Luis Iasi, Mauro Luis Iasi, As metamorfose da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento (São Paulo: Expressão Popular, 2006), p. 435.
Em resumo, o consenso conservador em
torno da democracia é o norte de uma época histórica de brutal regressão
da democracia política, e as respostas hegemonicamente formuladas pela
esquerda (a perspectiva de democratizar a democracia) não estão
conseguindo fazer frente a esse fenômeno. O desarme teórico está
imbricado com a derrota política num processo de retroalimentação.
Conclusão
O adversário de classe não está
retrocedendo na democracia. Esta conclusão não impõe posturas
esquerdistas e mecanicistas que não conseguem apreender, para as classes
dominadas, a diferença entre lutar sob uma democracia burguesia ou sob
uma ditadura fascista. A mudança de rota que deve ser operada pelas
forças de esquerda empenhadas em derrubar a ordem capitalista tem como
prisma primeiro encarar a democracia burguesa como ela realmente é: na
democracia realmente existente, a violência, o terrorismo estatal, a
negação de direitos básicos (como liberdade de imprensa e organização
sindical), os massacres no campo, os autos de resistência e a história
de milhares na mesma situação de Rafael Braga não constituem um desvio,
uma perversão, do ideal do Estado democrático de Direito – são o seu
funcionamento concreto, são a sua essência de classe em movimento.
O confronto da democracia realmente
existente deve andar casado com a defesa intransigente, estratégica, dos
direitos democráticos da classe trabalhadora. A democracia política
sempre carregou altíssimo potencial de contradição com a ordem burguesa.
A novidade, contudo, é que nesse momento de crise estrutural do capital
e ofensiva neocolonial, tal contradição é aguçada. O golpe parlamentar
de 2016 e a posterior eleição de Jair Bolsonaro, enquanto
particularidades da conjuntura brasileira, impõem, igualmente, um sério e
profundo reexame da trajetória da esquerda brasileira nas últimas
décadas.
Não é mais possível depois dessa
vergonhosa derrota política e moral continuar com “mais do mesmo”, como,
por exemplo, ainda manter esperanças no STF ou em votações na Câmara
dos Deputados.
A conclusão que se impõe, portanto, é máximo combate à democracia burguesa e máxima defesa dos direitos democráticos da classe trabalhadora.
Dentro desta perspectiva temos um norte de atuação para uma retomada
crítica da luta política no âmbito da “questão democrática”.
Democratizar a democracia é a forma política do reformismo burguês. Tal
como as ideologias do crescimento econômico com a distribuição de renda,
democratizar o Estado burguês retira do horizonte a luta pelo poder
popular, isto é, pela derrubada do Estado burguês e a construção de uma
verdadeira democracia fundada na propriedade social com economia
planificada e democracia operária. Não há futuro fora da luta pelo poder
popular.
***
Vale a pena conferir o vídeo especial de
Jones Manoel na TV Boitempo, em que ele apresenta os quatro vetores
fundamentais da obra do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo:
***
Notas
1 “O
feitiço do Estado democrático de Direito faz dele uma entidade
idealizada que alimenta uma retórica sustentada na fé, malgrado as
práticas coloquem os seus ideais em questão. Acredita-se no Estado
Democrático de Direito e, como toda crença, é alvo de fé e não de
questionamentos. Naturaliza-se o seu sentido e a sua lógica. A força das
consignas e dos princípios é despotencializada no seu processo de
institucionalização, quando práticas contraditórias com as promessas
liberais e democráticas são entendidas como erro e não percebidas como
coerentes com o ideário político que as produz […] Fertiliza com isto a
ilusão de ser possível cumprir as promessas quebradas” (Coimbra,
Scheinvar, 2012, p.62). 2
“[…] segundo o qual qualquer tentativa de alterações substanciais no
modelo representativo parlamentar nas conduziria necessariamente a algum
beco sem saída, como algumas formas de autoritarismo, o que pode ser
facilmente detectado como suposto de inúmeras análises teóricas do tema,
de ampla aceitação na mídia impressa e televisionada” (VIEIRA, 2006, p.
15). 3
O estudo “Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa
vista de hoje”, de Domenico Losurdo, sintetiza com brilhantismo os
argumentos dessa larga tendência teórico-política e, ao mesmo tempo,
fornece subsídios essenciais para refutá-la. 4 “Na
África do Sul, a vida miserável da maioria pobre em geral continua a
mesma de antes do apartheid, e o crescimento dos direitos civis e
políticos é contrabalançado pelo aumento da insegurança, da violência e
do crime. A grande mudança é que à antiga classe branca dominante se
somou a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas se lembram do
antigo Congresso Nacional Africano que prometeu não apenas acabar com o
apartheid, mas também justiça social e até mesmo uma espécie de
socialismo. Esse passado bem mais radical do CNA é gradualmente
obliterado da nossa memória. Não é de espantar que o ódio entre os
pobres e negros sul africanos esteja aumentando”. Slavoj Žižek, “Por que
o socialismo de Mandela Fracassou?”, Pragmatismo Político. Acessado em 20/07/2017. 5
“Durante quase todo o século XX, o conceito de imperialismo foi
excluído do conjunto dos discursos políticos aceitáveis para os círculos
dominantes do mundo capitalista […] Em 1971, no “Prefácio” à edição
americana do Imperialism is the Seventies de Pierre Anime,
Harry Magdoff aponta: “Como regra, os corteses acadêmicos preferem não
usar o termo imperialismo. Acham-no de mau gosto e não científico”
(Foster, 2006, p.431) 6 Nesse
ponto é necessário evitar confusões. Não estamos afirmando que esses
estudos são irrelevantes. Ao contrário. Muitos deles, como as
contribuições de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, são importantes na
compreensão de aspectos tópicos das estruturas de poder no capitalismo
contemporâneo. O norte da crítica é que essas pesquisas no momento de
sua produção e difusão ignoraram a tendência principal da dominação
política burguesa, produzindo um empobrecimento da compreensão do
problema enquanto totalidade. 7 Para uma análise brilhante dessa contradição chilena da Unidade Popular, conferir o clássico de Ruy Mauro Marini “El reformismo y la contrarrevolución estudios sobre Chile”. 8 Um tratamento mais ou menos sistemático do tema pode ser encontrado no livro de Sérgio Lessa Capital e Estado de bem-estar: o caráter de classe das políticas públicas, (São Paulo, Instituto Lukács: 2013), p. 135-149. 9 “A
classe molda o comportamento político dos indivíduos tão-somente se os
que são operários foram organizados politicamente como tal. Se os
partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como
“as massas”, “o povo”, “consumidores”, “contribuintes” ou simplesmente
“cidadãos”, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como
membros da classe e, consequentemente, a votar como operários”
(Przeworski, 1991, p. 42).
Referências
Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (orgs.), Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. São Paulo: Boitempo Editoral, 2013. Cecília Coimbra e Estela Scheinvar, “Subjetividades punitivo-penais” Em: Vera Malaguti Batista (org.), Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012. Mauro Luis Iasi, As metamorfose da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
_____________, Estado, política e ideologia na atual trama conjuntural. São Paulo: Instituto Caio Prado Jr, 2017.
Domenico Losurdo, Contra-história do liberalismo. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2006.
Loïc Wacquant. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
____________. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2011.
Adam Przeworski, Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Cia das letras, 1991.
Luiz Vicente Vieira, A democracia com os pés de barro. Recife: Editora UFPE, 2006.
Orlando Zaccone, Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Editora Revan, 2014.
***
Jones Manoel
é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou
sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da
Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com
seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram
os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma
universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular,
passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de
história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a
juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no
movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço
social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e
participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o
Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Por Jones Manoel.
Somos todos democratas
A regressão democrática da democracia
Conclusão
2 “[…] segundo o qual qualquer tentativa de alterações substanciais no modelo representativo parlamentar nas conduziria necessariamente a algum beco sem saída, como algumas formas de autoritarismo, o que pode ser facilmente detectado como suposto de inúmeras análises teóricas do tema, de ampla aceitação na mídia impressa e televisionada” (VIEIRA, 2006, p. 15).
3 O estudo “Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vista de hoje”, de Domenico Losurdo, sintetiza com brilhantismo os argumentos dessa larga tendência teórico-política e, ao mesmo tempo, fornece subsídios essenciais para refutá-la.
4 “Na África do Sul, a vida miserável da maioria pobre em geral continua a mesma de antes do apartheid, e o crescimento dos direitos civis e políticos é contrabalançado pelo aumento da insegurança, da violência e do crime. A grande mudança é que à antiga classe branca dominante se somou a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas se lembram do antigo Congresso Nacional Africano que prometeu não apenas acabar com o apartheid, mas também justiça social e até mesmo uma espécie de socialismo. Esse passado bem mais radical do CNA é gradualmente obliterado da nossa memória. Não é de espantar que o ódio entre os pobres e negros sul africanos esteja aumentando”. Slavoj Žižek, “Por que o socialismo de Mandela Fracassou?”, Pragmatismo Político. Acessado em 20/07/2017.
5 “Durante quase todo o século XX, o conceito de imperialismo foi excluído do conjunto dos discursos políticos aceitáveis para os círculos dominantes do mundo capitalista […] Em 1971, no “Prefácio” à edição americana do Imperialism is the Seventies de Pierre Anime, Harry Magdoff aponta: “Como regra, os corteses acadêmicos preferem não usar o termo imperialismo. Acham-no de mau gosto e não científico” (Foster, 2006, p.431)
6 Nesse ponto é necessário evitar confusões. Não estamos afirmando que esses estudos são irrelevantes. Ao contrário. Muitos deles, como as contribuições de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, são importantes na compreensão de aspectos tópicos das estruturas de poder no capitalismo contemporâneo. O norte da crítica é que essas pesquisas no momento de sua produção e difusão ignoraram a tendência principal da dominação política burguesa, produzindo um empobrecimento da compreensão do problema enquanto totalidade.
7 Para uma análise brilhante dessa contradição chilena da Unidade Popular, conferir o clássico de Ruy Mauro Marini “El reformismo y la contrarrevolución estudios sobre Chile”.
8 Um tratamento mais ou menos sistemático do tema pode ser encontrado no livro de Sérgio Lessa Capital e Estado de bem-estar: o caráter de classe das políticas públicas, (São Paulo, Instituto Lukács: 2013), p. 135-149.
9 “A classe molda o comportamento político dos indivíduos tão-somente se os que são operários foram organizados politicamente como tal. Se os partidos políticos não mobilizam as pessoas como operários, e sim como “as massas”, “o povo”, “consumidores”, “contribuintes” ou simplesmente “cidadãos”, os operários tornam-se menos propensos a identificar-se como membros da classe e, consequentemente, a votar como operários” (Przeworski, 1991, p. 42).
Cecília Coimbra e Estela Scheinvar, “Subjetividades punitivo-penais” Em: Vera Malaguti Batista (org.), Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012.
Mauro Luis Iasi, As metamorfose da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
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Domenico Losurdo, Contra-história do liberalismo. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2006.
Loïc Wacquant. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
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Adam Przeworski, Capitalismo e social-democracia. São Paulo: Cia das letras, 1991.
Luiz Vicente Vieira, A democracia com os pés de barro. Recife: Editora UFPE, 2006.
Orlando Zaccone, Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Editora Revan, 2014.